O papel do Poder Judiciário na abolição da escravidão negra na Inglaterra, nos Estados Unidos e no Brasil

Introdução

            O direito comparado fornece uma visão ampla dos sistemas jurídicos e ajuda ao estudioso fazer uma análise mais aprofundada de um fenômeno em comparação se estivesse limitado a estudar um só determinado sistema jurídico. Procedendo assim, o estudioso obterá uma visão globalizada do fenômeno jurídico. Além disso, o estudo do direito comparado aguça a inteligência, fortalece as convicções e a auxilia o intérprete a encontrar soluções aos problemas locais.

            Inobstante a afirmação de que a globalização se trata de um evento recente, na realidade o mundo no século XVIII já encontrava-se plenamente conectado, obviamente não da maneira como é hoje, através da rede mundial de computadores, mas naquela época o planeta era igualmente conectado pelas ideias cuja comunicação resultou na Revolução Gloriosa, na Revolução Americana e na Revolução Francesa fundadas nos direitos à liberdade, à igualdade e à propriedade. Princípios hoje aceitos nos estados democráticos de direito, dentre eles, talvez o direito mais importante, o direito à liberdade, fundada na ideia kantiana de que a dignidade da pessoa humana é relacionada com a razão e a autonomia do indivíduo.

            De qualquer forma, é inegável que o mundo hoje se transformou numa aldeia global, sendo inconcebível compreender os direitos, ao menos os direitos fundamentais, sem realizar um estudo global do fenômeno. Com efeito, o direito comparado propicia uma compreensão mais profunda do assunto, além de enriquecer a cultura. O direito comparado também serve de alerta aos povos para saber o quanto estão atrasados culturalmente em relação aos outros.

1 As primeiras ideias sobre os direitos fundamentais

A Bíblia afirma que o homem foi criado à imagem e semelhança do Criador. Baseado nesta ideia, Santo Tomás de Aquino ensinava que existiam duas ordens diferentes formadas pelo direito natural, como expressão da natureza racional do homem e pelo direito positivo, ao afirmar que a desobediência ao direito natural pelos governantes poderia, em casos extremos, justificar o exercício de resistência da população (SARLET, 2010, p. 38).

Na Idade Média, em 1215, foi estatuída a Magna Charta, o documento mais importante para o reconhecimento dos direitos fundamentais desde então. A Magna Charta previa a proibição de prisão sem o devido processo legal, disciplinava o direito de propriedade e herança e proibia a Coroa de cobrar impostos sem a autorização do Parlamento. Embora de alcance limitado, pois se destinava a proteger a nobreza e o clero do arbítrio da Coroa Inglesa, a Magna Charta foi o embrião dos direitos fundamentais que foram positivados durante o Iluminismo.

            Outro pensador que merece destaque é o Lord Edward Coke (1552-1634), cujas ideias foram decisivas para a elaboração do petition of rights inglês, principalmente no que diz respeito à proteção da liberdade pessoal contra prisão arbitrária e o reconhecimento do direito de propriedade, tendo sido incorporado o inspirador da clássica tríade: vida, liberdade e propriedade (SARLET, 2010, p. 39-40).

            Ainda, é preciso anotar que Locke, tal como já realizado por Hobbes, elaborou a concepção contratualista de que os homens têm o poder de organizar o Estado e a sociedade de acordo com sua razão e vontade, ao demonstrar que a relação autoridade e liberdade é baseada na autovinculação dos governados, resultando no lançamento das bases do pensamento iluminista do século XVIII que deu origem no constitucionalismo e no reconhecimento de direitos de liberdade dos indivíduos considerados como limites ao poder do Estado (2010, p. 40).

2 A escravidão na Inglaterra

            A escravidão na Idade Moderna começou na Grã-Bretanha em 1562, quando o almirante inglês John Hawkins percebeu a necessidade de escravos nas Ilhas Ocidentais. Hawkins escravizou cerca de 1400 escravos africanos sendo condecorado pela Rainha Elizabeth I em razão de seus lucros (BBC, 2014). Na época, a maioria dos proprietários das “plantations” na América eram ingleses que traziam seus escravos para a Inglaterra para realizar trabalhos domésticos. Por outro lado, pesquisas mostram ampla evidência de que escravos que viviam na Inglaterra procuravam o Poder Judiciário para evitar seu retorno às fazendas, em razão da rotina de abusos sofridos no trabalho.

             Em 1690, os direitos de propriedade sobre um escravo foram debatidos numa corte de Middlesex. Robert Rich, um fazendeiro de Barbados, levou sua escrava, Katherine Auker, para a Inglaterra. Katherine foi maltratada e expulsa da casa do proprietário na Inglaterra, que não a permitia trabalhar para outra pessoa. O caso foi levado à corte e foi decidido que Katherine tinha a liberdade para servir a outra pessoa até o momento que seu proprietário retornasse a Barbados (NATIONAL ARCHIVES UK, 2014).

2.1 O Caso Sommerset

            James Sommerset foi levado da África para as Américas como escravo em 1749. Sommerset foi vendido para Charles Steuart, um mercador de escravos na Colônia da Virgínia. Em 1769, Steuart levou Sommerset para a Inglaterra. Depois de dois anos, Somerset fugiu, mas foi recapturado. Seu proprietário decidiu enviá-lo de volta à escravidão na Jamaica. Em novembro de 1771, James Sommerset foi acorrentado num navio para esperar a partida (NATIONAL ARCHIVES UK, 2014).

            Na época, havia em Londres uma rede de abolicionistas operando em contato com os Quakers da Colônia da Pensilvânia, que impetraram em favor de Sommerset o direito de habeas corpus com o fim de obter sua liberdade. (QUAKER, 2014). A decisão teria profundo impacto, não só na Inglaterra, como também nas colônias do outro lado do Atlântico, que seria citada ora como precedente, ora seria desaprovada nos próximos cem anos.

            Com efeito, antes do Caso Sommerset, as cortes inglesas levavam em conta que a escravidão era um direito de propriedade e que portanto, era fundada nos princípios do “common law”. Mas havia dúvida se a escravidão na Inglaterra deveria ser regulada pelos estatutos ingleses, pela Coroa Britânica, pelo “common law” (que limitava as prerrogativas da Coroa) ou por algum novo estatuto combinado.

            A decisão do julgamento concluiu que a escravidão na Inglaterra somente poderia ser reconhecida, “até a legislatura impor sua autoridade” e “nenhum proprietário era autorizado na Inglaterra capturar um escravo pela força e ser vendido no exterior porque desertou do serviço, portanto o homem deveria ser libertado”. Sommerset ganhou sua liberdade.

            O julgamento adotou o princípio do “rights of man”, postulado do “common law” que previa um mínimo de proteção para qualquer indivíduo que viesse para a Inglaterra, o que emergiu um novo conceito de liberdade que separa da questão da raça, origem ou do status de servidão/escravidão e baseada no status individual como uma questão política. Assim, o princípio defendido era que a escravatura em todos os países sempre foi originária do direito positivo, e não dos estatutos, usos ou costumes.

            Apesar da decisão do Caso Sommerset, a escravidão continuou a ser tolerada na Inglaterra, ainda que pendente a controvérsia de sua legalidade. O que sentença impedia era que se recapturasse o escravo fugitivo e que fosse reenviado às colônias contra sua vontade.

            Por fim, em 1807, a lei que permitia o tráfico de escravos foi abolida e vinte e um anos depois, quase todos os africanos mantidos como cativos no Império Britânico foram libertados (NATIONAL ARCHIVES UK, 2014).

3 A Escravidão nos Estados Unidos

3.1 A Constituição americana

            Os Estados Unidos, ao declararem sua independência, precisavam de um novo governo, o que se tornou um problema político no final do século XVIII. Em 1787 foi promulgada a Constituição Americana, que no presente encontra-se em vigor, sendo um marco histórico do Direito Constitucional moderno ao prever um sistema de freios e contrapesos, um forte poder executivo, uma legislatura representativa e um Poder Judiciário Federal (FRIEDMAN, 2005. p. 65).

            Em sua redação original, a Constituição de 1787 não possuía uma declaração dos direitos individuais. Limitava-se a dizer o que o governo podia fazer ou não. A falta de um “bill of rights” virou um obstáculo à ratificação da constituição pelos estados.

            Após mais de quatro anos de debates entre federalistas, que achavam desnecessário e os anti-federalistas, que se recusavam a apoiar a Constituição sem uma carta de direitos, uma vez que temiam um governo forte e centralizado, o sentimento popular foi decisivo. O povo americano recém havia se libertado da autoridade e arbitrariedades da monarquia britânica e desejava garantias fortes de que o novo governo não iria impedir suas liberdades fundamentais.

            O Bill of Rights dos Estados Unidos, que foi criado por Thomas Jefferson e escrito por James Madison, foi adotado em 1791 como as dez primeiras emendas à Consituição Americana e foi adotada como “the law of the land”.

            O Bill of Rights prevê a liberdade religiosa, liberdade de expressão e de imprensa, direito de reunião e de petição (Emenda I); proíbe a produção de prova contra o próprio indiciado e de ser privado de sua vida, liberdade e propriedade sem o devido processo legal e a desapropriação sem justa compensação (Emenda V).

            Em Marbury v. Madison, de 1803, a Suprema Corte consagrou o princípio da supremacia da Constituição sobre as leis ordinárias. Assim, a jovem nação, recém liberta da Coroa Inglesa adotou um sistema jurídico diferente, eis que o Common Law inglês prevê a soberania do Parlamento, não podendo ser a constituição oposta às suas leis. Igualmente, neste precedente ficou firmado o princípio da judiciabilidade de todo e qualquer direito fundado em norma constitucional, reconhecendo-se que a primeira e fundamental garantia desses direitos era de natureza judicial (COMPARATO, 2010, p. 125).

3.2 A escravidão nos Estados Unidos

            A Declaração de Independência dos Estados Unidos é taxativa: “nós acreditamos que certas verdades são evidentes por si só, que todos os homens nascem iguais e foram dados pelo Criador certos direitos inalienáveis, dentre eles, a vida, a liberdade e a busca da felicidade.”

            Assim, a escravidão foi objeto de debates pelos Pais Fundadores, que embora tivessem posições filosóficas contrárias a esta “instituição peculiar”, alguns eram proprietários de uma quantidade considerável de cativos. A questão da escravidão na fundação da América era decisiva para a formação da nação, pois se fosse proibida, provavelmente não teria a adesão dos estados do sul.

            Anote-se que a Constituição de 1787 em momento algum menciona a palavra escravidão, mas assegurou o direito de devolução ao proprietário do escravo fugitivo, concluindo-se que fez-se um documento com o fim de não desagradar a nenhum dos lados, pois se por um lado assegurava a liberdade, por outro, garantia o direito de devolução do escravo fugitivo (US CONSTITUTION, 2014).

            De qualquer forma, a “instituição peculiar” foi progressivamente abolida nos estados do norte a partir do final do século XVIII. No sul, ao contrário, ficava cada vez mais claro que a cor da pele era uma questão crucial sobre o direito das pessoas.

            Como era de se esperar, muitos escravos fugitivos do sul fixavam domicílio no norte com o fim viver em liberdade. Entretanto, com o suporte de uma lei de 1793, caçadores de escravos (slave-catchers) agiam livremente nos estados do norte, causando repúdio aos abolicionistas. Em resposta, estados livres promulgaram leis “anti - sequestro”. Assim, processos de escravos fugitivos viravam intensas batalhas judiciais.

            Em Prigg v. Pensylvannia, Edward Prigg era um caçador de escravos que prendeu a escrava fugitiva Margaret Morgan, que vivia no Estado da Pensilvânia. De acordo com a lei federal de 1793, Prigg precisava de uma certidão judicial para levar a escrava de volta, mas o juiz indeferiu. Mesmo assim, Prigg levou a escrava junto com suas crianças ao seu proprietário. Prigg foi processado por sequestro. O caso terminou na Suprema Corte, que julgou a lei anti - sequestro inconstitucional.

            Uma nova lei, “The Fugitive Slave Law”, de 1850, visava evitar controvérsias e tornar mais fácil a devolução de escravos fugitivos, mas igualmente a lei encontrou resistência feroz e às vezes violenta nas cidades livres do norte (FRIEDMAN, 2005).

            Assim, a divisão entre norte e sul tornou-se um abismo e o debate entre escravagistas e abolicionistas tornava-se cada vez mais inflamado e violento. Em Scott v. Sandford (CORNELL, 2015), Dredd Scott, escravo de propriedade de um médico do exército, mudou-se com seu dono do Missouri para o estado do Illinois, onde a escravidão era proibida. Após o falecimento do seu senhor, Scott retornou ao Missouri e ingressou na Justiça alegando que sua estadia num estado onde a escravidão era proibida o fizera um homem livre. A Suprema Corte dos Estados Unidos além de negar o pedido, decidiu que os negros não podiam ser cidadãos dos Estados Unidos. Ao negar a cidadania aos afro-americanos a eles era também negado o direito de proteção judicial.

            Não se pode dizer que a razão da Guerra Civil tenha sido a decisão de Scott v. Sandford, mas a decisão contribuiu para aumentar a profunda divisão da sociedade americana entre o sul agrícola e dependente da mão de obra escrava e o norte industrializado e composto por estados livres.

            Com a eleição de Abraham Lincoln como o 16º Presidente dos Estados Unidos em 1860, conhecido por suas ideias abolicionistas, os estados do sul resolveram se separar da União, o que resultou na Guerra da Secessão, sendo ao final vencida pelos estados livres do norte, e em 31 de janeiro de 1865 foi aprovada a 13ª Emenda à Constituição Americana, abolindo a escravidão nos Estados Unidos.

4 O Brasil colônia e os escravos

            O Brasil foi descoberto e colonizado por Portugal, país que ao chegar aqui sentiu-se legitimado, como novo proprietário, a ditar os rumos deste pedaço de terra do novo mundo. CRISTIANI afirma que para Portugal a colonização do Brasil foi uma empresa temporária em que o enriquecimento rápido e o sucesso foram os objetivos principais, inobstante o discurso simulado da necessidade de se levar a palavra cristã aos pagãos. A exploração econômica do Brasil iniciou com a agricultura, sendo que o domínio das propriedades, das fazendas e da própria mão de obra escrava de negros e indígenas pertenciam aos colonizadores.

            Neste sentido, o direito no Brasil colonial sofreu o mesmo destino da cultura em geral. Segundo Machado Neto, citado por CRISTIANI, a cultura brasileira não foi resultado da evolução gradual e milenária de um grupo social, tal como ocorreu com o direito dos povos antigos, tais como grego, germânico, celta, assírio. A condição de um povo colonizado fez com que tudo surgisse de forma imposta e não construída aos poucos nas relações sociais, no embate saudável e construtivo das posições e segmentos formadores do conjunto social. Foi a vontade monolítica imposta que formou a base cultural e jurídica do Brasil colonial. Portanto, a colonização foi um projeto totalizante, com objetivo de ocupar o novo chão, explorar seus bens e submeter os nativos ao seu império pela força, sempre que preciso. O mesmo ocorreu com os negros, trazidos para o Brasil na condição de escravos

            Anote-se que no Brasil os elementos formadores da cultura em geral e do Direito especificamente durante a colonização foram três etnias distintas. Não se tratou de uma legislação que se preocupou em respeitar autonomias e condições peculiares de cada raça e sim mera imposição dos padrões dos portugueses brancos aos índios e negros. Quanto aos negros, na condição de escravos, ao serem capturados de suas nações na África e jogados nas senzalas ocorreu uma desintegração de suas raízes. Apesar disto, apesar das diversidades, a cultura dos negros, costumes, crenças e tradições se fazem presentes em nossa identidade nacional. No que diz respeito ao Direito, na maior parte das vezes os negros e índios foram mais objetos, coisas do que sujeitos de direito.

            Por sua vez, Portugal formou uma burocracia profissional para atuar em sua colônia com o fim de proteger seus interesses. Não era interessante que sua colônia formasse uma organização do governo da metrópole e contrariasse seus interesses e diretivas do colonizador. Esta afirmação vale inclusive para a magistratura portuguesa, burocratas do reino de Portugal como eram, representavam os interesses da Metrópole e não os interesses locais.

            Entretanto, foi devidamente providenciada a aproximação da elite local e os magistrados que chegaram ao Brasil. A aproximação não visava um interesse comum da colônia ou proteção contra os indígenas, negros ou seus direitos respectivos. A aproximação visava troca de favores entre magistrados da Coroa e a elite dominante da Colônia. Não foi um acordo difícil, eis que os atrativos oferecidos pela elite colonial e os desejos dos magistrados eram coincidentes (WOLKMER, 2014, p. 460-471).

             Portanto, segundo CRISTIANI:

Foram os operadores jurídicos do Brasil-colônia, principalmente os desembargadores, os verdadeiros formadores de opinião, intelectuais orgânicos legitimadores do statu quo, que nunca souberam diferenciar o público das relações privadas e os interesses da coletividade com os seus próprios interesses e os da classe dominante que representavam (WOLLMER, 2014, p. 471).

 

            Os magistrados, em geral, não eram integrantes da nobreza, mas seu maior objetivo era a ela se igualarem. Para adquirir esta condição os magistrados adquiriam fazendas de cana de açúcar ou um engenho para se igualarem ao status da nobreza, cujos meios nem sempre eram moralmente aconselháveis. Igualmente, era comum entre os magistrados vindos de Portugal casar com filhas de fazendeiros nobres, sendo a forma mais eficiente de incorporá-los na sociedade local de forma permanente. Conforme CRISTIANI (2014, p. 472):

Aos desembargadores tal união matrimonial representava a oportunidade de adquirirem riqueza e propriedades que estivessem de acordo com a posição social a que tanto aspiravam. Para as famílias locais, tal união mostrava-se também muito proveitosa, pois propiciava a ocasião de efetivarem relações formais de parentesco com os operadores jurídicos do Poder Judiciário.

            Foi neste ambiente onde prosperou a exploração mercantil da colônia, baseada na exploração do trabalho escravo, inobstante as Ordenações Filipinas declararem que “em favor da liberdade são muitas coisas outorgadas contra as regras gerais” (livro 4, título 11, parágrafo 4), reconhecendo como uma instituição contrária ao direito natural.

            Todavia, a principal característica da legislação portuguesa era a fixação dos princípios jurídicos que serviram de base para as relações entre senhores e escravos, principalmente do domínio dos primeiros sobre os segundos. A escravidão era tida como uma prática comercial sobre a qual havia a necessidade de controle (GRINBERG; PEABODY, 2013, 97-105). 

4.1 As ações de liberdade

            Durante todo o período que vigorou a escravidão no Brasil os escravos ajuizaram ações contra seus senhores para obter sua liberdade, prática iniciada desde o século XVII, ou talvez antes. Tratam-se de ações em que os escravos requeriam sua alforria no Poder Judiciário quando acreditavam ter reunido as condições legais para serem considerados livres.

            As ações de liberdade originavam-se de um negócio jurídico entre senhor e um escravo. Quando esta negociação não alcançava êxito, ou quando o proprietário se recusava a libertar o escravo, este ajuizava ação na Justiça, argumentando seu direito à liberdade. Os motivos mais comuns das ações de liberdade eram as promessas de libertação feitas pelos proprietários, as cartas de alforrias concedidas e depois revogadas pelo senhor ou pelos herdeiros, a chegada ao Brasil após a proibição do tráfico, a acusação de maus-tratos, e principalmente, a tentativa de compra da liberdade (GRINBERG; PEABODY, 2013, 106-107).

            Sobre a atuação do Poder Judiciário há alguns pontos a considerar. A doutrina pondera que tanto o Brasil colônia quanto o Brasil independente foi montado quase que exclusivamente sob uma estrutura de economia agrária. Neste ambiente, a mão de obra escrava era imprescindível para a manutenção da estrutura social, política e econômica. Da mesma forma, de uma maneira geral, a magistratura integrava a estrutura e os interesses das elites, que obviamente tinham interesse na manutenção da escravidão. De qualquer forma, há registros de que alguns membros do Poder Judiciário nutriam simpatia pela liberdade, como registrado nalguns casos na obra de Lenine Nequete “O escravo na jurisprudência brasileira”, conforme veremos a seguir.

            De acordo com GRINBERG, foi no século XIX o período mais controverso da história da escravidão no Brasil, eis que o mesmo drama moral enfrentado pelos Estados Unidos na mesma época passaria a ocupar desta vez o nosso país.

            O Brasil se tornou independente de Portugal em 1822, o que marcou o início da controvérsia do regime de trabalho escravo no país, eis que para muitos a escravidão era uma instituição colonial que deveria ser extirpada da sociedade brasileira. Havia também a pressão internacional para a extinção da escravidão, uma vez que após extinguirem a escravidão no seu país, movidos pelo espírito da Magna Carta e do direito natural, os ingleses decidiram empreender uma cruzada internacional com o fim de aboli-la.

            Apesar disto, após inúmeras discussões com o objetivo de acabar com o comércio de africanos, prevaleceu o argumento da grande dependência da economia brasileira em relação à mão de obra escrava, inobstante o que determinava a Constituição do Império:

Art. 6. São Cidadãos Brazileiros:   I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos (nascidos libres), ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.

            Portanto, apesar da diferença do exercício dos direitos do ponto de vista político entre brancos e negros, a partir da Constituição do Império de 1824, todos, sem distinção de cor, era cidadãos brasileiros. A inviolabilidade dos direitos fundamentais, dentre eles, a liberdade dos cidadãos brasileiros, foram disciplinados no art. 179, inciso XIV ao dispor que:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.

XIV. Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes.

 

            Em 1826 o Brasil assinou acordo com a Inglaterra que honraria os compromissos firmados por Portugal quanto à proibição do tráfico de africano, sendo ratificado pelas partes em 13 de março de 1827. Este acordo concedia à marinha britânica o direito de inspecionar navios suspeitos de tráfego de escravos pelo prazo de quinze anos. Contudo, o acordo causou a indignação de alguns congressistas por verem uma ofensa à soberania do país e o temor de que a extinção da escravidão causasse a falência da economia do país.

            Apesar do acordo, a primeira metade do século XIX foi o período em que mais entraram africanos no Brasil, estimando-se 2,5 milhões tenham ingressado até 1850, com a complacência das autoridades do país.

            Por outro lado, como condição para reconhecimento da independência do Brasil por parte da Inglaterra era preciso cumprir os antigos tratados de restrição ao tráfego de escravos assinados entre Brasil e Portugal.

            Com este fim, foi assinada em 7 de novembro de 1831 a Lei Feijó, que proibia a entrada de africanos no país e instituiu penas para quem vendesse, transportasse e comprasse recém-chegados.      Contudo, pelas razões já apontadas, não se fez um esforço para colocá-la em prática, ficando conhecida como a “lei para inglês ver”. Poucas foram as apreensões de carregamento e os traficantes acusados de violar a lei absolvidos. Dos poucos africanos apreendidos, que em princípio deveriam ser mandados de volta para África pelo governo brasileiro, eram obrigados a servir ao Estado ou particulares, retornando à escravidão.

            Em razão da crescente tensão internacional, o governo brasileiro aprovou a Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, que extinguiu o tráfico de escravos, no entanto legitimou a entrada de todos os africanos chegados após 1831, estimados em um milhão de pessoas.

            Após a extinção do tráfico de africanos o número de escravos que procurou o Poder Judiciário para obter a liberdade aumentou substancialmente, principalmente a partir de 1860. O fim do tráfico internacional de escravos resultou no aumento expressivo do comércio interno, principalmente com a população de escravos se concentrando nas fazendas de café do Vale do Paraíba. Estes escravos vinham de lugares como Pernambuco, sendo homens e mulheres, nascidos e criados no país, chegavam ao Vale do Paraíba separados de seus familiares, com experiência anterior de escravidão na qual tinham direitos que não admitiam perder.

            A revolta em razão da insegurança sobre seus direitos e pela piora das condições de vida fez com que muitos escravos começassem a lutar abertamente contra seus senhores (GRINBERG; PEABODY, 2012, p. 108-111).

            Anote-se que José Bonifácio em 1825, numa visão profética de como seria o país nas próximas décadas, afirmou:

Graças aos céus e à nossa posição geográfica, já somos um povo livre e independente. Mas como haverá uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos? (WOLKMER, 2014, p. 502).

 

            Este ambiente marcado pela violência é descrito por GRINBERG:

A revolta pela possível perda de direitos e pela piora das condições de vida fez com que muitos escravos começassem a lutar abertamente contra seus senhores. Muitos cometiam crimes, assassinando seus feitores ou senhores; outros fugiam; outros, ainda, usavam de todos os meios possíveis para obtenção da alforria. Um deles eram as ações de liberdade, que agora ganhavam, além do significado usual, um sentido político: cada sentença positiva conseguia por um escravo incentivava outros a fazerem o mesmo. As ações cíveis de liberdade tornaram-se, assim, extremamente frequentes a partir da década de 1860, quando a revolta dos escravos passou a somar-se a atuação de advogados abolicionistas, que saíam pelas fazendas incentivando os escravos a processar seus senhores (GRINBERG; PEABODY, 2012, p. 111).

 

            Numa destas ações da liberdade, em 12 de agosto de 1875, o Tribunal da Relação de Porto Alegre confirmava uma sentença do Dr. Antônio Vicente da Siqueira Leitão, Juiz de Direito de Rio Pardo, datada de 2 de agosto de 1874, versando sobre um tema idêntico ao de Scott v. Sandford, de 1857.

            Segundo NEQUETE, decisão sobre o mesmo tema também já tinha sido decidido pela Relação de Pernambuco, em 1872, confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 28 de março de 1874. A questão de Pernambuco tratava-se de uma escrava chamada Rosa Maria que residira com seu senhor em Portugal, onde desde o século anterior se consideravam livres “os pretos e pardos” que ali chegassem. Contudo, a sentença entendeu que a autora deveria ter requerido sua manumissão em Portugal, o que não ocorreu. Retornando ao Brasil, Rosa Maria permaneceu escrava. De acordo com a sentença:

Considerando que, uma vez que a autora não se libertou em Portugal, ainda, além de ter-se demorado num não pequeno espaço de tempo (quando) tinha o apoio da lei e alvarás citados, muito menos o poderá fazer aqui no Brasil, para onde voltou escrava, visto como essa lei e alvarás nenhuma aplicação aqui têm, pois que, se o tivesse, desde há muito estaria entre nós proclamada a liberdade do ventre, visto como o alvará de 16.1.1773, declara que, de sua publicação em diante, seja considerado inteiramente livre o ventre (NEQUETE, 1988, p. 124-125).

 

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            O caso mencionado do Tribunal da Relação de Porto Alegre tratou do caso dos escravos Lírio e Lourenço. O proprietário, Sr. Augusto César de Moraes, contratou com José Teixeira Bastos o aluguel de algumas carretas e escravos para a condução de suprimentos a serem entregues ao 2º Corpo do Exército na Guerra do Paraguai em 1866 e ordenou ao contratado não atravessar a fronteira além do Uruguai, fronteira do Império com a Argentina. Contudo, na falta de encontrar pessoal para prosseguir viagem, verificando o tráfego de pessoas entrando na fronteira com a Argentina e autorizado a fazê-lo em razão de estar a serviço do Exército Brasileiro, José Teixeira, junto com os escravos Lírio e Lourenço, entraram em território argentino e lá permaneceram por vários meses. Ao retornarem, os escravos Lírio e Lourenço ajuizaram ação de liberdade alegando que sua estadia na Argentina, onde a escravidão não existia, os tornara homens livres. A sentença, confirmada pelo Tribunal da Relação de Porto Alegre, entendeu que a escravidão era contrária ao direito natural, e considerando que Lourenço e Lírio “passaram e se demoraram” na Argentina por meses sem terem empregado fuga, exceção que concedia ao proprietário o direito de reavê-los, não poderiam ter seu direito à liberdade prejudicado pelo direito de ação do réu. De acordo com a decisão, interpretações gramaticais e lógicas devem andar combinadas “e quais os princípios donde se deve deduzir a razão da lei; e um destes, que aponta por último (verdadeiro complemento), é o direito natural, e na nota aponta a equidade”. Conforme a sentença:

Ora, por este direito ninguém pode ser senhor de outra pessoa, pois esta não é simples coisa, que sirva de objeto de propriedade, como os animais irracionais e as coisas inanimadas. A equidade exige que a palavra da lei – todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora ficam livres – se apliquem sem se fazer distinções como as invocadas pelo réu, a de ser a lei só relativa ao tráfico da escravatura, a de não ter ele dado o seu consentimento para a saída dos escravos, e a de serem saído acobertados por armas brasileiras, direito de extraterritorialidade, como o privilégio concedido aos agentes diplomáticos, imunidades que não se podem por direito presumir que fossem concedidas pelo direito das gentes para acobertar propriedade repugnante com o direito natural; nem também vem a propósito a invocação a garantia constitucional da propriedade, porque a sua plenitude não pode abranger a ilícita: sempre se presume o melhor e o honesto, como ensina Pereira e Sousa (NEQUETE, 1988, p. 129).

            Em meio aos debates cada vez mais tensos entre escravagistas e abolicionistas, reproduzindo o dilema moral enfrentado pelos Estados Unidos, em 28 de setembro de 1871 foi aprovada a Lei nº 2.040, a Lei do Ventre Livre. A lei previa a concessão da liberdade aos filhos de escravos que nascessem a partir da data que a lei entrou em vigor. Estabelecia a lei que enquanto menores os escravos ficariam a cargo dos seus senhores até os 8 ou 21 anos, recebendo o proprietário indenização do governo no primeiro caso. A lei também reconheceu ao escravo o direito de formação de pecúlio formado por seu trabalho, economias, proveniente de doações, legado ou heranças, por consentimento do senhor. Com o dinheiro o escravo poderia fazer o que quisesse, inclusive a compra de sua liberdade sem que seu senhor pudesse impedir. Era a primeira lei que reconhecia formalmente vários direitos aos escravos, além daqueles previstos no direito natural e limitava a autoridade do proprietário (GRIBERG, 2012, p. 114-115).

            Com a proibição do tráfico de escravos e a promulgação da Lei do Ventre Livre a escravidão estava com os dias contados no Brasil. A partir da Lei do Ventre Livre as ações de liberdade perderam a importância que tiveram no passado, mas outra espécie de demanda chamou a atenção dos historiadores. Assim, a controvérsia passou a ser o preço da liberdade. Quando um escravo queria comprar sua liberdade oferecia determinado valor. Seu proprietário não podia impedir o escravo de comprar sua liberdade, mas podia argumentar que o preço proposto era abaixo do valor de mercado. Se as partes não chegassem a um acordo o litígio terminava no Poder Judiciário (GRIBERG; PEABODY, 2012, p. 115-116).

            GRINBERG cita o caso da escrava Eubrásia, trazida do Maranhão para Campinas em 1879 e comprada pela sociedade Calhelha & Vilhares. Depois do desfazimento da sociedade a escrava passou a ser propriedade de Calhelha, um dos sócios. Em 1881 Eubrásia depositou a quantia de 800 mil-réis que pretendia pagar pela sua liberdade. O proprietário contestou a ação alegando que Eubrásia era escrava de “boas qualidades” e não aceitou o valor oferecido. Então foram nomeados três avaliadores em que dois deles fixaram o valor em 1 conto e 800 mil réis e outro avaliou em 1 conto de réis. A sentença fixou o valor em da indenização em 1 conto e 800 mil réis. Houve apelação da sentença para o Tribunal da Relação de São Paulo e argumentação de Eubrásia reflete o contexto social da época. A escrava alegava que o preço da propriedade servil se reduzira em razão da crescente onda abolicionista em todo o Império, em razão de repetidos assassinatos praticados pelos escravos contra seus feitores, em razão de frequentes suicídios dos mesmos escravos. Aduziu que a redução dos preços era fato inegável em razão da possibilidade de um desfecho inesperado para esta “incandescente questão levada ao parlamento por homens de elevado prestígio”. Finalizou dizendo que Eubrásia era uma “preta, com 45 anos de idade, com aptidão apenas para a lavoura”. Os juízes do Tribunal da Relação entenderam que o valor fixado na sentença de 1 conto e 800 mil réis era excessivo e foi reduzido para 1 conto de réis. Eubrásia pagou a quantia e conquistou a liberdade (2012, p. 116-120).

            Após a aprovação da Lei dos Sexagenários em 1885, que libertou os escravos com mais de sessenta anos de idade em resposta à crescente radicalização do movimento abolicionista, principalmente após a abolição da escravidão na província do Ceará em 1884, a situação social e política do país alterou-se radicalmente. Apenas a classe dos cafeicultores de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro defendia a manutenção da escravidão por mais alguns anos. No entanto, começaram a ocorrer fugas em massa de escravos e muitos membros do exército com obrigação de perseguir e capturar os fugitivos se negaram a fazê-lo. Passou-se a considerar a abolição imediata, sem qualquer indenização aos proprietários, como único meio de pacificar o meio rural, visto que a colheita da safra de café ficou ameaçada por falta de mão de obra (2012, p. 121).

            Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel, através da Lei nº 3.353 declarou extinta a escravidão no Brasil, com a seguinte redação:

LEI Nº 3.353, DE 13 DE MAIO DE 1888.

Declara extinta a escravidão no Brasil.

A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.

Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém.

O secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comercio e Obras Publicas e interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr.

Dada no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 67º da Independência e do Império.

Princeza Imperial Regente.

 

            A aprovação da Lei nº 3.353, conhecida como a Lei Áurea, extinguiu a escravidão no Brasil, após vigorar por quase quatrocentos anos, deixando marcas indeléveis na sociedade brasileira.

Conclusão

            Por certo, há diferenças marcantes entre o sistema legal brasileiro e o Common Law anglo-americano. Contudo, é inegável a existência de conexão entre os acontecimentos que resultaram na extinção da escravidão no Brasil com o Common Law inglês e americano. Anote-se que a Magna do Rei João Sem Terra foi o embrião dos direitos fundamentais, que teve influência decisiva tanto no Bill of Rights da Revolução Gloriosa e no seu congênere americano que resultou nas primeiras dez emendas à Constituição dos Estados Unidos. Esta evolução dos direitos fundamentais afetou todos os sistemas jurídicos do ocidente, inclusive no Brasil, tanto antes quanto após sua independência.

            Tanto o Brasil como os Estados Unidos são países fundados no princípio do “Rule of Law”. Sendo assim, ambos os países positivaram em seus sistemas jurídicos a extinção da escravidão, no caso americano através da 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos e no Brasil através da Lei nº 3353 de 1888.

            Embora os Estados Unidos tenham seguido a tradição do Common Law inglês, o povo americano preferiu adotar uma Constituição escrita, rígida e sintética, e assim optou por positivar suas garantias fundamentais, razão pela qual após a Guerra Civil preferiram promulgar a 13ª Emenda Constitucional que extinguiu a escravidão. Trata-se de um sistema diferente do Common Law inglês, eis que este não codificou sua constituição, que é formada por documentos, precedentes, leis e instituições cuja tradição reconheceu o caráter de lei fundamental. Deve ser lembrado ainda que no Common Law inglês subsiste o princípio da soberania do Parlamento, razão pela qual é difícil de se pensar na existência de cláusulas pétreas ou direitos fundamentais, ou ao menos concebê-los tal como ocorre no Brasil ou nos Estados Unidos.

            A sequência das Revoluções na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França e o advento dos princípios de liberdade, igualdade e propriedade que marcaram o início do constitucionalismo no século XVIII e a abolição da escravatura no Brasil e nos Estados Unidos no século XIX demonstra a existência de uma sociedade global conectada, não através dos trilhões de bits que trafegam diariamente por cabos e satélites como hoje ocorre e sim através da educação da literatura, das ideias e das viagens realizadas naquela época.

            Neste contexto, o Poder Judiciário julgava os conflitos entre os escravos e seus senhores e desempenhou seu papel histórico. Nos Estados Unidos a Suprema Corte em 1857 ao entender em Scott v. Sandford que os negros não poderiam ser considerados cidadãos americanos, nem sujeitos de direito, foi uma das causas que resultou na Guerra da Secessão entre os estados livres do norte e os estados escravagistas do sul. Após a guerra civil foi assinada a 13ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos abolindo a escravidão no território americano. No Brasil, de uma maneira geral, o Poder Judiciário também refletia os valores da época, ao entender que o escravo era apenas objeto de direito, inobstante algumas decisões esparsas que entendiam que a escravidão era uma instituição que ofendia o direito natural. De qualquer forma, não há registro na história no direito brasileiro de algum precedente que tenha repercutido tanto quanto Scott vs. Sandford. Em especial talvez por que a escravidão no Brasil tenha morrido por meio de uma longa agonia, ao contrário do que acorreu nos Estados Unidos, na qual a escravidão foi a razão da guerra civil, que ao final, com os estados do sul derrotados, foi abolida a escravidão.

            Por certo que a evolução e reconhecimento de novos direitos dos descendentes dos escravos continua. Se no século XVIII se falava em liberdade e na ideia da igualdade no sentido meramente formal da palavra, no século XXI a evolução prosseguiu no sentido de se alcançar a igualdade também no sentido material. Com este propósito, o século XXI é marcado pelas ações afirmativas dos governos e da sociedade civil em que se prevê nas suas leis e decisões cotas de ensino, estímulos no acesso ao trabalho e nos concursos públicos.

            Isto mostra que há ainda um longo caminho para percorrer para reparar a mancha indelével da escravidão nas Américas, trabalho que prosseguirá no século XXI e possivelmente além.

Referências

BBC http://www.bbc.co.uk/devon/content/articles/2007/01/18/abolition_plymouth_slave_trade_feature.shtml Acesso em 8 de janeiro de 2015.

 

COMPARATO, F. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

CORNELL. University Law School. Scott v.  Sandford () 100 U.S. 1. Disponível em: http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0060_0393_ZO.html

FRIEDMAN, L. A history of American Law. 3ª ed. New York: Touchstone, 2005.

GRINBERG, K; PEABODY S. Escravidão e liberdade nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2013.

NATIONAL  ARCHIVES  UK http://www.nationalarchives.gov.uk/pathways/blackhistory/rights/slave_free.htm Acesso em 8 de janeiro de 2014.

 

NEQUETE, L. O escravo na jurisprudência brasileira. Porto Alegre. 1988.

SARLET, I. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

The Religious Society of Friends. Disponível em: http://www.quaker.org/#1  Acesso em: 8 de janeiro de 2015.

US Constitution Online. Disponível em: http://www.usconstitution.net/consttop_slav.html Acesso em: 8 de janeiro de 2014.

WOLKMER, A. Fundamentos de história do direito. 8ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.

 

 

Elaborado em janeiro/2015

 

 

 

Rodrigo Gomes Flores; Ana Luíza de Lemos Nobre

Rodrigo Gomes Flores: procurador do Município de Pelotas. Especialista em Direito Público.

Ana Luíza de Lemos Nobre: advogada. Especialista em Ciências Penais.