Ressocialização: Da legitimação do Controle ao paradigma da Corresponsabilização.

Resumo: A ressocialização provém de um emaranhado de discursos que buscam oferecer ao sentenciado à garantia de sua reinserção no meio social, de forma a readequar sua conduta para o convívio público. Este artigo, busca inicialmente situar esse instituto no bojo dos estudos que o enxergam como exercício de controle social, contextualizando-o como parte integrante do sistema penal. Em seguida, este trabalho se propõe a discutir o distanciamento entre o arcabouço legal e a realidade na qual se materializa o discurso ressocializador. Por último, busca-se discutir o papel ressocializador  do poder judiciário perante o paradigma da corresponsabilização, considerando o conteúdo da ADPF 347 e as opiniões dos atores do sistema de justiça diante desta nova realidade fomentadora de políticas de inclusão do poder judiciário.

Palavras-chave: Ressocialização – corresponsabilização – poder judiciário

Abstract: Resocialization comes from a tangle of discourses that seek to offer the sentenced the guarantee of their reintegration into the social environment, in order to re-adjust their conduct to the public. This article initially seeks to situate this institute in the depths of studies that see it as an exercise of social control, contextualizing it as an integral part of the penal system. This paper then proposes to discuss the distance between the legal framework and the reality in which the resocializing discourse materializes. Finally, the paper seeks to discuss the resocializing role of the judiciary before the paradigm of co-responsibility, considering the content of ADPF 347 and the opinions of the actors of the justice system before this new reality fomenting policies of inclusion of the judiciary.

Keywords: Ressocialization - Co-responsability - Judiciary

Sumário: 1. Introdução 2. Ressocialização: Um exercício de Legitimação do Sistema Penal  3. A Função do Poder Judiciário e o Novo Paradigma  4. Percepção dos Atores do Sistema de Justiça  5. Conclusão 6. Referências

1. Introdução

Dentre as múltiplas dimensões do existir humano, a social se destaca pela impossibilidade de se conceber o ser humano desvinculado do meio onde se insere. Como seres sociais, ao mesmo tempo em que nos tornamos agentes construtores e reconstrutores de cultura(s) – aqui entendida(s) como maneira(s) de ser, pensar e agir -, também construimos e ia nós mesmos a partir dos processo interativos que estabelecemos nos diversos espaços de convivência. Nessa trajetória, vamos elaborando uma série de códigos de conduta, determinando aquilo que é aceitável ou não dentro de um amplo espectro axiológico, comportamental e jurídico. Havendo transgressão, existirá uma sanção. Transgressão e sanção estão tão claramente imbricados que o estudo de um desses objetos implica, necessariamente, no estudo do outro.

Hodiernamente, tem-se procurado compreender, precipuamente, o fenômeno dessa imbricação estudando-se a capacidade do sistema prisional em cumprir sua função básica: preparar os sujeitos apenados para a volta ao convívio social. No entanto, os resultados de diversos desses estudos apontam para a ineficácia das instituições prisionais e questionam a capacidade do sistema de alcançar seus objetivos (MUNOZ CONDE, 1979; BAUMAN, 1999; AGAMBEN, 2004; BITTENCOURT, 2011a; SANTOS, 2011b; FOUCAULT, 2012; KAZMIERCZAK & OLIVEIRA, 2015; BARATTA, 2017). Nesse sentido, o problema que se coloca é o seguinte: Considerando-se a premência da ressocialização para a paz social almejada, o paradigma atual do sistema prisional brasileiro marcadamente centrado na legitimação do controle não deveria ser superado pelo novo paradigma da corresponsabilização?

A justificativa do estudo decorre da necessidade ampliar os debates acerca das condições que se dão o ingresso, a permanência e a reinserção dos sujeitos no sistema prisional brasileiro, bem como as causas da distância entre a reinserção e a ressocialização efetiva, objetivo maior de todo o sistema e o que preconiza os marcos normativos vigentes no país. Ressalte-se que estudos como este possibilitam aclarar a necessidade de novos projetos de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da precariedade dos sistemas prisionais do país. Outro aspecto a ser ressaltado decorre da oportunidade de ampliar a compreensão da necessidade de trazer à baila princípios como o da dignidade da pessoa humana e seus benefícios para construção de relações sociais voltadas ao crescimento humanitário, base para a uma nação socialmente justa.

O objetivo do estudo é discutir até que ponto o sistema prisional brasileiro poderia ganhar em efetividade se a lógica da legitimação e do controle passasse a se nortear pelo paradigma da corresponsabilização. Para a concretização do objetivo, a pesquisa foi desenvolvida observando-se a seguinte trajetória metodológica: do ponto de vista da natureza, foi uma pesquisa básica, na medida em que se objetivou acrescer elementos explicativos gerais à temática; do ponto de vista da abordagem do problema, optou-se pela qualitativa, por se reconhecer à dinâmica e o vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade dos sujeitos cognoscentes da pesquisa; do ponto de vista dos objetivos, adotou-se proposta explicativa, na medida em que se visou identificar os fatores que concorrem para a ocorrência da temática em questão; em relação aos procedimentos técnicos, a pesquisa foi bibliográfica (VERGARA, 2007).

2. Ressocialização: um exercício de legitimação do sistema penal

As discussões acerca dos projetos de reinserção social e ressocialização passam por inúmeros problemas, de ordem política, social e econômica e ideológica. A mera cogitação deste tema possui restrito espaço na agenda política atual e sua impopularidade, entre parte da opinião pública e da mídia,  tem como substância o investimento de recursos públicos em pessoas que quebraram o pacto social.

Esta postura hostil a projetos de ressocialização guarda relação direta com a presença de uma ideologia punitivista fruto da adoção de uma racionalidade penal expansionista que substituiu o chamado welfare state, com sua proposta inclusiva e regeneradora, por um estado neodarwinista, no qual se celebra a competição e a responsabilidade pessoal irrestrita (WACQUANT, 2007), submetendo o delinquente a uma política criminal que o vê como um inimigo do Estado (ZAFFARONI, 2011). Conforme BARATTA:

"Em contrapartida, a crise do Welfare State, que se espalhou em todo o mundo ocidental entre os anos 70 e 80, suprimiu boa parte da base material dos recursos econômicos destinados a sustentar uma política prisional de ressocialização efetiva. Portanto, hoje assistimos em muitos países, e sobretudo nos Estados Unidos, uma mudança do discurso oficial sobre a prisão: de prevenção especial positiva (ressocialização) para prevenção especial negativa (neutralização, incapacitação). Uma parte do discurso oficial e algumas reformas recentes (por exemplo, a nova lei penitenciária italiana de 1987), demonstram que a teoria do tratamento e da ressocialização não foi abandonada por completo. A realidade prisional apresenta-se muito distante daquilo que é necessário para fazer cumprir as funções de ressocialização e os estudos dos efeitos da cadeia na vida criminal (atestam o alto índice de reincidência) têm invalidados amplamente a hipótese da ressocialização do delinqüente através da prisão. A discussão atual parece centrada em dois pólos: um realista e o outro idealista. No primeiro caso, o reconhecimento científico de que a prisão não pode ressocializar, mas unicamente neutralizar; que a pena carcerária para o delinqüente não significa em absoluto uma oportunidade de reintegração à sociedade, mas um sofrimento imposto como castigo, se materializa em um argumento para a teoria de que a pena deve neutralizar o delinqüente e/ou representar o castigo justo para o delito cometido. Renascem, dessa forma, concepções “absolutas”, compensatórias à pena ou, entre as teorias “relativas”, se confirma a da prevenção especial negativa" (grifo do autor).

No entanto, o advento da Constituição Federal de 1988, estruturada em torno do “princípio da dignidade da pessoa humana”, constante no art 1º, III,  põe em outra perspectiva o problema da reinserção social e da ressocialização, inscrevendo-os na agenda positiva do Estado, obrigando-o a desenvolver políticas efetivas de reintegração das pessoas encarceradas ao convívio social.

A  Lei de Execução Penal (7.210/84), embora anterior à Constituição Federal de 88,  enuncia este interesse ao descrever, em seu artigo 1º o propósito de “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Assim, o ordenamento jurídico apresenta a ressocialização como garantia dos direitos fundamentais dos indivíduos sentenciados, como ainda aqueles descritos nos artigos 3º e 66, inciso VI, da Lei de Execução Penal. O plano legal, portanto apresenta-se como o resguardo das garantias desses direitos, nos termos do artigo 38, do Código Penal.

Apesar da garantia das normas, o que se verifica no sistema prisional brasileiro é a violação generalizada e sistemática dos direitos fundamentais dos presos, caracterizando a vigência de um “estado de coisas inconstitucional” em que a internação dos custodiados pelo Estado se converte em penas cruéis e desumanas, contrariando as promessas constitucionais, como deduziu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o pedido liminar da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 347, em 2015.

Segundo Hassemer, a modernidade colocou o tema da ressocialização a partir de uma perspectiva, o da legitimação do direito de punir estatal, por meio do qual este discurso se  aperfeiçoa a partir da oferta de uma esperança de ressocialização, mediado por uma “cultura empírica”, incapaz de afirmar as consequências desta promessa:

"A extensão daquilo que se pode denominar por “esperança” da ressocialização, deverá permanecer sempre em discussão, pois o que realmente é um “delinquente ressocializado”? Ele ´se “saudável” (o que isto significa?); ele é “fiel à moral” (e ele o é apenas exteriormente ou também interiormente?), ou ele ´se somente “fiel ao direito”? Constitui um sucesso do conceito da ressocialização quando a pessoa em tratamento reprime seus problemas com as normas jurídicas ou sociais em seu corpo ou em sua alma?" (HASSEMER, 2007).

Este pensamento encontra eco na abordagem de Michel Foucault, para quem o tratamento oferecido aos presos por inclusão em projetos de reinserção tem um sentido específico. Segundo ele, o esforço da reinserção é ainda um esforço de legitimação do poder, considerando o fato de que antes de serem programas de inclusão, mostram-se como instrumentos de dessocialização do indivíduo, agindo como álibi para a fabricação de delinquentes, úteis à manutenção do sistema:

"Desmistificar os programas de reinserção social, porque como se diz esses programas readaptariam os delinquentes às condições sociais dominantes não é tanto o problema. O problema é a dessocialização. Gostaria de criticar a opinião que infelizmente encontramos com muita frequência nos esquerdistas, uma posição de fato simplista: o delinquente, como louco é alguém que se revolta. Diria o inverso: ele se tornou delinquente porque estava na prisão, ou melhor ainda, a microdelinquência que existia no começo transformou-se em macrodelinquência pela prisão. A prisão, produz, fabrica delinquentes profissionais. E se quer ter esses delinquentes porque eles são úteis: eles não se revoltam. São úteis, manipuláveis, são manipulados." (FOUCAULT, 2012).

De acordo com o pensamento de Foucault, a garantia do controle está na própria ideia que permeia tais programas, considerando o fato de se tratar de iniciativas destinadas à marcação destas pessoas, havendo interesse do sistema de que voltem a delinquir a fim de que possam justificar o próprio sistema penal:

"Quando alguém passou por esses programas de reinserção, por exemplo, por um reformatório, por um alojamento destinado a prisioneiros  libertados, ou por não importa qual instância que a um só tempo ajude e vigie os recidivistas, isso faz com que o indivíduo continue marcado como delinquente: junto ao seu empregador, ao proprietário de seu alojamento. Sua delinquência o define, assim como o relacionamento entre ele e o meio ambiente, tão eficazmente que se chega ao ponto, de o delinquente só poder viver em um meio criminal" (FOUCAULT, 2012).

Assim, partindo do ponto de vista do pensamento do pensador francês, a produção de discursos de ressocialização e inclusão social embora se sustentem em bases democráticas e das garantias constitucionais servem ainda ao sistema punitivo. Mostram-se como um aparato legal e legítimo capaz de materializar as promessas da constituição oferecendo a ressocialização, a moralização, a reinserção social do indivíduo, a reabilitação e o retorno ao convívio social, no entanto contribuem para a ampliação dos estigmas.

A ressocialização, para Carlos Valois, é um ideal não resultado de elaboração científica, e sim forjado e imposto à execução penal, servindo apenas para fundamentar a negação de direitos e agravar as penas:

"(…) o termo ressocialização nunca resultou de um dado empiricamente comprovado. Nasceu no contexto de um ideal humanizador das prisões e acabou servindo mais como legitimador do que como motivo de efetiva reforma. Subterfúgio, reduzido a instrumento de retórica, para convencer a sociedade e o Estado de que era necessário investir na prisão, melhorando-a, mas, como consequência, sustentando-a.” (VALOIS, 2013)

Com isto, não causa estranheza que apesar dos esforços para a ressocialização haja tamanha reincidência. E que, invariavelmente estes indivíduos marcados pelo sistema penal retornem ao cometimento de novos delitos, e assim regressem ao cárcere, reintegrando o enorme contingente da população carcerária e voltem a receber o tratamento cruel e desumano a justificar mais programas de ressocialização.

Para Cezar Roberto Bitencourt, é “paradoxal falar da ressocialização como objetivo da pena privativa de liberdade se não houver o controle do poder punitivo e a constante tentativa de humanizar a justiça e a pena.”(BITTENCOURT, 2011). Por isso entende-se que a responsabilização do Estado é fundamental para se conquistar a execução penal de forma legal.

Constata-se, portanto, que há em relação a este tema da ressocialização, uma disjunção entre o universo normativo e a realidade (FERRAJOLI, 2014).  O plano da aplicação prática da pena revela um esforço mais veemente em submeter o apenado a um sofrimento que se aproxima mais do exercício de vingança do Estado sobre o preso  (BECCARIA, 2003), do que demonstra o interesse em reabilitá-lo. Esta circunstância se percebe tanto pelas violações dos direitos das pessoas encarceradas quanto pela ausência de programas destinados à ressocialização de condenados sujeitando o indivíduo preso a inúmeras vulnerabilidades (GRECO, 2016).

O abismo entre as proposições normativas e a aplicação efetiva destas políticas de ressocialização social evidenciam como os operadores do sistema de justiça olham para este tema. Normalmente, não distinguem entre a prevenção reabilitadora voltada ao próprio apenado para evitar novos delitos, e a prevenção como função da pena, na perspectiva da prevenção geral, em que a punição assume o efeito dissuasório aos demais signatários do pacto social (BITTENCOURT, 2011).

Vige nessa postura os efeitos de uma educação jurídica positivista, fundada num sistema de normas que se autoreferência, num circuito fechado, inviabilizando o diálogo com outros saberes. O fator humano, nessa perspectiva penal, se reduz a mero ajustamento, a partir da subsunção do fato à norma, e a sujeição do indivíduo desviado ao rito de verdade imposto pelo sistema de justiça (FOUCAULT, 2003). Com isto, não é difícil deduzir que temas que proponham aos operadores jurídicos e a própria “ciência jurídica” a humanização, a ressocialização e a reabilitação de uma pessoa que violou o pacto social tendem a ser vistos com estranhamento e desconfiança.

O sistema de justiça não age com neutralidade. Responde a um sistema penal, especializado na produção de discursos legitimadores para determinadas ações empreendidas por seus operadores.  Assim, o discurso médico, o psiquiátrico, o higienista, o ressocializador nascem de seu centro discursivo, a partir de uma feição normativa. O discurso da ressocialização também se origina desta matriz discursiva que paradoxalmente também elabora as regras de contenção responsável pela  criminalização de condutas e atua no sentido de realizar o objetivo do sistema penal.

O discurso ressocializador portanto, embora encontre sua legitimação no mundo do sistema normativo se dirige a indivíduos anteriormente sujeitos ao processo de criminalização e que respondem ao mundo da realidade, o do “ser” no qual o efeito do discurso criminalizador opera. Neste mundo real está o cárcere, o preconceito, os estigmas daqueles que foram marcados pela passagem pelo sistema prisional, nele a violência é o principal interlocutor dos processos de exclusão, desafiando o projeto de reinserção em seu caráter preventivo e ressocializador.

Há, portanto,  uma relação assimétrica, de evidente desajuste entre a ideia da ressocialização prometida pela lei e aquela praticada pelo poder judiciário, revelando um “abismo entre a dogmática jurídica e a prática forense faz com que a pena de prisão tenha como uma única finalidade a punição” (KAZMIERCZAK, 2015). Essa aparente refração acaba se traduzindo na recusa do processo de humanização das penas e compromete o projeto de reinserção social a partir de uma perspectiva inclusiva e democrática a que a justiça é convidada a aderir na modernidade (SANTOS, 2011). Assim, a questão da ressocialização precisa ser apresentada perante um novo prisma, o da corresponsabilidade, enlaçando todos os poderes da república.

A partir de tal premissa, deduz-se que o poder judiciário não pode se restringir à mera aplicação da lei, e com isto ignorar a realidade social que permeia todo sistema penal, uma vez que a maioria esmagadora do contingente que integra a população carcerária é formada por pessoas pobres, mestiços ou negros, de baixa escolaridade, indivíduos marcados pela exclusão, violência e vulnerabilização de seus direitos. (WACQUANT, 2013).

3. A função do poder judiciário e o novo paradigma

Acerca da função do sistema de justiça criminal, Michel Foucault afirmava que sua função  na dinâmica social consistia em gerenciar ilegalidades (FOUCAULT, 2003). Este exercício se restringe na aplicação das penas e no encaminhamento do sentenciado aos institutos correcionais.

Assim, a função judicante busca ajustar a norma à conduta desviada do indivíduo. Esta prática possui contornos legais previamente definidos pela lei, conforme se observa no artigo 59 do Código Penal. Nele se presentifica não apenas a imposição da sanção penal, determinando a retribuição da sociedade ao delinquente, como também expressa o princípio da prevenção:

"Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;

II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;

III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;

IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível."

Em termos legais, portanto, a ressocialização encontra-se entre uma das finalidades da pena, em consonância com o disposto no artigo 10 da Lei de Execução Penal que descreve em seu conteúdo o dever do Estado, na aplicação da pena em  “prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. Nesse sentido Guilherme de Souza Nucci afirma:

“Que a pena tem vários fins comuns e não excludentes: retribuição e prevenção. Na ótica da prevenção, sem dúvida, há o aspecto particularmente voltado à execução penal, que é o preventivo individual positivo (reeducação ou ressocialização). Uma das mais importantes metas da execução penal é promover a reintegração do preso à sociedade. E um dos mais relevantes fatores para que tal objetivo seja atingido é proporcionar ao condenado a possibilidade de trabalhar e, atualmente, sob enfoque mais avançado, estudar." (NUCCI, 2010)

Assim, apesar de a ressocialização, constar legalmente como uma das funções da pena, a realidade informa que o Estado se abstém de prestar esse serviço. Com isto, a pena se restringe apenas a função da retribuição, da devolução ao sentenciado do mal que causou à coletividade,  esvaziando a função socializadora e corroborando o pensamento de Beccaria, acerca da vingança estatal contra o desviado (BECCARIA, 2003).

O reiterado tratamento desumanizado dirigido às pessoas encarceradas produz um claro deficit democrático. Observa-se um esforço no sentido de elastecer a teia punitiva do Estado e um empenho menor para reabilitação das pessoas encarceradas. Paira sobre eles o chamado estado de exceção (AGAMBEN, 2004), pelo qual seus direitos são negados e passam a ser alvo de uma violência estrutural praticada pelo Estado.

A manutenção desta situação e a omissão inconstitucional perante a efetividade dos direitos fundamentais deu ensejo a intervenção do Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 347 MC/DF), na qual a Suprema Corte concluiu existir no sistema carcerário brasileiro um “estado de coisas inconstitucional”, caracterizado por um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais dos presos, ofendendo-lhes a dignidade, a higidez física e a integridade psíquica, convertendo-se a internação em penas cruéis e desumanas, contrariando os dispositivos constitucionais1.

Assim, o poder judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, perante a insistente  omissão dos demais poderes, conclui que a solução para a crise do sistema penitenciário passa pela superação do isolamento dos três poderes e se aproxima da corresponsabilização e na cooperação de esforços para a resolução dos problemas estruturais que permeiam o sistema.

Esta postura cooperativa é determinante para a superação da ideia de isolamento dos três poderes e a consequente responsabilização isolada, atribuída tão somente ao poder executivo. Contribui ainda para a proposição de políticas públicas de atuação orgânica, a envolver  mutuamente os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, dos diferentes níveis federativos:

"A responsabilidade pelo estágio ao qual chegamos não pode ser atribuída a um único e exclusivo Poder, mas aos três – Legislativo, Executivo e Judiciário –, e não só os da União, como também os dos estados e do Distrito Federal. Há, na realidade, problemas tanto de formulação e implementação de políticas públicas, quanto de interpretação e aplicação da lei penal. Falta coordenação institucional. O quadro inconstitucional de violação generalizada e contínua dos direitos fundamentais dos presos é diariamente agravado em razão de ações e omissões, falhas estruturais, de todos os poderes públicos da União, dos estados e do Distrito Federal. A responsabilidade do Poder Público é sistêmica, revelado amplo espectro de deficiência nas ações estatais. Tem-se a denominada “falha estrutural”. As leis existentes, porque não observadas, deixam de conduzir à proteção aos direitos fundamentais dos presos. Executivo e Legislativo, titulares do condomínio legislativo sobre as matérias relacionadas, não se comunicam. As políticas públicas em vigor mostram-se incapazes de reverter o quadro de inconstitucionalidades.” (ADPF 347)

Certamente, o poder judiciário não pode se eximir de seu papel socializador,  assumindo uma nova postura democrática considerando ainda que é responsável também pelo agravamento desta crise, através do implemento de um número excessivo de prisões provisórias, fato que agravou a superlotação carcerária e não diminuiu a insegurança social (ADPF 347). De acordo com diagnóstico mais recente do CNJ quanto ao sistema carcerário brasileiro, em Janeiro de 2017, o número total de presos no Brasil foi de 654.372, com total de 221.054 provisórios, sendo o tempo médio da prisão provisória, no momento do levantamento, uma variação de 172 dias a 974 dias .

4. Percepção dos atores do sistema de justiça

Apesar de todo o exposto, porém, as opiniões de muitos dos atores do sistema de justiça parecem, em sua maioria, desalinhadas e distantes desta nova realidade fomentadora de políticas de inclusão do poder judiciário, pelo que se  pode depreender do Relatório Final de Pesquisa Segurança Cidadã na Região Norte do Brasil: percepções social e institucional sobre homicídios na Amazônia Ocidental, publicado em 2016, para o desenvolvimento de pesquisas aplicadas sobre homicídio doloso nos municípios de Boa Vista/RR, Manaus/AM, Porto Velho/RO e Rio Branco/AC, incluídos no Pacto Nacional pela Redução de Homicídios, e o aprimoramento da Política Nacional de Segurança Pública.

O estudo discute as percepções dos atores sociais e institucionais acerca dos homicídios nas cidades supramencionadas, e as falas dos entrevistados são importantes para melhor compreensão da percepção social constituída entre os atores que compõem as instituições, como a de um promotor de justiça:

"Acerca das dificuldades institucionais (governo e sociedade) para a prevenção dos homicídios, dois dos entrevistados do Judiciário consideram que o Tribunal não previne, destacando-se a seguinte observação: Não, isso não é papel do tribunal. O trabalho preventivo é da polícia. Então o tribunal só pode demonstrar esse caráter preventivo através da aplicação da sanção (juiz). Os promotores alegaram, falta de diálogo entre os órgãos e a sociedade, falta de coesão social e o déficit de promotorias, cabendo expor a: Falta de comunicação muito grande entre os valores que a sociedade deveria cultivar e o que ela realmente cultiva (...) A sociedade e as instituições estão cada vez se encastelando nelas mesmas, param de se comunicar, e aí ocorre uma ruptura completa (...) medievalização da cidade em condomínios, ela tem colaborado com esse tipo de coisa (MP)." (grifo meu).

A frase acima corrobora com entendimento de Boaventura de Sousa Santos, quando diz:

“A organização judicial estruturada de forma piramidal controlada no vértice por um pequeno grupo de juízes de alto escalão, onde o prestígio e a influência social do juiz dependem de sua posição na hierarquia profissional, acaba perpetuando o ethos profissional dominante e fortalece o espírito corporativista, o que, na prática, contribui para um isolamento social do judiciário, fechando-o, enquanto a sociedade em que ele se assenta vai se diversificando e torna-se cada vez mais plural". (SANTOS, 2003)

Muitos dos atores sociais afirmaram que a justiça cumpre seu papel através da condenação dos acusados, apenas um deles faz inferência a questão da ressocialização em que o Estado não cumpre com essa etapa. Na fala de uma assistente de saúde do município de Rio Branco:

“É tá prendendo, tá prendendo. Só não tá julgando. E hoje você vê ... tão prendendo muito. Pode ver que na Francisco de Oliveira onde é uma penitenciaria que tá sobrecarregado. Lotado. Muitas prisões. Muitas mesmo e agora eles estão usando até outras medidas de liberdade de alguma coisa pra vê se desafoga mais. Porque eu vejo que a gente tem que trabalhar mais pra que essa pessoa não seja presa. Porque chega lá já não tem mais jeito. Então tem que trabalhar aqui fora pra que não venha (...) Tá cumprindo. Lentamente, mas tá cumprindo” (J. V. M., jul. 2016).

Quanto a projetos para redução ou prevenção de homicídios, raríssimos foram lembrados por quaisquer respondentes. Os atores afirmaram ter mais conhecimento para os programas de forma mais ampla. Dois juízes afirmaram que de forma geral precisaria de mais investimentos nas varas específicas, e lembraram da igreja católica em seus projetos que atuam na linha de prevenção de forma mais ampla para essas pessoas. Sobre o conhecimento de algum projeto prevenção da violência de forma mais ampla, grande parte negou conhecer. Uma juíza mencionou os projetos “Começar de novo”, do CNJ, e “Reeducar”, do Tribunal de Justiça do Amazonas, e um promotor de justiça assinalou:

"Tem vários programas aqui das promotorias da infância, as promotorias elas tratam de questões relacionadas a crianças em situação de risco, então isso já é uma resposta estatal, penso eu, à questão da violência que futuramente poderia redundar em homicídio".

De acordo com o entendimento de alguns dos juízes dos tribunais júri, a prevenção dos homicídios pelos tribunais de justiça é bastante limitada ou praticamente sem efeito. Sua capacidade de prevenção é posta em dúvida em função de que o tribunal apenas julga os processos, não tendo poder de prevenção no cotidiano da vida nas cidades.

Observou-se que os agentes públicos tem a percepção para o aumento do efetivo policial, no policiamento ostensivo e na educação, além de investimentos na área que possa ser voltados aos projetos sociais, às comunidades como meio social para impedir mortes futuras. Dois juízes e promotores afirmaram que uma política de prevenção efetiva seria com mais efetivo nas ruas, estruturas adequadas, uma polícia mais preparada. Alguns membros da Justiça, para operacionalizar projetos, citaram a realização de palestras sobre drogas, acompanhamento de psicólogo para depressão, Justiça comunitária, Justiça restaurativa, restituir a autoridade do professor. A ideia da prevenção pela via da educação foi exposto na fala de um delegado entrevistado:

"Eu já cheguei ao ponto de acreditar que a Segurança Pública não consegue mais não, essa questão não e mais de segurança publica mais não, isso aí você vai ter que mudar a cultura da sociedade, você vai ter que mudar, vai ter que fazer um trabalho de educação mesmo, social mesmo. É nas escolas. A polícia não tem o que fazer mais não. Por que não adianta prender, por que você prende um e aparece cem. Isso é igual o trafico de drogas mesmo, se você não conscientizar a população dos males da droga pra não ter usuários, você não vai conseguir combater o tráfico."

Sobre a capacidade institucional do Estado e da sociedade para atuar sobre os homicídios, alguns juízes citaram julgar com rapidez, formação educacional, profissionalização, prevenção das drogas, inteligência, escolarização, religião. Os membros do Ministério Público citaram o combate as organizações criminosas e não se reconheceram com atuação preventiva, atribuindo essa competência à polícia.

Dessa forma, o relatório conclui "no que diz respeito à capacidade institucional do Estado e da sociedade para traçar caminhos e espaços de diálogo e soluções, formular políticas, adotar estratégicas e mecanismos para redução de homicídios, observa-se uma dispersão de conceitos e de ideias, muitas vezes empregando o mesmo termo”. Grande parte dos atores do sistema indica mais efetivo policial e construção de mais presídios como proposta para melhoria da crise, o que nos leva aos dizeres de Kazmierczak:

"Considerando a possibilidade parcerias público-privadas para a construção de presídios, o que ainda é insipiente no Brasil, não podemos vislumbrar uma mudança estrutural em um curto espaço de tempo, mormente quando ainda não possuímos recursos nem mesmo para uma educação e saúde de qualidade. Dessa forma, mesmo com uma política de investimentos no sistema prisional não encontraríamos uma solução capaz de atender a crescente massa de encarceramentos existentes. Faz-se necessário uma mudança no próprio sistema penal, através de uma política criminal que seja capaz de conter a crescente violência e que não conduza a um encarceramento em massa”. (KAZMIERCZAK, 2015).

Assim, esses destaques trazem à tona a ideia de descrença na mudança da situação do sistema penitenciário por intermédio dos Tribunais, conforme Valois:

“Estes estão cada dia mais distantes do cidadão do Direito Penal e a abstração que fazem da real condição do cárcere é indício de que não se devem esperar mudanças de instituições que compõem a superestrutura estatal. Um juiz pode, é claro, e tem grandes possibilidades para tanto, ajudar na desconstrução das engrenagens desumanas desse sistema, mas deve sair do local que lhe é reservado, deve-se despir da toga e descer os degraus de hierarquia social em que o Judiciário é posto, para ver o preso como igual, um semelhante.”(VALOIS, 2013)

Pois com o exposto, a crise do sistema prisional, tornada mais visível após uma série de rebeliões e mortes nas unidades prisionais do país, evidencia que a política principal vigente para indivíduos que cometem delitos é o encarceramento, não sua reabilitação. Além de que, a ressocialização em sua essência, supõe um processo de interação e comunicação entre indivíduo e a sociedade (MUNOZ CONDE, 1979), o que claramente, pelas respostas dos entrevistados, parece difícil de se efetivar com tantas dispersões de conceitos e uma visão de Justiça distante do modelo democrático já mencionado.

A crítica ao ideal ressocializador e a cultura do encarceramento, demonstrando pelas falas dos atores do sistema, ressoam em trecho de Zygmunt Bauman:

"Além da função de reabilitação, Thomas Mathiesen examina escrupulosamente no seu livro Prison on Trial outras afirmações amplamente utilizadas para justificar o uso da prisão como método de resolver problemas agudos e nocivos: as teorias do papel preventivo das prisões (tanto no sentido universal como individual), de incapacitação e dissuasão, de simples retribuição; apenas para achá-las todas, sem exceção, logicamente falhas e empiricamente insustentáveis. Nenhuma evidência de espécie alguma foi encontrada até agora para apoiar e muito menos provar as suposições de que as prisões desempenham os papéis a elas atribuídos em teoria e de que alcançam qualquer sucesso se tentam desempenhá-los — enquanto a justiça das medidas mais específicas que essas teorias propõem ou implicam não passa nos testes mais simples de adequação e profundidade ética. (Por exemplo, “qual é a base moral para punir alguém, talvez severamente, para impedir que pessoas inteiramente diferentes cometam atos semelhantes?” A questão é tanto mais preocupante do ponto de vista ético pelo fato de que “aqueles que punimos são em larga medida pessoas pobres e extremamente estigmatizadas que precisam mais de assistência do que punição)" (BAUMAN, 1999)

O tema da corresponsabilidade surge da reflexão perante a crise do sistema prisional, objeto da ADPF 347. Tal postura do poder judiciário deriva de uma nova leitura do papel democrático deste poder não restrito a função judicante, mas associado ao desenvolvimento de posturas que garantam a realização dos direitos humanos. Neste novo momento da modernidade, o poder judiciário é convidado a assumir um protagonismo, novas responsabilidades sobretudo no que concerne ao garantismo dos direitos, no controle da legalidade e na judicialização da política (SANTOS, 2011).

Em alinhamento a esta compreensão, Luís Roberto Barroso entende que ganha dimensão o papel do poder judiciário, como corresponsável pelo implemento das garantias constitucionais, desempenhando um papel iluminista de promoção de valores civilizatórios, adotando se necessário medidas contramajoritárias, para o fomento dos direitos dos presos, que via de regra, possuem repercussão negativa no corpo social. Tal postura do poder judiciário deriva da nova leitura do papel democrático deste poder que não o restringe tão somente a sua função judicante, mas ainda o autoriza ao desenvolvimento de posturas que garantam a realização dos direitos humanos.

“Uma das instigantes novidades do Brasil dos últimos anos foi a virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário. Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Tal circunstância acarretou uma modificação substantiva na relação da sociedade com as instituições judiciais, impondo reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão de seus poderes." (BARROSO, 2008).

Vivendo em um Neoconstitucionalismo, pós-positivismo ou Estado constitucional de direito a Constituição passa a ser o centro do sistema, marcada por uma intensa carga valorativa, superando-se a ideia de Estado Legislativo de Direito. Busca-se sua verdadeira eficácia, e a compatibilidade material além e acima da formal, devendo o Estado estar em consonância com o seu espírito, o seu caráter axiológico e os seus valores destacados.

A constitucionalização, aumento da demanda por justiça e ascensão institucional do Judiciário, formou no Brasil uma expressiva judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final em diversos temas envolvendo Políticas públicas, como a constitucionalidade de aspectos centrais da Reforma da Previdência (contribuição dos inativos) e da Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça);  Relações entre Poderes, na determinação dos limites legítimos de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebra de sigilos e decretação de prisão) e do papel do Ministério Público na investigação criminal; Direitos fundamentais e questões do dia-a-dia das pessoas, como a legalidade da cobrança de assinaturas telefônicas, a majoração do valor das passagens de transporte coletivo ou a fixação do valor máximo de reajuste de mensalidade de planos de saúde.  (BARROSO, 2008).

A estrutura e o funcionamento do Direito e da justiça criminal vêm se transformando profundamente, gerando muitas reflexões e descobertas de caminhos novos, vindo da crise vivenciada por todos os setores do pensamento, e um descrédito generalizado contínuo em relação às instituições.

Entre teorias socializadoras, Anabela Rodrigues faz um belo artigo sobre penas consensuais, narrando a sobrelotação nas prisões e a alteração da população prisional – uma população cada vez mais de toxicodependentes, de estrangeiros, de reclusos a cumprir penas muito longas e com problemas de saúde mental, que não é senão o resultado do endurecimento penal verificado nos outros níveis do sistema, e diz:

"A pena exprimia o imperium da justiça penal. Hoje, compreende-se que, numa preocupação de individualização e de eficácia, o delinquente deva ser associado à aplicação e à execução da sanção. O direito penal trilha uma via original procurando, cada vez mais, fazer assentar a punição no consentimento do delinquente. Desta forma, por um lado, considera-o como sujeito de direitos, e, por outro lado, tem em vista uma maior eficácia. Reconhece-se que a sanção mais útil é a sanção aceite pelo condenado, porque, ao mesmo tempo que estimula a sua participação no atingir dos objectivos pretendidos, desenvolve o seu sentido de responsabilidade. A ponto de se levantar esta interrogação: contratualizada em si mesma ou na sua execução, a sanção penal não estará em vias de mudar de natureza? "(RODRIGUES, 1999)

Norberto Bobbio, em introdução sobre o garantismo de Ferrajoli, comenta:

"Toda a obra está dominada pela convicção de que unicamente através de uma visão multilateral do problema será possível ao jurista, que não deve ser somente um frio e distante comentarista das leis vigentes, detectar e, em conseqüência, denunciar não apenas as deformações do sistema jurídico positivo, compreendido o desenvolvimento hipertrófico do direito penal ou a ilusão panpenalista, mas também, como se vê na parte final, desnudar todas aquelas situações em que permaneçam poderes extrajurídicos, sobre as quais o Estado de direito ainda não estendeu suas regras e que, enquanto tais, perpetuam relações de desigualdade, a que se dá o nome sugestivo de "poderes selvagens”."(FERRAJOLI, 2014)

O tempo urge por uma atualização na visão dos atores do sistema judicial, não só para se alinharem à evolução da ciência na atualidade, que já não funciona isolado de outros saberes, de uma visão realista, global, e consequentemente mais humanizada. Sem conceitos atualizados na mentalidade dos agentes, o vislumbre de iluminação se retrai, jogando-nos às trevas de cárceres medievais permanecentes na nossa sociedade em pleno século XXI.

5. Conclusão

Nosso ordenamento jurídico apresenta a ressocialização como garantia dos direitos fundamentais. Temos garantias formalmente impostas na Constituição Federal de 88, e propósito de integração social do condenado na Lei de Execuções Penais, mas não é novidade a verificação no sistema prisional brasileiro da violação generalizada e sistemática dos direitos fundamentais dos presos, passando a ressocialização a ser não só um termo vago e inócuo, mas também legitimadora e sustentadora do poder estatal de punir, de conservação do cárcere e, consequentemente, de uma cultura encarceradora sob um falacioso discurso ressocializador.

Essa situação crítica do sistema prisional veio a caracterizar a vigência de um “estado de coisas inconstitucional” em que a internação dos custodiados pelo Estado se converte em penas cruéis e desumanas, contrariando as promessas constitucionais, como deduziu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o pedido liminar da ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 347, em 2015. Através desse julgamento, o próprio poder judiciário, perante a insistente omissão dos demais poderes, conclui que a solução para a crise do sistema penitenciário passa pela superação do isolamento dos três poderes e se aproxima da corresponsabilização e na cooperação de esforços para a resolução dos problemas estruturais que permeiam o sistema.

Tal postura do poder judiciário deriva de uma nova leitura do papel democrático deste poder, não restrito a função judicante, mas associado ao desenvolvimento de posturas que garantam a realização dos direitos humanos, advindo de novas reflexões e transformações na estrutura e funcionamento do Direito e da justiça criminal na modernidade, do pós-positivismo, momento em que a Constituição passa a ser o centro do sistema, marcada por uma intensa carga valorativa, buscando-se sua verdadeira eficácia e a compatibilidade material além e acima da formal, devendo o Estado estar em consonância com o seu espírito e caráter axiológico.

Apesar das inovações reflexivas e científicas do Direito na modernidade, os atores do sistema não manifestam alinhamento a essa evolução e a quebra dos velhos paradigmas legitimadores do poder punitivo e encarcerador do Estado, conforme demonstrado pelas diversas falas desses atores no Relatório Segurança cidadã na Região Norte do Brasil: percepções social e institucional sobre homicídios na Amazônia Ocidental, do Programa das Nações Unidas ao Desenvolvimento (PNUD). Demonstrou-se que grande parte dos atores do sistema posiciona-se em um local distante da realidade prisional, eximindo-se e retirando do Poder Judiciário a corresponsabilidade na efetivação dos direitos fundamentais, conservando assim a legitimação do controle social através do poder estatal de punir para “ressocializar”, relegando a outros poderes quaisquer ações positivas nesse sentido, indicando, como propostas para melhoria da crise, por exemplo, a criação de novos presídios ou mais efetivo policial.

6. Referências

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Data da conclusão/última revisão: 14/7/2019

 

 

 

Nina Cruz Antony Hoaegen

Advogada, mestranda em Direitos Humanos, Cidadania e Segurança Pública pela Universidade Estadual do Amazonas (UEA).