Os dois papéis do advogado: a dialeticidade entre a ciência e política na profissõa jurídica

O jurídico-político se concretiza através dos atores sociais (bacharéis/intelectuais) dispersos na sociedade (a nível político, a nível civil). Essa instância encontra, na prática desses atores, seus canais legítimos de reprodução social, e, por sua vez, são estes mesmos atores sociais que, com suas práticas, (em diversos níveis) reforçam e legitimam os níveis políticos-jurídicos da estrutura societária.

Edmundo Lima de Arruda Jr.

1 Introdução

Miguel Reale afirma que o direito possui um caráter tridimensional, que o caracteriza como ciência. Essa tridimensionalidade capaz de elevar o direito ao patamar de ciência pode ser reduzida, pelo menos sumariamente, no esquema: Ciência do Direito = Dogmática Jurídica + Sociologia do Direito + Filosofia do Direito (REALE, 2000).

A ciência do direito é, pois, composta por três elementos, um tripé que o sustenta, qual seja a Dogmática Jurídica, a Filosofia do Direito e a Sociologia do Direito. A Dogmática Jurídica corresponde ao direito positivo, às normas e princípios do direito, bem como sua elaboração e interpretação. A Filosofia do Direito pretende promover a sistematização, valoração e contextualização teórica das normas e princípios do direito. E, por sua vez, a Sociologia do Direito é utilizada para uma melhor aplicação das normas e princípios já interpretados, sistematizados e valorados, frente a uma realidade social que somente pode ser apreendida no momento privilegiado da prática (“Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontra sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis” - MARX; ENGELS, 2001).

“A ‘teoria tridimensional’, na plenitude de sentido deste termo, representa, por conseguinte, a tomada de consciência de todas as implicações que aquela verificação estabelece para qualquer gênero de pesquisa sobre direito e suas conseqüentes correlações nos distintos planos da Jurisprudência, da Sociologia Jurídica ou da Filosofia do Direito” (REALE, 2000, p.54).

Por assim ser, o advogado, profissional do direito, deve deter conhecimentos nas três dimensões que compõem a ciência do Direito, daí a afinidade necessária do jurista com a filosofia e com a sociologia. Ou seja, o profissional do direito é meio filósofo e meio sociólogo.

Discutindo o ofício de sociólogo e levando em conta que o advogado é meio sociólogo, Florestan Fernandes (1976, p. 91-2) aborda o problema da opção na sociologia. As afirmações feitas por ele acerca da sociologia parecem, assim, ser aplicáveis à advocacia. Afirma ele que:

“No mundo em que vivemos, somos obrigados a tomar decisões, concernentes a assuntos práticos, sob critérios contraditórios. Com freqüência, os leigos esperam dos sociólogos alguma sorte de contribuição prática. Mas ficam ‘decepcionados’ ou ‘revoltados’ quando propomos sugestões ou recomendações que contrariam seus modos de ver as coisas. O que se espera dos sociólogos, portanto, na maioria das vezes, é a anuência declarada a certa concepção do mundo. Cada grupo social acredita que o inconformismo do sociólogo pode e deve ser contido nos limites de sua ideologia. Ainda que se represente o sociólogo como ‘cientista’, não se encara essa condição como a fonte de uma alternativa de escolha nem se discerne nela os imperativos de um ponto de vista, que tem suas exigências éticas específicas” (FERNANDES, 1979, p. 91).

Da mesma maneira, o advogado se encontra nessa situação. Tem de decidir a todo o momento sobre as mais diversas situações, sendo chamado quase sempre pela sociedade para indicar seu posicionamento e fundamentá-lo. E, assim como acontece com o sociólogo, o advogado também contraria as expectativas daqueles que o chamaram a se pronunciar, revelando que o esperado é a adoção de certa visão do mundo. Limitam, pois, o trabalho profissional a uma questão ideológica, desprezando o caráter científico da profissão e as conseqüências éticas decorrentes do referido trabalho.

“Como os meios de comunicação, de controle e de propaganda concentram-se de fato nas mãos das camadas socialmente dominantes, o que prevalece é a expectativa de adesão franca ou disfarçada do sociólogo aos interesses, valores e aspirações sociais incorporados às ideologias dessa camada. Há escassa simpatia e pouca tolerância diante de manifestações do ‘espírito científico’, que rompam com o círculo de ferro invisível do respeito sacrossanto pelos esteios da ordem social estabelecida. Isso suscita, naturalmente, graves dilemas morais, sobre os quais os sociólogos precisam refletir e entender-se com coragem, integridade intelectual e ânimo construtivo” (Idem).

Ou seja, a sociedade espera do sociólogo e, conforme se procura provar, do advogado a adesão a uma concepção do mundo, a qual é condicionada pelos interesses, valores e aspirações sociais incorporados às ideologias das classes dominantes, uma vez que elas controlam os meios de comunicação e propaganda. Assim sendo, nota-se o surgimento de um conflito moral, pois algumas contribuições práticas do advogado não chocarão com o referido círculo de ferro, mas outras exigirão “um clima especial de compensação e de acatamento, que é incompatível com ele”(Idem, p.92).

“Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio da religião objetiva fornecia, a dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço. Os decorativos prédios administrativos e os centros de exposição industriais mal se distinguem nos países autoritários e nos demais países. Os edifícios monumentais e luminosos que se elevam por toda parte são os sinais exteriores do engenhoso planejamento das corporações internacionais, para o qual já se precipitava a livre iniciativa dos empresários, cujos monumentos são os sombrios prédios residenciais e comerciais de nossas desoladoras cidades. Os prédios mais antigos em torno dos centros urbanos feitos de concreto já parecem slums e os novos bungalows na periferia da cidade já proclamam, como as frágeis construções das feiras internacionais, o louvor do progresso técnico e convidam a descarta-los como latas de conserva após um breve período de uso. Mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiênicos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a seu adversário, o poder absoluto do capital. Do mesmo modo que os moradores são enviados para os centros, como produtores e consumidores, em busca de trabalho e diversão, assim também as células habitacionais cristalizam-se em complexos densos e bem organizados. A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.113-114).

Nesse longo trecho, mas ao mesmo tempo pequeno em função da amplitude e clareza da explicação nele sintetizada, Adorno e Horkheimer esclarecem o sentido da construção da cultura de massas, ou melhor, da produção da cultura por uma indústria cultural massificadora, que muito mais que condicionar, acaba por determinar, de certa forma, a concepção do mundo vigente. Essa determinação consiste na equalização das necessidades e das vontades a partir dos interesses, valores e aspirações sociais incorporados às ideologias das classes dominantes (poder absoluto do capital) e, por conseguinte, dos seus meios de satisfação, utilizando-se métodos de reprodução. Tal tarefa não é difícil já que são poucos os centros de produção e de fácil utilização os meios de recepção dispersa (Idem, 114).

“Em suma, semelhante situação é, em si mesma, obstrutiva e insatisfatória. Ela restringe a esfera de autonomia moral e empobrece o alcance das reflexões pragmáticas na sociologia, valorizando critérios variavelmente irracionais de manipulação dos problemas humanos, em detrimento de inovações recomendáveis com base nas descobertas científicas. Daí ser de inapreciável importância o exame dessa questão, para estabelecer-se até onde o sociólogo pode aceitar acomodações frutíferas com expectativas etnocêntricas dos leigos e porque, em matérias mais complexas, cabe-lhe o dever de zelar por uma ‘estratégia de ação’ compatível com a natureza do pensamento científico” (FERNANDES, 1979, p.92).

Ora, parece estar claro que o senso comum, a experiência sensível, na maioria das vezes, engana o homem, revelando-se um critério irracional de explicação da realidade. Por isso, foram desenvolvidos métodos científicos capazes de melhor explicar a realidade, escapando dos erros a que se está exposto quando da utilização apenas do senso comum. O grande desafio do advogado é, então, trabalhar cientificamente com uma população apegada a construções baseadas na experiência sensível orientada pelos interesses, valores e aspirações sociais incorporados às ideologias das classes dominantes.

Por isso é importante que a independência do advogado seja assegurada, pelo menos no plano legal, em qualquer circunstância e em todo o território nacional (art. 2º, §3º, c/c art. 7º, I, do Estatuto da Advocacia e da OAB). Garantindo-se ainda ao advogado, no exercício profissional, a inviolabilidade de seus atos e manifestações, sendo que nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve detê-lo (art. 2º, §3º, c/c art. 31, §2º, do Estatuto da Advocacia e da OAB).

2 Advogado: cientista e cidadão

O advogado, prosseguindo com a comparação ao sociólogo em Florestan Fernandes, é cientista e cidadão.

“O sociólogo é cientista e, ao mesmo tempo, cidadão – membro de uma categoria social constituída por pessoas devotadas aos fins da ciência e membro de uma comunidade nacional. Queira ou não, seu comportamento e modo de ser são influenciados por atitudes, valores e ideais científicos, extracientíficos e, até, anticientíficos” (FERNANDES, 1979, p.92).

O advogado compõe uma categoria profissional e, portanto, social e, com fulcro em seu Código de Ética e Disciplina, “deve [...] aprimorar-se no domínio da ciência jurídica, de modo a tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais” (Preâmbulo), é, pois cientista. É também membro de uma comunidade nacional, o que é reforçado no Estatuto da Advocacia e da OAB no que tange aos direitos do advogado, como por exemplo o de exercer, com liberdade, a profissão em todo território nacional (art. 7º, caput e inc. I) e quando define que a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil (art. 44, caput e inc. II).

E como o comportamento do advogado sofre influências científicas, extracientíficas e anticientíficas, ele apenas estará livre de tensões:

“1º) onde a influência exterior não afeta, pura e simplesmente, o labor intelectual [...], ou onde ela se dá, mas pode ser neutralizada pelas regras da investigação e da explicação científica da realidade; 2º) naquilo em que os ajustamentos [...] ao seu mundo social não sofre influxo da ciência, ou nas esferas em que existe firme consenso sobre as aplicações consideradas legítimas das descobertas científicas” (Idem).

Então, existem duas hipóteses nas quais é possível manter coerência nos dois papéis do advogado, ou seja, entre trabalho profissional e exercício da cidadania. Mas há, no entanto, algumas hipótese em que “ou as expectativas polarizadas em torno dos papéis de ‘cidadão’ e de ‘cientista’ entram em conflito’, ou “aquilo que seria desejável em nome da ciência não encontra nenhuma viabilidade social” (Ibidem, 92-93).

Neste sentido, Florestan Fernandes apresenta duas tendências fundamentais, dentre as quais cabe destacar uma em que está inserida a realidade brasileira:

“Onde prevalece socialmente o intento de resguardar a ordem social competitiva, a colaboração intelectual do sociólogo pode ser essencial na elaboração de programas de reconstrução social, que tenham por objetivo aumentar as possibilidades de ajustamento dos indivíduos ou que visem a eliminar inconsistências básicas do sistema nacional imperante de integração social” (Ibidem, p.94-95).

Por isso, nota-se a forte influência do positivismo jurídico no Brasil, quer seja na elaboração de anteprojetos de lei, na elaboração teórica, dita doutrinária, na aplicação da lei no judiciário, e no ensino jurídico. Ou seja, o esforço intelectual do advogado, ou do jurista, tem se mostrado, na maioria das vezes, uma tentativa de manutenção do status quo, quando na verdade ele tem o dever de defender o Estado democrático de direito e de aprimorar-se no domínio da ciência jurídica e, por conseguinte, o dever de transformar a sociedade, buscando a igualdade e a justiça social.

Considerações Finais

O advogado, ao contrário do que muitos acreditam, tem dois papéis: o de cientista e o de cidadão. Enquanto cientista deve apropriar-se de métodos que possibilitem escapar das armadilhas do senso comum, para proceder a uma leitura mais próxima da realidade. E enquanto cidadão deve utilizar-se de suas interpretações para transformar a realidade. No entanto, esses papéis não podem ser fragmentados, eles se confundem e se fundem, ou seja, o advogado é, ao mesmo tempo, e sempre, advogado e cidadão, devendo, portanto, lutar pela transformação social em todas as situações de sua vida prática.

Para tanto, os papéis do advogado passam inevitavelmente pelo diálogo. No diálogo, as contradições não se esgotam, mas são tratadas de forma reflexiva, pressupondo o exercício da crítica que se completa com a autocrítica.

Ou seja, o advogado deve fazer-se presente em todos os espaços públicos e privados da sociedade para assegurar a defesa incondicional dos direitos do cidadão, a partir da defesa do Estado democrático de direito, para revolucionar a busca da igualdade e da justiça social para, enfim, cumprir com seu dever interminável de transformação social.

De outra forma, estará o advogado, como ainda hoje, trabalhando como boy a serviço do imperialismo e da dominação, servindo aos interesses de uma minoria, garantindo-lhes os direitos como se fossem privilégios de uma classe que pode pagar os seus honorários profissionais.

Referências

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de. Introdução à sociologia jurídica alternativa. São Paulo: Acadêmica, 1993.

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA ON-LINE. Disponível em: . Consulta em: 12/09/2005, às 15:00 hs.

FERNANDES, Florestan. A sociologia numa era de revolução social. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979.

FERNANDES, Florestan. O que é revolução?. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19.ed. Malheiros Editores São Paulo:, 2000.

WEFFORT, Francisco C. Por que Democracia ?. 4.ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

 

 

 

Éder Ferreira

Advogado Popular;
Graduado em Direito pela Universidade de Uberaba;
Consultor Jurídico da Assessoria Social e Pesquisa.