Justiça, direito e discriminação

O ordenamento jurídico abarca uma multiplicidade de subsistemas legais que recebem do entorno sócio-cultural distintas formas de vínculos sociais relacionais sobre os quais tratam de disciplinar normativamente, chegando às vezes a proposições contraditórias e dando lugar a conflitos valorativos no que se refere a uma adequada consecução da justiça. Um exemplo parece ser a situação dos enunciados normativos que regulam as relações familiares e laborais, em que convivem as aspirações sociais por um tratamento mais igualitário e a sombra da perversa natureza política dos elementos materiais e das relações de poder que caracterizam estes tipos de relação.

 Tendemos hoje a ver essas relações como puramente privadas, porque o liberalismo do XIX – não há liberalismo propriamente dito antes do XIX – nos acostumou a ver a esfera privada como esfera completamente despolitizada, isto é, como uma esfera na qual não se dão relações de poder de nenhum tipo. Mas é precisamente isso o que está agora de novo em disputa, isto é, que a relação entre  os cônjuges, entre o empregador e o empregado, entre o consumidor e as empresas, etc., seja efetivamente relações puramente privadas em sentido liberal, quer dizer, vazias de poder e, portanto, apolíticas, insuscetíveis de transformação, proteção e intervenção político-estatal.

Uma concepção republicano-democrática distingue, claro está, a esfera privada da pública (afinal, foi o republicanismo que inventou a institucionalização dessa distinção e forjou os primeiros instrumentos jurídicos para defendê-la e promovê-la), mas não admite que a esfera privada esteja livre de política, nem sequer, inclusive,  de algumas de suas mais dignificantes  esferas: a da família e a do trabalho.

            Desde esta perspectiva pode-se perceber, em seu sentido mais radical, o significado mais profundo da celebríssima sentença de Aristóteles, trivializada e prostituída até tornar-se praticamente incompreensível: que o homem é um  “animal  político” quer dizer que todas as suas relações sociais – incluídas as relações consigo próprio – são  potencialmente políticas, são relações de poder, de autoridade, de governo. Quer dizer que o homem é um animal social, que só socialmente se constitui como indivíduo separado e autônomo, e que a vida social – em qualquer de suas esferas – está prenhada de assimetrias  e desigualdades, de relações de poder.

Assim que a liberdade política de governar e ser governado, a liberdade – “política” também – de governar a própria vida, são condições necessárias da individualidade, de um existir separado e autônomo. Dizendo de outro modo, se parece razoável supor que podemos dispor conscientemente sobre nossas vidas ao menos em alguns aspectos, a garantia da liberdade (política) para controlar as condições dos vínculos sociais laborais que estabelecemos ao longo de nossa politizada existência tenderá a incrementar a formação da própria individualidade e, conseqüentemente, de nossa liberdade plena e de uma razoável igualdade material. Se, ao contrário, permitimos que sejam os demais que controlem tudo, desperdiçamos a  oportunidade de ser nós mesmos e de atuar com autonomia segundo nossas melhores preferências e desejos.

Esta última parece ser a atual situação das relações familiares e laborais no panorama sócio-cultural e econômico nacional, em especial o relacionado com os negros, as mulheres e os homossexuais.

            Neste particular, a garantia de uma adequada igualdade material nas relações familiares e de trabalho passa, antes de tudo, pela necessidade de ir mais além, não só da denominada liberdade negativa, senão também da positiva: se necessita de um aparato normativo e institucional que imponha ao Estado e a cada agente social em particular a obrigação de assegurar e de promover a (plena) liberdade dos cidadãos  (nomeadamente os negros , os homossexuais e as mulheres),  a fim de possam dispor dos meios indispensáveis para se autoconstituirem como entidade separada e autônoma, e que , em igual medida, garanta-lhes a plena capacidade para resistir a toda e qualquer interferência arbitrária em seus planos e oportunidades de vida.

Em realidade, já faz algum tempo que, sobre essa delicada – e por vezes dissimulada - questão, se rebaixou o nível do social, do ético e do esteticamente tolerável.  A extrema e dissimulada discriminação de que padecem esses indivíduos está fazendo com que os vínculos sociais relacionais (familiares e de trabalho) que estabelecem pareçam uma situação  instável, reprovável e feia. E isso é mau ao menos pelas seguintes razões de conseqüência: primeiro, porque torna extremamente vulnerável, e em grau diverso, essa amplíssima capa subalterna da sociedade. E com a vulnerabilidade vem a dependência, com a dependência a falta de liberdade e com a falta de liberdade, em grau diverso, a condição servil e a perda do auto-respeito.

Segundo, porque põe em mãos de uns poucos agentes sociais poderes e recursos desmedidos que podem  direcionar e condicionar as escassas garantias legais do lado de seus interesses privilegiados, socavando assim toda esperança de democracia real e quebrando a igualdade  social e política que deve cimentar  o ideal de cidadania. Finalmente, a discriminação e a desigualdade extrema de que ainda padecem esses indivíduos (os negros, os homossexuais e as mulheres) no âmbito familiar e  laboral quebra a comunidade, rompe os laços de fraternidade e desata, de um lado, a cobiça de uns poucos e, de outro, quando não a inveja e o ressentimento, sempre ao menos a frustração, e muitas, muitas vezes, a angústia e o desespero de  muitos.

Pese a estas razões – que por si já seriam bastante para se insistir em uma estratégia de combate contra toda e qualquer forma de discriminação de gênero, preferência sexual ou de raça - não faltam as dissimuladas justificações da desigualdade.  Trataremos apenas de duas. A primeira delas vem a dizer que a gente tem o que merece. Assim, por exemplo, como o rico empregador merece sua riqueza, prêmio por seu empreendedor dinamismo, o pobre empregado – por sua falta de aptidão e esforço – merece o seu oposto destino social. Assim como o leal e eficiente trabalhador merece conservar seu emprego, assim aquele que o perde merece o escarmento do desemprego, situação na qual merecerá permanecer se não mostra suficiente capacidade e boa disposição para a busca ativa de outro emprego ou ascensão profissional. Afinal, oportunidades não faltam, somente há que saber buscá-las (e inúmeros são os exemplos pessoais que se utilizam para justificar esse tipo de discurso:  Marília Gabriela,  “rei” Pelé, Elton John, entre “muitos” outros).

Esta justificação meritocrática da desigualdade é tão demagogicamente falsa como certo é o fato de que ninguém merece moralmente nem seu azar genético nem seu azar social, de por si muito desigualmente distribuídos. Ninguém merece moralmente a família que lhe tocou, por sorte, nascer (rica ou pobre, decente ou depravada) e nem, tão pouco, as oportunidades – favoráveis ou não – que essa família possa vir a brindar-lhe. E o mesmo cabe dizer dos traços pessoais ou dos talentos – poucos ou muitos - com que um determinado indivíduo vem ao mundo: ninguém os merece moralmente. Se é verdade que a justiça aspira a contra-arrestar os caprichos do azar – social e genético –, pouco justo será permitir que os indivíduos gozem sem regras nem freios de seus imerecidos diferenciais de oportunidade que esse azar lhes põe de bandeja. A distribuição das dotações sociais e genéticas – como não deixou de advertir John Rawls – correspondem  a um ativo comum da sociedade, ainda que somente seja porque é a sociedade quem as premia e valora ou porque somente em seu seio podem ser exercidas.

A outra mais comum justificação desse tipo discriminação e desigualdade a converte no necessário preço da liberdade. Em um mundo regido pelo livre mercado e assentado no sacrossanto princípio da liberdade de eleição, um Estado intervencionista poderia impor políticas redistributivas e regulamentações igualitaristas, mas somente o lograria a base de cercear essa mesma liberdade individual, a base de recortar e limitar a opções sobre as que se pode exercer essa “intocável” liberdade contratual e de eleição.

Este argumento é tão demagogicamente falso como certo é o fato de que a desigualdade e a discriminação implicam elas mesmas uma falta de liberdade, tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa desigualdade e discriminação. Porque falta de liberdade – de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir – é a que (ainda) tem o trabalhador assalariado que apenas chega ao fim do mês e não sabe se amanhã conservará o seu emprego; é o que  (ainda) sofrem todas as mulheres submetidas a um emprego ou casamento com escassas  oportunidades de ascensão profissional ou pessoal e todas  aquelas  desfavorecidas e discriminadas em grande parte de suas cotidianas relações de vida ; é o que  (ainda) padece  o homossexual que suporta o estigma social da dependência de valores arcaicos e paroquianamente espúrios.

Falta de liberdade é o que tem o empregado pobre, que depende da exígua caridade de seus patrões. Falta de liberdade é o que sofre o trabalhador negro – na hierarquia de uma empresa, por exemplo - porque oportunidades e desejos vitais  para ele dependem da vontade de seu empregador. Falta de liberdade, enfim, é o que padece aquele que vive (ou sobrevive) com a permissão de outro.  Por onde se vê, o mundo do trabalho e da família no contexto sócio-cultural e econômico brasileiro, porque distribuí de forma tão grosseiramente desigual as opções e as oportunidades, padece ainda de um profundo e crônico problema de falta de liberdade.

Por certo que a discriminação e a desigualdade têm muitas causas, mas a principal seguramente há de buscá-la no atual modelo (neoliberal) normativo-institucional e no vigente modelo anti-social de trabalho. O capitalismo é um modo de produção que vive da desigualdade e a retro-alimenta positivamente, vive da desigualdade entre classes.  Reproduz e amplia essa desigualdade porque o capitalismo distribui muitos distintos recursos de poder a dominantes e dominados. E distribui tão desigualmente o poder social  porque se baseia em um modelo de sociedade que não conhece limites a sua acumulabilidade  e permite formidáveis (hiper) concentrações de poder econômico e social que não somente escapam  a todo controle democrático senão que por inúmeras vias  conseguem uma sobre-representação institucional e política de seus privilegiados e minoritários interesses.

Assim que a batalha - até agora duramente perdida - contra essa extrema e perversa forma de desigualdade social e discriminação no trabalho e na família passa por buscar-lhe alternativas a este tipo de vínculo social relacional vigente, alternativas de tipo social-republicano, alternativas que permitam a esses discriminados cidadãos recuperar o controle democrático sobre as decisões que se referem aos direitos e deveres que decorrem de suas relações sociais e, dessa forma, e em igual medida, recuperar o controle sobre suas próprias vidas, isto é, sua verdadeira autonomia.

Neste particular, me parece que a melhor maneira de se viabilizar uma postura ético-crítica verdadeiramente transformadora do status quo dessa forma de desigualdade  discriminação social deve começar por um juízo formulado a partir das próprias vítimas sociais do sistema sócio-econômico vigente, isto é, o de se adotar a perspectiva daqueles que ainda se encontram nesta parte mais escura da vida, “no pior de todos os mundos possíveis”, para usar a expressão de Schopenhauer.

De forma abreviada, de elevar à categoria universal e incondicional de garantidor de uma igualdade aproximada e de não discriminação o princípio ético segundo o qual se deve procurar atuar de tal maneira que as conseqüências de nossas ações sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e a infelicidade humana: isto é,  que não se  produza sofrimento quando é possível preveni-lo, e aquele que é inevitável se minimize e grave com moderação aos membros individuais da sociedade, aos cidadãos.

Afinal, viver bem, eticamente, significa estar e se preocupar com os outros, ser um entre os outros dentro de um quadro institucional que nos afirme na condição de cidadão: o homem completo, ética e responsavelmente comprometido com a igualdade social, é o cidadão virtuoso, que combina a procura da felicidade pessoal com a exigência interpessoal da amizade e da solidariedade social, sob a égide de instituições justas.

Assim, enquanto para uma consciência cúmplice do sistema, as vítimas são um momento necessário, inevitável, um aspecto funcional ou natural do contexto sócio-econômico, para uma consciência atuante crítica e responsável, que só pode existir a partir de uma posição ética comprometida, as vítimas são reconhecidas como sujeitos éticos, como seres humanos que não podem (de forma livre, inviolável, autônoma e digna) produzir, reproduzir ou desenvolver suas vidas em comunidade, que foram excluídos da participação na discussão democrática e que são afetados por alguma situação de verdadeira morte existencial.

Antes do que buscar a “felicidade”, trata-se, simplesmente, de situar toda e qualquer atuação social ou institucional no sentido de impedir o sofrimento e a miséria  da maior quantidade possível de indivíduos ou, de forma positiva, de  saber ouvir a voz do discriminado ou de abraçar uma igualdade que  abranja as mulheres, os negros e os homossexuais em suas relações familiares e laborais. E a infelicidade, mais exatamente a aspiração de todo ser humano de não se ver exposto ao sofrimento,  não só pode ser universalizada - o que para todos os homens significa infelicidade se pode mencionar em concreto: enfermidade, padecimento físico, discriminação, dor, pobreza, fome, carência de oportunidades etc. - como somos os únicos seres viventes que estão cognitivamente dotados da capacidade para poder remover (consciente e intencionalmente) o sofrimento e as desvantagens evitáveis.

Com efeito, o êxito ou o fracasso de toda e qualquer  política de combate à desigualdade social e discriminação no trabalho e na família depende em grande medida do modo como as instituições que governam a vida pública sejam capazes de incorporar esse princípio ético nas estratégias de suas respectivas atuações. Compreender a situação daquele que se encontra em condição menos favorável parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum.

Dizendo de outro modo, parece seguro afirmar que o mais alto mandamento de uma ordem justa (livre e igualitária) consiste na supressão ou redução do máximo possível de miséria e sofrimento desses indivíduos em seu conjunto. É necessário, na ética e práxis do cotidiano, que nos situemos no lugar do outro para reconhecer que cada um de nós não é mais que um ser entre outros, todos os quais têm desejos e necessidades que lhes importam, o mesmo que a nós nos importam nossas necessidades e desejos. Que somente situando-se desde o ponto de vista dessas vítimas sociais será possível representar o sentido e a função da justa igualdade social como unidade de um contexto vital, ético e cultural: da vítima, ponto de partida e chegada da atuação institucional e social, desenhada para a cooperação, o diálogo e a emancipação. Que, em seu "existir com" e situados em um determinado horizonte histórico-existencial, esses membros da humanidade reclamam continuamente aos outros, cuja alteridade interiorizam, que justifiquem a legitimidade de suas eleições aportando as razões que as sobejassem e as motivam.

Apenas assim essas vítimas sociais terão a oportunidade para emancipar a si mesma em uma sociedade “livre, justa e solidária”. Enquanto viverem na miséria, sob o manto perverso da mais bárbara e injustificada discriminação, dignidade humana, liberdade, igualdade e cultura, não são para elas sequer meras possibilidades humanas. E que eu tenha notícia, aos alienados e explorados, aos famintos e sedentos, aos discriminados e excluídos, direitos humanos somente pode aparecer-lhes em forma de discursos acomodados e maculados pela mais vil e dissimulada ineficácia. Por conseguinte, até que os “mais desiguais” não sejam liberados de sua miséria e sofrimento, todo e qualquer discurso sobre cidadania e justiça não passará de mera retórica dessorada e vazia de conteúdo.

Essa parece ser a “solução” ética para a desigualdade social e a discriminação no trabalho e na família, e cujo compromisso cabe a cada um de nós, no mais íntimo de nossa consciência moral de responsabilidade pessoal e solidariedade social; ou, para dizer  em termos mais modestos e mais realistas: é de cada um o dever ético de lutar contra toda e qualquer forma de injustiça.

 

 

 

Atahualpa Fernandez

Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia /Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política / Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito Público /UFPa.; Professor Titular da Unama/PA e Cesupa/PA;Professor Colaborador (Livre Docente) da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana/ Laboratório de Sistemática Humana); Membro do MPU (aposentado) ; Advogado.