SUMÁRIO

1. Introdução; 2. Poder-dever de apurar irregularidade funcional; 3. Existência de justa causa para instauração de Procedimento Punitivo; 4. Instauração de Procedimento Punitivo e o Direito da Personalidade; 5. Considerações finais.

 

RESUMO

O presente estudo aborda o assunto relacionado à inexistência de dano moral a servidor público em razão da instauração de procedimento punitivo de caráter disciplinar pela Administração Pública Federal.

Inicialmente, é apresentada uma breve exposição sobre o poder-dever da Administração Pública Federal de apurar condutas faltosas dos servidores públicos.

Posteriormente, é abordada a necessidade de verificar a existência de indícios de autoria e materialidade de infração disciplinar antes que seja determinada a instauração de procedimento disciplinar, haja vista os efeitos de natureza moral imputados ao agente público decorrente da apuração de irregularidade funcional

Por fim, é afirmado que a instauração de procedimento punitivo não configura, por si só, violação de direito da personalidade de servidor público.

Palavras-chave: Instauração de procedimento punitivo. Poder-dever de apuração. Não configuração de dano moral.

 

INTRODUÇÃO

A Administração Pública sempre deve investigar infração disciplinar cometida por agente público no exercício das suas funções, porquanto a apuração decorre do poder disciplinar, que tem por fundamento o poder hierárquico, o qual possui caráter irrenunciável.

Os instrumentos utilizados para apuração de fatos relacionados à responsabilidade administrativa de servidor público, e, se for o caso, para a aplicação da respectiva penalidade administrativa, são o processo administrativo disciplinar e a sindicância acusatória.

A autoridade competente para determinar a apuração do cometimento de irregularidade funcional deve avaliar a existência de indícios de autoria e materialidade de infração funcional antes que seja instaurado o procedimento disciplinar.

A demonstração de elementos probatórios mínimos que evidenciem o cometimento de falta disciplinar constitui pressuposto para deflagração do procedimento punitivo em razão da repercussão moral suportada pelo agente público.

Diante desse contexto e considerando a constante judicialização da matéria, a abordagem da inexistência de dano moral a servidor público em razão da instauração de procedimento disciplinar justifica a análise de alguns aspectos desse tema.

 

PODER-DEVER DE APURAR IRREGULARIDADE FUNCIONAL

O art. 143 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, estabelece que a autoridade competente que tiver conhecimento de ilicitude no serviço público deve adotar as medidas necessárias para sua apuração, in verbis:

Art. 143.  A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.

Depreende-se do referido dispositivo legal que é cogente a averiguação disciplinar pela autoridade competente diante da ciência de fatos que possam render ensejo à responsabilidade administrativa de servidor público.

            A respeito da obrigatoriedade de apuração irregularidade administrativa imputada a servidor público, cumpre colacionar a seguinte ementa de julgado do Superior Tribunal de Justiça – STJ sobre o assunto em questão, in litteris:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. ANALISTA JUDICIÁRIO, EXECUÇÃO DE MANDADOS. SINDICÂNCIA INVESTIGATIVA E PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DENÚNCIA ANÔNIMA. PODER-DEVER DA ADMINISTRAÇÃO. ART.143 DA LEI 8.112/1990. DENÚNCIA ACOMPANHADA POR OUTROS ELEMENTOS DE PROVA SUFICIENTES A DENOTAR A CONDUTA IRREGULAR DO SERVIDOR. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA E DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE. OBSERVÂNCIA DA REGRA DO ART. 149 DA LEI 8.112/1990. EXIGÊNCIA APENAS DO PRESIDENTE DA COMISSÃO OCUPAR CARGO EFETIVO SUPERIOR OU DO MESMO NÍVEL, OU TER NÍVEL DE ESCOLARIDADE IGUAL OU SUPERIOR AO DO INDICIADO. PRECEDENTES. ALEGAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE INFRAÇÃO DISCIPLINAR OU ILÍCITO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO. NECESSÁRIA DILAÇÃO PROBATÓRIA. DESCABIMENTO. RECURSO ORDINÁRIO NÃO PROVIDO.

1. Trata-se de recurso ordinário em Mandado de Segurança onde pretende o recorrente a concessão integral da segurança a fim de reconhecer a nulidade da Sindicância e do Processo Administrativo Disciplinar e, consequentemente, do ato apontado como coator, porquanto teriam sido deflagrados através de denúncia anônima, a violar a regra do art. 144 da Lei 8.112/1990; tendo em vista que o fato noticiado não configuraria evidente infração disciplinar ou ilícito penal, porquanto ocorrido em evento externo ao local de trabalho e que sequer haveria a comprovação da autoria e materialidade, não guardando relação direta com os deveres ou proibições impostas aos servidores públicos federais e diante da inobservância do princípio da hierarquia na formação das Comissões de Sindicância e de Processo Administrativo Disciplinar.

2. É firme o entendimento no âmbito do STJ no sentido de que inexiste ilegalidade na instauração de sindicância investigativa e processo administrativo disciplinar com base em denúncia anônima, por conta do poder-dever de autotutela imposto à Administração (art. 143 da Lei 8.112/1990), ainda mais quando a denúncia decorre de Ofício do próprio Diretor do Foro e é acompanhada de outros elementos de prova que denotariam a conduta irregular praticada pelo investigado, como no presente casu. Precedentes.

(...)

(RMS 44.298/PR, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/11/2014, DJe 24/11/2014)

Nessa linha argumentativa da obrigatoriedade de apuração de fatos relacionados a irregularidades funcionais atribuídas a servidores públicos, vale transcrever o seguinte argumento doutrinário, ipsis verbis:

Por conseguinte, em função do princípio da supremacia do interesse público, o superior hierárquico que toma conhecimento, pessoalmente ou por meio de denúncia, da prática de faltas administrativas de seu subordinado, está obrigado a apurar os fatos, mediante sindicância investigatória, ou exercitar o direito de punir estatal com a abertura de sindicância punitiva ou processo administrativo disciplinar (art. 143, caput, Lei Federal nº 8.112/90), sob pena de incorrer em crime contra a Administração Pública (condescendência criminosa: art. 320, Código Penal) (...)

(CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuística da Administração Pública. 5. ed. rev. atual. e aum. Belo Horizonte: Fórum, 2016. )

Não subsiste dúvida, portanto, a respeito do poder-dever atribuído à Administração Pública para apurar a responsabilidade administrativa de agente público, sendo certo que a mencionada averiguação ocorre por meio do procedimento punitivo de caráter disciplinar, cuja expressão vocabular engloba o processo administrativo disciplinar propriamente dito e a sindicância acusatória.

 

EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO PUNITIVO

            Após a análise do poder-dever da Administração Pública de averiguar as irregularidades funcionais eventualmente cometidas por agente público, cumpre asseverar que a instauração do respectivo procedimento disciplinar deve ser precedida de uma análise sobre a existência de indicativos do cometimento de irregularidade administrativa.

            Essa avaliação prévia sobre a deflagração ou não do procedimento punitivo disciplinar pode ser denominada juízo de admissibilidade.

            A Advocacia-Geral da União – AGU, por meio do Enunciado nº 9 do Manual de Boas Práticas Consultivas em Matéria Disciplinar, esclarece o seguinte sobre o juízo de admissibilidade no procedimento punitivo, in verbis:

           

ENUNCIADO N° 9

O juízo de admissibilidade quanto à instauração ou não de processo administrativo disciplinar, sindicância ou ainda procedimento de investigação prévia ou verificação preliminar será realizado pela autoridade administrativa competente para instaurar o processo. Eventual análise prévia deve ser procedida por setor de competência correcional da estrutura do próprio órgão. Havendo consulta acerca de questão jurídica específica, deve ser dissipada a controvérsia pelo órgão responsável pela consultoria e assessoramento jurídico. Indexação: Juízo de admissibilidade e averiguações preliminares. Autoridade competente para instauração. Controvérsia jurídica. Análise pelo setor competente. Obrigatoriedade. FUNDAMENTAÇÃO A presente recomendação tem por finalidade enfatizar, nos termos do art. 144, caput e parágrafo único, da Lei n° 8.112/90, e arts. 29, 48 e 49, da Lei n° 9.784/99, que o juízo de admissibilidade em matéria disciplinar não reclama, necessariamente, manifestação prévia das unidades responsáveis pela consultoria e assessoramento jurídico, o que somente deve ocorrer para a solução de questão jurídica específica eventualmente submetida pela autoridade competente. (Disponível em: http://agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/266945)

 

Deste modo, a autoridade competente ao realizar o juízo de admissibilidade deve averiguar a existência de indícios de autoria e materialidade de infração funcional que justifique a instauração de procedimento punitivo.

A respeito da existência de elementos probatórios mínimos (justa causa) que justificassem a instauração de procedimento disciplinar, cumpre colacionar o seguinte argumento doutrinário, in litteris:

Como firmado anteriormente, a instauração de processo administrativo disciplinar pressupõe a autoria e a materialidade evidenciadas quanto ao cometimento de falta funcional por servidor público, de sorte que, demonstrada indiscutivelmente a inexistência de justa causa, como no caso de o fato não caracterizar infração disciplinar, o funcionário acusado pode requerer, na via administrativa ou judicial, o trancamento do feito apenador indevidamente aberto.

(...)

Surpreendido com a instauração de processo administrativo disciplinar, nada obsta que o acusado, de plano, solicite reunião com o conselho processante, se não preferir apresentar petição a respeito, em vista de se ver excluído do feito ou de obter o respectivo arquivamento, por falta de justa causa, uma vez que as premissas da censura a seu comportamento incorreram em conclusões improcedentes na sindicância, não detectadas pela trinca instrutora do PAD, até porque não tomara conhecimento até então do teor das apurações. É imperioso que os membros do colegiado de processo administrativo disciplinar retirem a preconcebida suspeita injustificada (e incompatível com a ideia de colaboração hoje abraçada no direito administrativo pós-moderno) quanto aos motivos da defesa e se abra para ouvir as alegações, que podem poupar tempo e dinheiro da Administração Pública na condução desnecessária de feito sem justa causa para tramitar. Nada obsta que seja registrada ata que resuma o teor da reunião, assinada por todos os presentes. O Superior Tribunal de Justiça pontificou: “Configura-se admissível o trancamento do processo administrativo disciplinar em face da manifesta e inequívoca ausência do elemento subjetivo da conduta”. (CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuística da Administração Pública. 5. ed. rev. atual. e aum. Belo Horizonte: Fórum, 2016. )

 

Nesse mesmo sentido, vale transcrever os argumentos doutrinários relacionados à justa causa para o exercício da ação penal cuja orientação, mutatis mutandis, pode ser aplicada ao procedimento punitivo, in litteris:

(...)

A nosso ver, pelo menos para os fins do art. 395, inciso III, a expressão justa causa deve ser entendida como um lastro probatório mínimo indispensável para a instauração de processo penal (prova da materialidade e indícios de autoria), funcionando como uma condição de garantia contra o uso abusivo do direito de acusar. Em regra, esse lastro probatório é conferido pelo inquérito policial, o qual, no entanto, não é o único instrumento investigatório. (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 5ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017.)

 

Sustentava o ilustre processualista que o só ajuizamento da ação penal condenatória já seria suficiente para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões na órbita de seu patrimônio moral, partilhado socialmente com a comunidade em que desenvolve as suas atividades. Por isso, a peça acusatória deveria vir acompanhada de suporte mínimo de prova, sem os quais a acusação careceria de admissibilidade.

(...)

A nosso ver, a questão de se exigir lastro mínimo de prova pode ser apreciada também sob a perspectiva do direito à ampla defesa. Com efeito, exigir do Estado, por meio do órgão da acusação, ou do particular, na ação privada, que a imputação feita na inicial demonstre, de plano, a pertinência do pedido, aferível pela correspondência e adequação entre os fatos narrados e a respectiva justificativa indiciária (prova mínima, colhida ou declinada), nada mais é que ampliar, na exata medida do preceito constitucional do art. 5º, LV, da CF, o campo em que irá se desenvolver a defesa do acusado, já ciente, então, do caminho percorrido na formação da opinio delicti. (PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017.)

 

Na hipótese de existir dúvida plausível sobre o cometimento de infração administrativa ou da sua autoria (insuficiência probatória), deve-se adotar diligências preliminares, que são denominadas “sindicância investigativa”, “investigação prévia”, “instrução preliminar”, para avaliar a necessidade de instauração de processo administrativo disciplinar propriamente dito ou a sindicância acusatória.

Destarte, a autoridade competente pela deflagração da apuração disciplinar deve verificar a existência de indícios de autoria e materialidade de infração administrativa que justifique a apuração dos fatos, visto que a instauração de um procedimento administrativo disciplinar requer a existência de justa causa, tendo em vista a repercussão de ordem moral a ser suportada pelo agente público.

 

INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO PUNITIVO E O DIREITO DA PERSONALIDADE

O dano moral pode ser compreendido como a violação a um direito da personalidade, que são aqueles reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade [1].

A Constituição Federal de 1988 estabelece o seguinte sobre a tutela dos direitos da personalidade, máxime em relação à honra e à imagem, in litteris:

Art. 5º (...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; 

 

A doutrina pátria esclarece o seguinte sobre a violação do direito da personalidade e o consequente dano moral, in litteris:

“(...)

Obtemperam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho em sua excelente obra: “O dano moral consiste na lesão de direitos cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Em outras palavras, podemos afirmar que o dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos da personalidade), violando, por exemplo, sua intimidade, vida privada, honra e imagem, bens jurídicos tutelados constitucionalmente” (Novo Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 61-62).

 

Como se verifica, a ofensa a bens internos, a valores imateriais ligados à personalidade, como a honra, intimidade e outros, leva os intérpretes a ter uma visão multifocal do tema e uma impressão peculiar de cada um, assim como uma leitura polissêmica do texto constitucional.

Portanto, em sede de necessária simplificação, o que se convencionou chamar de “dano moral” é a violação da personalidade da pessoa, como direito fundamental protegido, em seus vários aspectos ou categorias, como a intimidade e privacidade, a honra, a imagem, o nome e outros, causando dor, tristeza, aflição, angústia, sofrimento, humilhação e outros sentimentos internos ou anímicos.

De tudo se conclui que, ou aceitamos a ideia de que a ofensa moral se traduz em dano efetivo, embora não patrimonial, atingindo valores internos a anímicos da pessoa, ou haveremos de concluir que a indenização tem mero caráter de pena, como punição ao ofensor e não como reparação ou compensação ao ofendido.

E não temos dúvida de que de dano se trata, na medida em que a Constituição Federal elevou à categoria de bens legítimos e que devem ser resguardados todos aqueles que são a expressão imaterial do sujeito, seu patrimônio subjetivo, como os sentimentos d’alma, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, que se agredidos, sofrem lesão ou dano que exige reparação. Até mesmo a dor moral – como a angústia, a aflição e a tristeza – faz parte do patrimônio subjetivo da pessoa, embora de natureza negativa, mas que deve ser respeitada. O escárnio e zombaria dessas manifestações anímicas pode causar dano moral.

Não podemos nos apartar de um aspecto fundamental evidenciado por Luiz Edson Fachin quando lembra que “a pessoa, e não o patrimônio, é o centro do sistema jurídico” (Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 201, p51).

Significa, portanto, que o dano que se deve vislumbrar é aquele que atinge a pessoa nos seus bens mais importantes, integrantes do seu patrimônio subjetivo.

Nesse mundo particularmente internalizado, voltado para o interior do ser humano enquanto dotado de personalidade única, inconfundível e inviolável, as questões relativas à matéria, de natureza patrimonial ou com expressão meramente pecuniária, não são levadas em conta. Ganham relevo e importância apenas a proteção desses atributos da personalidade e ela própria, ainda que o resultado dessa proteção possa ser convertido em dinheiro por mera convenção ou conveniência. (...)” (STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007).

(...) Em ideia com lastro na doutrina de Ruggiero, estabeleceu o Superior Tribunal de Justiça que “basta a perturbação feito pelo ato ilícito nas relações psíquicas, na tranquilidade, nos sentimentos, nos afetos de uma pessoa, para produzir uma diminuição no gozo do respectivo direito”. Revela a expressão um caráter negativo, que é não ser patrimonial, atingindo o ofendido como ser humano, sem alcançar seus bens materiais. Dano moral, ou não-patrimonial, ou ainda extrapatrimonial, reclama dois elementos, em síntese, para configurar-se: o dano e a não diminuição do patrimônio. Apresenta-se como aquele mal ou dano – que atinge valores eminentemente espirituais ou morais, como a honra, a paz, a liberdade física, a tranquilidade de espírito, a reputação, a beleza etc. Há um estado interior que atinge o corpo ou espírito, isto é, fazendo a pessoa sofrer porque sente dores no corpo, ou porque fica triste, ofendida, magoada, deprimida. A dor física é a que decorre de uma lesão material do corpo, que fica com a integridade dos tecidos ou do organismo humano ofendida; a moral ou do espírito fere os sentimentos, a alma, com origem em uma causa que atinge as ideias.( ...)” (RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007)

 

À luz do conceito de direito da personalidade e considerando o senso comum que permeia todo agente público, tem-se que a instauração de procedimento disciplinar implica sentimento de irresignação e constrangimento ao investigado, notadamente quando o mesmo é inocente das imputações de irregularidades que lhe são atribuídas.

Todavia, a instauração de processo administrativo disciplinar ou sindicância acusatória em razão da configuração de elementos probatórios mínimos que indiquem a existência de autoria e materialidade de infração funcional não constitui violação ao direito da personalidade de servidor público que resulte em dano moral.

As ementas dos julgados abaixo demonstram que a instauração de procedimento punitivo pela Administração Pública não gera danos morais a servidor público e evidenciam que o tema em análise é objeto de constante judicialização, in litteris:

 

EMENTA: ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEVER DA AUTORIDADE. ART. 143 DA LEI Nº 8.112/90. ATO LÍCITO. OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR QUE SE AFASTA.

1. A apuração de falta funcional não gera direito à indenização por danos morais quando fundada em elementos suficientes, de molde a afastar a possibilidade de ação temerária ou sem justa causa.

2. Tratando-se de ato lícito e de dever da Administração afasta-se a possibilidade de indenização.

3) O fato da instauração do PAD ter sido divulgada no círculo profissional do autor não é suficiente para configurar ato ilícito, não podendo a conduta do preposto, nos termos das provas encartadas aos autos, ser considerado abusiva, de modo a causar dano moral passível de indenização. (TRF4, AC 5004937-64.2011.404.7200/SC, TERCEIRA TURMA, Relator CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, juntado aos autos em 21/09/2012)

 

EMENTA: ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PODER-DEVER DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. NÃO CONFIGURADOS.

1. Hipótese de Apelação interposta pela parte autora, em face de sentença que julgou improcedente o pleito autoral, objetivando o pagamento de indenização por danos morais e materiais por ter respondido um Processo Administrativo, fato que lhe teria causado vexame junto à população local, além de despesas com honorários advocatícios.

2. Cumpriu o INSS com o dever de informar à autoridade administrativa competente a existência de indícios de irregularidade apurados por sua Auditoria Regional.

3. A instauração de inquéritos administrativos, via de regra, não gera direito à reparação de danos morais por se tratar de exercício de verdadeiro dever da Administração, o que decorre do seu Poder Disciplinar.

4. Inexistência também de prova de que houve uma intenção deliberada do INSS em prejudicar o servidor com a instauração do PAD; não há, portanto, como caracterizar o seu agir como ato ilícito, de modo que não há que se falar em responsabilidade civil da autarquia. 5. Apelação improvida (TRF5, AC 10095820114058302, TERCEIRA TURMA, Relator Marcelo Navarro, publicado em 03/10/2013)

 

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DANO MORAL NÃO CARACTERIZADO.  SENTENÇA CONFIRMADA.

1. O processo administrativo disciplinar, por si só, não justifica a imposição do pagamento de indenização por danos morais, pois é medida legalmente prevista e imposta ao administrador para apurar os fatos noticiados.( TRF1, AC 0038214-12.2002.4.01.3400/DF, e-DJDF1 05/03/2013).

2. Na hipótese diante da falta de demonstração da existência de ato ilícito (abuso ou excesso na atuação do agente público do Estado) não se reconhece a responsabilidade civil da União, a ensejar condenação para pagamento de indenização para reparação de dano moral.

3. Apelação conhecida e não provida. (TRF1, AC 0001130-54.2014.4.01.3303/BA, SEXTA TURMA, Relator KASSIO NUNES MARQUES, publicado em 25/08/2017)

 

Depreende-se, portanto, que a instauração de procedimento punitivo, por si só, não pode ser enquadrado como ato ilegal que rende ensejo a dano moral ao servidor público.

Sendo assim e não obstante os efeitos negativos suportados pelo servidor público no seu ambiente social e de trabalho, é factível asseverar que a deflagração de processo administrativo disciplinar ou sindicância acusatória para apurar eventual responsabilidade administrativa, quando existem de indícios suficientes de autoria e materialidade de falta funcional, não configura, por si só, dano moral.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante os argumentos acima articulados, afigura-se que a instauração de processo administrativo disciplinar ou sindicância acusatória deve ser precedida da realização de juízo de admissibilidade pela autoridade competente com a finalidade de verificar a existência de elementos probatórios mínimos que indiquem o cometimento de infração administrativa por agente público.

É imperioso destacar que, apesar da repercussão moral causada ao servidor público, a Administração Pública tem o poder-dever de determinar a apuração de fatos relacionados ao cometimento de irregularidade administrativa, conforme determina o art. 143, da Lei nº 8.112, de 1990.

Face ao exposto, afigura-se que o exercício do poder disciplinar pela Administração Público e materializado no procedimento punitivo não constitui, por si só, ato ilegal que representa violação de direito da personalidade e causador de dano moral, uma vez que o interesse público na apuração de irregularidade funcional sobrepuja eventual constrangimento causado ao servidor público. 

 

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>.

BRASIL. Lei n. 8.112, 11 de dezembro de 1990. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8112cons.htm>.

CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuística da Administração Pública. 5. ed. rev. atual. Belo Horizonte. Fórum, 2016.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.

GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 5. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 2009.

PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017.

RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 7ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 7. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

 

NOTAS:

[1] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 7. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

Data da conclusão/última revisão: 5/6/2018

 

Como citar o texto:

BORBA, João Paulo Santos..A inexistência de dano moral em razão da instauração de procedimento de caráter disciplinar. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1539. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/4104/a-inexistencia-dano-moral-razao-instauracao-procedimento-carater-disciplinar. Acesso em 21 jun. 2018.

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