A questão latifundiária no Brasil.

1. O que é o Latifúndio? 2. A questão do latifúndio e suas origens. 3. Origens do Latifúndio no Brasil. 4. A questão latifundiária na América Latina. 5. O estatuto da Terra (solução ou reafirmação do coronelismo no Brasil). 5.1 – Classificação da propriedade rural, de acordo com o Estatuto da Terra. 6. A constituição Federal de 1988, o código civil e o enfraquecimento da visão absolutista da propriedade privada. 7. Lei minha casa, minha vida (11.977/2009), mais uma proposta de regulamentação fundiária para a cidade e para o campo. 8. A questão da reforma agrária e o papel do MST como movimento de pressão popular. 9. Bibliografia.

    1.     O que é o latifúndio?

    Etimologicamente, a palavra latifúndio deriva de lattus, que significa largo, e de fundus, que significa o fundo da terra, em conjunto, portanto, significa grande área de terra.

    Originalmente, o latifúndio era formado pelo grande domínio privado da aristocracia. Na atual concepção, seu sentido esta voltado para a propriedade rural, onde aponta existir uma concentração desequilibrada de terras, pertencentes a poucos proprietários, independentemente de haver o uso proveitoso das terras.

    É, portanto, o latifúndio, a expressão da exploração nos campos e da desigualdade social, já que a questão versa notadamente sobre a injusta distribuição de terras, concentrando grandes porções nas mãos de poucos, que muitas vezes, deixam de observar a finalidade social do imóvel, em prol da especulação imobiliária.

    Evidentemente, que a propriedade privada, nas formas mais tradicionais de governo, sempre representou instrumento de afirmação da dignidade da pessoa humana, na medida que materializa o direito à moradia e, muitas vezes, além disso, serve de meios para que as famílias nelas instaladas, alcancem de certa forma sua independência econômica, ao menos para garantir o mínimo existencial.

    Assim, percebe-se que a questão latifundiária é uma doença que afeta regimes políticos baseados na propriedade privada, notadamente quando voltados para economias agrícolas, desenvolvidas através do sistema de colonização.

    É claro que o dinamismo da sociedade, nos tempos modernos, vem abrindo cada vez mais espaço para que se estabeleçam diálogos e ações na tentativa de minimizar os efeitos de práticas centenárias voltadas à exploração latifundiária, desenvolvendo-se e aprimorando-se através da reforma agrária e da difusão dos direitos e garantias constantes na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aos camponeses e proletariados agrícolas.

    Com efeito, notamos que o núcleo da questão analisada, encontra-se na dualidade de interesses que repousam entre a propriedade privada e a distribuição equitativa desta, como forma de respeito aos direitos fundamentais tratados em primeira e segunda dimensão.          É claro, que para que ocorram respostas à esta dualidade de interesses, dentro da maneira que se constituiu a vida em sociedade, especialmente no Brasil, é necessário que ocorra um longo processo revolucionário sobre a questão, para que aos poucos sejam compreendidas e, de fato respeitadas, as bandeiras da igualdade, fraternidade e da solidariedade.

    É a revolução o instrumento popular que possibilitará o povo ascender suas reivindicações, garantindo que o retórico discurso dos Direitos Humanos, deixe de ser apenas uma forma de intelectuais se projetarem em sociedade, tornando-se, enfim, realidade para quem de fato necessita da proteção dos mandamentos fundamentais.

2.    A questão do latifúndio e suas origens.

    A questão latifundiária, é questão vinculada a vontade do homem em viver em sociedade. Sua origem está presente, desde as primeiras civilizações que se tem registro na atualidade.

    Na Mesopotâmia, que é considerada um dos principais berços da civilização, o desenvolvimento social e econômico, deu-se a partir do desenvolvimento agrícola, acreditando-se que boa parte da totalidade dos meios de produção devia ser entregue aos Governantes (Déspotas).

    Além disso, a propriedade imobiliária era de monopólio estatal, porém, para facilitar a exploração da terra, os governantes dividiam a propriedade em grandes latifúndios, concentrados nas mãos dos próprios governantes, da igreja e dos comandantes do exército.

    Como o regime de econômico era de natureza basicamente agrícola, os proprietários latifundiários utilizavam da mão de obra escrava e de pessoas humildes, para que houvesse a exploração da terra, sendo que quando realizada a colheita, parte deveria ser entregue ao Estado como forma de pagamento pelo uso da terra.

    Prosseguindo na história das civilizações, inevitavelmente esbarramos nosso olhar na Grécia antiga, posto que em Atenas, através de Platão, nasce a concepção de “propriedade coletiva” como forma de resolver o problema da tirania que existia sobre a questão fundiária e a produção levada à efeito nestas. Posteriormente, a “propriedade coletiva” concebida por Platão, passou a ser objeto de contestação pelo seu principal discípulo, Aristóteles, que recomendava a manutenção da propriedade privada.

    Mas foi dentro do Direito Romano que a propriedade adotou as principais características pelas quais hoje identificamos. Foi dentro deste contexto que a propriedade ganhou caráter individual, absoluto e perpétuo.

    No século XIX, o código napoleônico retomou a tradição romana de valorizar a propriedade privada e inspirou praticamente todos os códigos civis da época, seja na formação da lei, seja na interpretação da lei, como foi o caso do nosso Código Civil de 1916. Sua proposta liberal favoreceu a concentração da propriedade nas mãos de um número cada vez mais reduzido de indivíduos, o subaproveitamento das terras agrícolas e a exploração dos camponeses sem terra e sem opções de trabalho. Essa situação, porém, começou a se modificar no século XX, ante a pressão das massas camponesas, premidas pelo pauperismo e estimuladas pela revolução socialista soviética.

    Cada vez mais, passaram a se intensificar os movimentos sociais, pressionando os Governos por uma reforma agrária, eclodindo muitas vezes processos revolucionários importantes para a história moderna, que motivaram a reflexão da propriedade em sua atual concepção [no Brasil], abandonando seu caráter individual para levantar a bandeira da função social, preocupando-se, portanto, com a utilização e a destinação da propriedade.

3.     Origens do Latifúndio no Brasil.

    No Brasil, podemos dizer que a formação do latifúndio, iniciou-se com o apossamento feito pela Coroa Portuguesa nas terras “descobertas”, enviando ao Brasil, em 1530, expedição com o intuito de iniciar exploração nas terras recém descobertas, com principal objetivo de colonizar e desenvolver a Colônia.

    Nesta época, Dom João III dividiu a colônia em capitânias hereditárias, nomeando como primeiro donatário Martim Afonso de Souza, que foi conferido poderes para administrar a capitania de São Vicente.

    O que é relevante notar neste período, que apesar da Coroa Portuguesa ter dividido o Brasil em doze capitanias, incentivando os fidalgos a se instalarem no novo território, com o objetivo de fazerem moradia própria e explorarem comercialmente o potencial de cada capitania, assim, a Coroa passou a fazer “doações” das áreas, dando inicio à primeira fase das sesmarias.

    Nota-se, no entanto, que as doações de terras realizadas pela Coroa Portuguesa aos fidalgos, eram feitas de forma que estes ficavam impedidos de alienar as terras, até mesmo porque, se estabelecermos uma analogia ao atual modelo de propriedade imobiliária adotado no Brasil, na realidade não havia qualquer transmissão de propriedade por parte da Coroa, ela permanecia com a nua-propriedade do imóvel, transferindo ao fidalgo (e aos seus herdeiros) apenas o direito de uso das terras.

    Esse modelo de propriedade (sesmarias) vigorou até a proclamação da independência do Brasil (7 de setembro de 1822), já que a Resolução 76 do Império, proibiu a concessão de novas sesmarias, porém, tão somente no ano de 1850 foi publicada a Lei das Terras, causando uma lacuna no Direito Brasileiro, quanto à forma de aquisição de propriedade, no período compreendido entre os anos de 1822 e 1850, sendo a posse o único instrumento jurídico pelo qual se garantia a proteção ao direito de moradia e exploração da propriedade.

    Como dito, no ano de 1850 com o advento da Lei de Terras (Lei nº 601/1.850), iniciou-se um novo processo de organização fundiária no Brasil, reconhecendo o direito dos sesmeiros e dos posseiros à propriedade, quando à área ocupada se encontrava destinada ao plantio ou à moradia. É o que se extrai do artigo 4º da referida lei, vejamos:

“Art. 4º. Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, que acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário, ou do quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas”

    Analisando ainda a referida legislação, podemos afirmar tranquilamente que foi aos braços desta lei que a propriedade passou a ter um tratamento assemelhado ao que temos hoje, posto que deste então, passou a ser obrigatória a medição dos imóveis e o registro destes, para a partir de então ser conferido ao sesmeiro ou ao possuidor o domínio da área ocupada, nascendo, inclusive, o Registro do Vigário, que guarda em certa medida, afinidades com o atual sistema registral em vigor no Brasil.

    Lembremos ainda, que em 1824 foi outorgada a nossa primeira Constituição Federal, por Dom Pedro I, com vigência por quase toda a fase imperial, de onde podemos constatar haver grandes influências do cenário internacional, notadamente pelos ideais liberais deflagrados a partir da Revolução Francesa, colocando assim, o direito de propriedade na qualidade de um direito fundamental, elevando a proteção legal, quando a propriedade restar caracterizada como moradia ou principal fonte de exploração provendo em todo ou em parte o sustento familiar.

    É certo, no entanto, que a grande concentração de terras nas mãos de poucos, era quase que um processo irreversível, fruto do regime das sesmarias e da proteção que a Coroa oferecia incondicionalmente à aristocracia.

    Em resposta a este cenário de desigualdades, no Brasil, ocorreram diversos movimentos marcados pela luta da regulamentação fundiária, podemos citar como principais movimentos a Farroupilha, a Sabinada, a Balaiada, a Cabanagem, o Contestado, Canudos e o do Caldeirão.

4. A questão latifundiária na América Latina.

    Na América Latina, a situação não foi muito diferente a do Brasil, visto que na totalidade, o regime de exploração das terras originou-se através do processo de colonização das terras.

    Não vamos nos ocupar em estudar neste ponto a fundo a questão latifundiária em cada país que compõe a América Latina, visto que difícil seria esgotar o tema. Queremos neste tópico apenas assinalar a importância de alguns processos revolucionários, que repercutiram seus ideais na política de reconstrução do sistema fundiário no Brasil.

    É de fácil percepção, pelas palavras até então ditas, que não foi só o Brasil, mas sim a América do Sul em geral, que nasceu para poucos desfrutarem da riqueza da terra e do trabalho de muitos. Sem sombra de dúvidas, nasceu sob o único intuito de servir incondicionalmente aos seus exploradores.

    Destacamos como principais movimentos revolucionários os eclodidos no México, iniciado por Emiliano Zapata e Pancho Villa, em 1910, que geraram o processo de libertação camponesa e oposição ao latifúndio, refletindo posteriormente na reforma agrária que veio ocorrer entre 1934-1940 no México, ocorrendo a distribuição de cerca de 18 milhões de hectares a 772 mil camponeses, num ato predominantemente de oposição aos latifundiários.

    A Bolívia, inspirada na revolução Mexicana, através do MNR (Movimento Nacional Revolucionário), organizou em 1952 um golpe militar, que inicialmente tinha como uma de suas principais bandeiras a reforma agrária no país. O MNR foi um movimento oportunista, pois aproveitou-se das sensíveis condições do povo boliviano para ascender ao poder, e quando empossado ao poder, traiu com os ideais revolucionários, instalando regime de ditadura no país. A questão agrária no país, ganhou força novamente entre os anos de 1970 e 1980, com o fortalecimento das forças sindicais, em combate a ditadura estabelecida pelo MNR.

    Mas é em Cuba, onde encontramos a maior expressão da resistência do povo oprimido e do processo revolucionário da reforma agrária. Fidel Castro, liderou o processo mais radical de mudanças em país latino até então já visto, instituindo pela primeira vez em um país do ocidente, o regime socialista.

    Em Cuba, um dos primeiros atos de Fidel foi a reforma agrária. Foi extinto o latifúndio, tendo o Governo se apropriado de todas as terras improdutivas, oferecendo aos camponeses duas alternativas. A primeira tratava-se da organização em cooperativas e a segunda era a forma de cultivo da terra através da posse individual do bem. Ainda, que contestada o exercício do poder de Fidel Castro, é certo que dentre todas as reformas agrárias ocorridas na América Latina, sem sombra de dúvidas que foi a reforma promovida em Cuba a de maior expressão.

    5. O estatuto da Terra (solução ou reafirmação do coronelismo no Brasil)

    O Estatuto da Terra foi criado pela lei 4.504, de 30-11-1964, sendo, portanto, uma obra do regime militar que acabava de ser instalado no país através do golpe militar de 31-3-1964.

    Sua criação estará intimamente ligada ao clima de insatisfação reinante no meio rural brasileiro e ao temor do governo e da elite conservadora pela eclosão de uma revolução camponesa. Afinal, os espectros da Revolução Cubana (1959) e da implantação de reformas agrárias em vários países da América Latina (México, Bolívia, etc.) estavam presentes e bem vivos na memória dos governantes e das elites.

    As lutas camponesas no Brasil começaram a se organizar, com grande expressão desde a década de 1950, com o surgimento de organizações e ligas camponesas, de sindicatos rurais e com atuação da Igreja Católica e do Partido Comunista Brasileiro.

    O movimento em prol de maior justiça social no campo e da reforma agrária generalizou-se no meio rural do país e assumiu grandes proporções no início da década de 1960.     No entanto, esse movimento foi praticamente aniquilado pelo regime militar instalado em 1964. A criação do Estatuto da Terra e a promessa de uma reforma agrária foi a estratégia utilizada pelos governantes para apaziguar, os camponeses e tranquilizar os grandes proprietários de terra.

    As metas estabelecidas pelo Estatuto da Terra eram basicamente duas: a execução de uma reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura. Quase cinco décadas depois, podemos constatar que a primeira meta ficou apenas no papel, enquanto a segunda recebeu grande atenção do governo, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento capitalista ou empresarial da agricultura.

    No estatuto da Terra, encontramos importantes disposições legais, pelas quais podemos destacar primordialmente as seguintes:

Art. 16. A Reforma Agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.

Art. 17. O acesso à propriedade rural será promovido mediante a distribuição ou a redistribuição de terras, pela execução de qualquer das seguintes medidas: a) desapropriação por interesse social; b) doação; c) compra e venda; d) arrecadação dos bens vagos; e) reversão à posse (Vetado) do Poder Público de terras de sua propriedade, indevidamente ocupadas e exploradas, a qualquer título, por terceiros; f) herança ou legado.

    Nota-se, pelas normas em destaque, a preocupação utilização do solo em observância à finalidade social do bem.

    É notório que houve um declive da visão absolutista que pairava de maneira geral sobre os direitos reais, colocando agora em destaque a função social da propriedade. Porém, essa mudança valorativa, que serve de plano de fundo ao direito civil – passando do individualismo para uma visão social do direito em geral, do direito civil e do direito privado -, não fez com que o direito de propriedade perdesse seu caráter absoluto.

    A função social referenciada no Estatuto da Terra e posteriormente agregada ao texto constitucional, simplesmente, a fazer com que a propriedade seja utilizada de maneira normal, cumprindo o fim a que se destina, o que não gera contraposição entre os interesses individuais e coletivos; ao contrário, compatibiliza-os e representa, outrossim, uma harmonização da instituição com os fins legítimos da sociedade.

    Se o titular do direito se mostra desidioso não utilizando faculdades inerentes ao domínio para extrair do bem os frutos que este produz ou possui capacidade de produzir, sujeitar-se-á às cominações legalmente estabelecidas para recolocar a propriedade no caminho normal.

    A razoabilidade, portanto, representa, junto às restrições previstas no Estatuto da Terra, limite fundamental à aplicação do princípio da função social pelo poder estatal.

    O caráter individual e privado da propriedade persiste no sistema político constitucionalmente adotado, o que impede o abuso do Poder Público com base na abstração e amplitude da expressão "função social", que deverá ser restritivamente interpretada de molde a vincular o bem, objeto do direito de propriedade, à sua utilização normal.

    É a desapropriação o instrumento de maior força para o alcance da reforma agrária a extinção dos latifúndios no Brasil (art. 24 do Estatuto da Terra).

    Vale lembrar, que o Decreto-Lei 3365/41, já tratava quanto às formas de desapropriação, inclusive, tratando sobre a possibilidade de desapropriação de imóveis rurais, para atender a reforma agrária e consequentemente, o interesse social.

    Outro importante instrumento previsto no Estatuto da Terra, é a denominada colonização oficial, que trata-se de um programa de planejamento de utilização das terras incorporadas ao patrimônio da União, em que se destina politicas públicas de aproveitamento das terras ociosas e improdutivas, mediante incentivos e assistência do Governo (art. 55 a 59 do Estatuto da Terra).

    Outra forma de incentivo de extinção ao latifúndio encontra-se lançada no artigo 125 do Estatuto da Terra, vejamos:

 Art. 125. Dentro de dez anos contados da publicação da presente Lei ficam isentas do pagamento do imposto sobre lucro imobiliário as transmissões de imóveis rurais realizadas com o objetivo imediato de eliminar latifúndio ou efetuar reagrupamentos de glebas, no propósito de corrigir minifúndios, desde que tais objetivos sejam verificados pelo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária.

    Com efeito, percebemos que no Estatuto da Terra encontram-se inúmeros mecanismos avançados de regulamentação fundiária que se de fato exercitados, dentro dos seus exatos termos, não precisaríamos, quase cinquenta anos da publicação da Lei, estar aqui discutindo a existência do latifúndio no Brasil e as soluções para extinguir esta forma injusta de concentração de terras em poucas mãos. Instrumentos jurídicos temos, o que falta é vontade política para aplicação das leis.

5.1 – Classificação da propriedade rural, de acordo com o Estatuto da Terra.

    Podemos sintetizar a classificação da propriedade rural, de acordo com os termos apresentados no Estatuto da Terra, utilizando as próprias definições contidas no artigo 4º da legislação em análise, assim sendo:

i. Propriedade familiar: o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros;

ii. Imóvel Rural: o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada;

iii. Minifúndio: o imóvel rural de área e possibilidades inferiores às da propriedade familiar;

iv.     Latifúndio:, o imóvel rural que: a) exceda a dimensão máxima fixada na forma do artigo 46, § 1°, alínea b, desta Lei, tendo-se em vista as condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e o fim a que se destine; b) não excedendo o limite referido na alínea anterior, e tendo área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, com fins especulativos, ou seja deficiente ou inadequadamente explorado, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito de empresa rural;

v. Empresa Rural: é o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural, dentro de condição de rendimento econômico da região em que se situe e que explore área mínima agricultável do imóvel segundo padrões fixados, pública e previamente, pelo Poder Executivo. Para esse fim, equiparam-se às áreas cultivadas, as pastagens, as matas naturais e artificiais e as áreas ocupadas com benfeitoria.

     Interessante notar que a própria lei é que dá as definições, acima transcritas, cabendo um parêntese no que trata ao latifúndio, pois, a respeito dessa classificação, Xico Graziano , em artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, salientou que:

“tomando o módulo rural como tamanho ideal da propriedade familiar, denominou-se latifúndio ‘por dimensão’ o imóvel rural com área acima de 600 módulos. Menor que isso, desde que não fosse minifúndio, classificava-se o imóvel como empresa rural, se produtivo, ou latifúndio ‘por exploração’, se improdutivo”.

Prosseguindo ainda, em sua análise, disse que:

“Havia, portanto, dois tipos de latifúndio: um dado pelo tamanho excessivo e o outro, pela baixa exploração da terra. Essa é a razão que permitia a existência de ‘pequenos latifúndios’ no País, uma contradição nos termos. Em 1.984, as estatísticas do Incra mostravam que 70% da área total cadastrada pertencia aos latifúndios. Desses, porém, 90% não ultrapassavam 500 hectares e 58% eram menores que 100 hectares. Um paradoxo!”.

    Assim, é possível concluir, que se a aplicação do Estatuto da Terra fosse tão coerente, quanto a didática que envolve os artigos da lei em comento, não restam dúvidas de que seria um dos instrumentos normativos mais importantes da história nacional.

6 - A constituição Federal de 1988, o código civil e o enfraquecimento da visão absolutista da propriedade privada.

    A garantia constitucional do direito de propriedade, está vinculada ao bem-estar social, conforme podemos observar no inc. XXIII do art. 5.º do diploma constitucional vigente, que dispõe: "A propriedade atenderá à sua função social".

    Ainda classifica a Constituição de 1988, em seu art. 170, II e III, a propriedade privada e sua função social como princípios da ordem econômica, impondo sanções para o caso de não serem observados, principalmente em relação às propriedades imóveis urbanas e rurais (arts. 182-191).

    Portanto, ao mesmo tempo em que a propriedade é regulamentada como direito individual fundamental, releva-se o interesse público de sua utilização e de seu aproveitamento adequados aos anseios sociais.

    Com efeito, esta regulamentação constitucional da propriedade vai descaracterizando de maneira fundamental a natureza privada e individual da instituição, aproximando-a, outrossim, do terreno do Direito Público.          A Ordem Constitucional vigente traçou, uma nova diretriz à propriedade, que transmudou de forma absoluta o instituto. É, portanto, o direito de propriedade é um direito fundamental, tratando-se de um direito subjetivo ao qual se atrelam deveres.

    A Constituição Federal de 1988 trouxe especial proteção à propriedade rural (art. 5º, XXVI), destinando, inclusive, parte de seu texto (artigos 184 a 191) para manifestar políticas públicas de reforma agrária e regulamentação fundiária.

    Novamente percebemos que o principal instrumento para que ocorra esta regulamentação fundiária, é a desapropriação de terras improdutivas e de interesse da União, guiada sempre, pela obediência à função social da propriedade privada, chegando, inclusive a prever possibilidade de concessão e alienação de terras públicas para aproveitamento da terra (artigo 188).

    No campo do direito civil, é notório que houve um declive da visão absolutista que pairava de maneira geral sobre os direitos reais, colocando agora em destaque a função social da propriedade. Porém, essa mudança valorativa, que serve de plano de fundo ao direito civil – passando do individualismo para uma visão social do direito em geral, do direito civil e do direito privado -, não fez com que o direito de propriedade perdesse seu caráter absoluto.

    Acentua-se a socialidade, que é o valor contraposto e superador do individualismo. Esta visão torna-se clara pelo enunciado no parágrafo primeiro do artigo 1.228, vejamos:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

7. Lei minha casa, minha vida (11.977/2009), mais uma proposta de regulamentação fundiária para a cidade e para o campo.

É uma Lei que o seu núcleo é diz respeito essencialmente à moradia, objetivando a implantação de Programa Minha Casa, Minha Vida - “PMCMV” que tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00.

Como promessa de cumprir sua finalidade social, a lei estabelece como critérios de atendimento; (I) - comprovação de que o interessado integra família com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais); (II) - faixas de renda definidas pelo Poder Executivo federal para cada uma das modalidades de operações; (III) - prioridade de atendimento às famílias residentes em áreas de risco ou insalubres ou que tenham sido desabrigadas; (IV) - prioridade de atendimento às famílias com mulheres responsáveis pela unidade familiar; e (V) - prioridade de atendimento às famílias de que façam parte pessoas com deficiência.

A Lei 11.977, de 07.06.2009, conceitua a regularização fundiária como "(...) conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado"

Destarte, a regularização fundiária passou a ser reconhecida como um dos principais mecanismos de acesso e garantia do direito à moradia, dando vida ao disposto no art. 6.º da CF/1988.

A lei em comento, trouxe significante inovação, ao definir duas modalidades de regulamentação fundiária em seu artigo 47, vejamos:

“VII – regularização fundiária de interesse social: regularização fundiária de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por população de baixa renda, nos casos:

VIII – regularização fundiária de interesse específico: regularização fundiária quando não caracterizado o interesse social nos termos do inciso VII.”

Para ocorrer a regularização fundiária por interesse social, necessário o preenchimento de alguns requisitos, quais sejam: (a) em que tenham sido preenchidos os requisitos para usucapião ou concessão de uso especial para fins de moradia, ou seja, ocupação pacífica por período superior a cinco anos, áreas de até 250,00 m 2 , utilizadas unicamente para fins de moradia e beneficiando famílias que na tenham propriedade urbana ou rural; (b) de imóveis situados em Zeis; ou (c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social.

Outro mecanismo interessante de que trata a lei, sem dúvidas é a legitimação de posse, inaugurado pela redação do artigo 99 do Estatuto da Terra:

"Art. 99. A transferência do domínio ao posseiro de terras devolutas federais efetivar-se-á no competente processo administrativo de legitimação de posse, cujos atos e termos obedecerão às normas do Regulamento da presente Lei".

    Por último, lembramos ainda que como um dos mais polêmicos instrumentos de regulamentação fundiária tratado na Lei Minha Casa, Minha Vida, encontra-se a possibilidade de ocorrer usucapião na modalidade administrativa.

    Para tanto, basta observar o disposto no artigo 60 da Lei 11.977/2009:

“Art. 60.  Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.

§ 1o  Para requerer a conversão prevista no caput, o adquirente deverá apresentar:

I – certidões do cartório distribuidor demonstrando a inexistência de ações em andamento que versem sobre a posse ou a propriedade do imóvel;

II – declaração de que não possui outro imóvel urbano ou rural;

III – declaração de que o imóvel é utilizado para sua moradia ou de sua família; e

IV – declaração de que não teve reconhecido anteriormente o direito à usucapião de imóveis em áreas urbanas.

§ 2o  As certidões previstas no inciso I do § 1o serão relativas à totalidade da área e serão fornecidas pelo poder público.

§ 3o  No caso de área urbana de mais de 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), o prazo para requerimento da conversão do título de legitimação de posse em propriedade será o estabelecido na legislação pertinente sobre usucapião. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)”

Pela leitura deste artigo, notamos a importância do instituto da legitimação de posse, pois decorridos 5 (cinco) anos do registro desta, poderá o possuidor dar reclamar administrativamente, ou seja, perante ao Cartório de Registro de Imóveis, a titularidade do domínio, temos, portanto, uma espécie de usucapião administrativa.

Com efeito, verificamos que a legitimação de posse não se restringe aos elementos da posse, porquanto para que produza efeitos, existe a necessidade de seu registro perante o Cartório de Registro de Imóveis, guardião por tradição da propriedade imobiliária.

Este instituto, sem dúvidas, é o ponto mais polêmico da Lei 11.977/2009, visto trazer em seu núcleo a função social da propriedade, para justificar a perda da propriedade através de um procedimento administrativo.

No entanto, destacamos que em outros países, este tipo de procedimento administrativo auxiliador de regulamentação fundiária, vem sendo amplamente utilizado, podendo citar o caso do Perú (Lei 28.391 e seu Decreto supremo 17/2007 criaram no sistema legal a possibilidade de reconhecimento administrativo da prescrição aquisitiva) e de Portugal (Lei 6/2006 de 27.02.2006, que trata do Código do Registro Predial Português, admitiu procedimentos que se aproximam muito da usucapião, denominando-os de suprimento, retificação e a reconstituição do registro de um bem imóvel (princípio da continuidade)).

    Assim, analisando mais este recente instrumento normativo, outra conclusão não poderia ser, de que o Brasil é um país rico em instrumentos jurídicos para eliminar a exploração latifundiária, porém, a qualidade dos mecanismos jurídicos à disposição, anda na contramão da vontade de aplicação dos mesmos, praticamente anulando estes importantes instrumentos de afirmação da dignidade humana.

    8. A questão da reforma agrária e o papel do MST como movimento de pressão popular.

    No inicio da década de 70, foi criada pela Igreja Católica a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que foi um dos grandes incentivadores da criação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, onde procuraram chamar a atenção para o problema da deficiente política do sistema agrário, através da organização de assentamentos.

    Uma das principais bandeiras levantadas pelo MST é o combate ao latifúndio,  porém, este combate vem acompanhado da reivindicação de que não basta receber a terra, têm os governantes a responsabilidade de fornecer meios para o desenvolvimento das culturas agrícolas desenvolvidas pelos assentamentos.

    Essa falta de organização política para o desenvolvimento da reforma agrária, nos últimos tempos tem sido objeto de tensão social, já que a política de ocupação do MST eclodiu diversos conflitos, ocasionando lamentáveis episódios, como foi o caso de Eldorado dos Carajás.

    Outra reivindicação dos dirigentes do MST que se coloca com frequência, é que a Constituição Federal atual, congelou o processo de reforma agrária, já que para que ocorram as desapropriação para fins de reforma agrária, ainda assim, é necessário o pagamento de indenização, isto torna-se um verdadeiro impedimento para o processo de reforma, devendo ser, portanto, abolida toda e qualquer forma de indenização para o caso de terras improdutivas.

    Mas ainda resta claro que este tipo de reivindicação está longe de ser atendida, já que em grande parte, o país ainda é governado pelos latifundiários.

    Isto é uma questão de empenho político, pois é inegável a existência de meios jurídicos para que ocorra a tão aclamada reforma agrária.

     No século XVII, já dizia o Pe. Antônio Vieira, em um de seus famosos sermões:

"Perde-se o Brasil, Senhor, porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar nossos bens..."      9. Bibliografia.

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ARRUDA ALVIM e MÔNICA BONETTI COUTO Comentários ao Código Civil brasileiro, Vo. XI, Tomo II. Rio de Janeiro, GEN/Forense, 2009.

ATAÍDE JÚNIOR, Wilson Rodrigues. Os Direitos Humanos e a Questão Agrária no Brasil. A Situação do Sudeste do Pará. Brasília: Editora UNB, 2006.

BANDECCHI, Pedro Brasil. Origens do Latifúndio no Brasil – São Paulo, Obelisco, 1965, 1ª edição.

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GRAZIANO, Francisco. Artigo O conceito de latifúndio, publicado no jornal O Estado de São Paulo, coluna Espaço Aberto, edição de 15.04.2003.

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VIEIRA, Pe. Antônio. Apud  Raimundo Faoro, op.cit . v. 1

 

 

Elaborado em julho/2012

 

Como citar o texto:

SANTOS, Flaviano Adolfo de Oliveira..Latifúndio no Brasil. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1130. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-agrario/2947/latifundio-brasil. Acesso em 30 dez. 2013.

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