O presente trabalho de monografia apresentará o tema: A proteção do bem jurídico administrativo e a análise do crime de peculato, sendo desenvolvido através de três capítulos discorrendo sobre a definição do crime supramencionado, assim como seu impacto nas diversas estruturas da Administração Pública e da sociedade. Tem por objetivo analisar os tipos penais desdobrados do gênero peculato separadamente, além de demonstrar de quais formas evoluíram na linha do tempo do Estado, culminando em sua aplicação nos dias atuais. Palavras-chave: Peculato; Crimes contra a Administração Pública; Penas aplicáveis ao crime de peculato.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I – NOÇÕES SOBRE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 1.1 Histórico sobre a Administração Pública. 1.2 Conceito legal de Administração Pública. 1.3 Interesse público primário e secundário. CAPÍTULO II – O CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO PARA FINS PENAIS 2.1 Norma penal explicativa. 2.2 Diferenças entre os agentes abrangidos pelo conceito de funcionário público  . 2.3 Funcionário público e efeitos da condenação. CAPÍTULO III ANÁLISE DO CRIME DE PECULATO. 3.1 Do bem jurídico penalmente protegido. 3.2 Formas de peculato3.3 Análise das penas aplicáveis. CONCLUSÃOREFERÊNCIA

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar e estudar o crime de peculato, descrito no Código Penal, e seu impacto no universo jurídico-administrativo, envolvendo não só os funcionários públicos, mas também aqueles que participem da ação antijurídica e tenham conhecimento da função pública do agente. Portanto, tal crime pode ser próprio ou impróprio, uma vez que pessoas não vinculadas à administração pública também podem figurar no polo ativo desse delito.

A análise do peculato deve ser feita através de suas diferentes modalidades: apropriação, desvio, furto, culposo e mediante erro de outrem. Conforme se vê, o crime possui vários espectros, todos em eles buscando a proteção da moralidade administrativa e dos bens públicos ou privados, exigindo para sua configuração a figura do agente público que, por algum meio, pratica ou contribui para a prática criminosa.

Nota-se que o peculato, em todas as suas definições, encontra-se no Título XI do Código Penal, que trata dos crimes contra a Administração Pública, o que está em estreita conformidade com os princípios estabelecidos pela Carta Magna no caput de seu artigo 37, principalmente no que se refere aos postulados da legalidade e da moralidade. 

O conceito de funcionário público na lei é amplo e engloba vários sujeitos que, de alguma forma, titularizam a atividade estatal por meio de suas ações. No entanto, existem algumas pessoas que exercem um múnus público, as quais, apesar de não estarem diretamente vinculadas às Autoridades Estatais, podem vir a cometer alguns dos crimes compreendidos no Capítulo I do Título XI do Código Penal, conforme reiteradas decisões do Poder Judiciário. A título de exemplo, podemos citar os advogados dativos, os quais são considerados pela jurisprudência como funcionários públicos para fins penais.

Por fim, cumpre ao trabalho definir o alcance do crime e das suas consequências na sociedade, em razão dos inúmeros impactos negativos dessas ações no erário público e na integridade do Estado.

 

CAPÍTULO I – NOÇÕES SOBRE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O presente capítulo terá por finalidade a conceituação da tutela da administração pública para efeitos penais, o alcance das normas administrativas no âmbito criminal e a definição dos bens jurídicos que se pretende salvaguardar através do Direito Penal, o mais contundente instrumento disponível ao Estado a fim de garantir a pacificação social.

Notadamente, podemos entender que o legislador prestigiou o bem jurídico administrativo com um título próprio no Código Penal. Essa especificidade corresponde à importância da manutenção da ordem administrativa para o Estado, afinal, é através de seu aparato que poderá atingir as diretrizes constitucionais a que foi incumbido.

 

1.1      Histórico sobre a Administração Pública

A Administração Pública tem seu início a partir da queda do Estado Absolutista, período em que havia pouco espaço para o pensamento público. Isso pode ser percebido pela frase atribuída à Luís XIV, o Rei Sol, em meados do século XVII: L’E?tat c’est moi (o Estado sou eu). A ideia de coisa pública só ganhou força após pressões burguesas, que buscavam livrar-se da aristocracia e garantir direitos de natureza liberal. Alguns dos marcos dessa luta foram a Independência dos Estados Unidos da América em 1783 e a Revolução Francesa em 1789. (SOBOUL, 1989)

Todavia, o marco inicial da autonomia do Direito Administrativo dá-se com a morte de Agnès Blanco, em 1873, após um acidente envolvendo uma vagonete de propriedade do Estado Francês. Esse fato movimentou as cortes da época, fazendo com que a responsabilidade estatal mudasse do campo cível para o campo administrativo. (DI PIETRO, 2019)

No Brasil, o modelo de Administração Pública foi herdado de Portugal e passou por diversas mudanças até alcançar o modelo atual. Durante esse período foram três os modelos adotados: o patrimonialista, o burocrático e o gerencial. No primeiro não havia diferença entre privado e público, abrindo uma elevada margem à corrupção e quase nenhuma prestação de serviços públicos aos administrados. Esse modelo tornou-se insustentável, fazendo com que o segundo surgisse, por volta de 1930, para combater o patrimonialismo e modernizar o aparato estatal. (SILVA, 2017)

Contudo, o modelo burocrático não foi capaz de extinguir as práticas patrimonialistas, sendo responsável por enrijecer a Administração Pública com um formalismo exacerbado. A ineficiência provocada, juntamente com o insucesso de seus objetivos, iniciou a transposição desse modelo, em 1967, pelo terceiro, o gerencialista, que persiste até os dias atuais. (SILVA, 2017)

Esse último é o mais importante e foi objeto de uma construção legal, sendo a Emenda Constitucional 19/98 uma das mais importantes inovações do ordenamento jurídico, responsável por destinar ao administrado o protagonismo da definição de políticas públicas:

A administração gerencial (ou governança consensual) objetiva atribuir maior agilidade e eficiência na atuação administrativa, enfatizando a obtenção de resultados, em detrimento de processos e ritos, e estimulando a participação popular na gestão pública. (MAZZA, 2019, p. 56)

Com isso, cabe salientar que a Constituição Federal de 1988 é embalada por princípios que vão ao encontro do modelo gerencial, já que a maioria de suas normas visam à proteção da dignidade da pessoa humana. Esse supra princípio pode ser alcançado através de um Estado preocupado com o bem-estar de sua população, tanto pela prestação de serviços públicos, quanto pela fiscalização da atividade privada.

Outrossim, alguns doutrinadores conceituam dois princípios da Administração Pública como a fonte dos demais, ratificando dessa forma a importância do novo modelo administrativo:

Todo o sistema de Direito Administrativo, a nosso ver, se constrói sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público pela Administração. (MELLO, 1992, p. 18)

Diante do exposto, é possível constatar que as evoluções dos modelos de Administração Pública buscam uma forma de instaurar o verdadeiro ideário democrático estampado em nossa Carta Magna, uma vez que não é possível a participação do povo em um Estado onde não há uma Administração aberta às diretrizes constitucionais a que foi incumbida.

 

1.2      Conceito Legal de Administração Pública

A uma mesma conduta ilícita praticada por agentes públicos ou terceiros participantes contra a Administração Pública, pode-se aplicar três diferentes responsabilizações: a penal, a civil e a administrativa. Sabe-se que ambas são autônomas, sendo a penal usada apenas em último caso para proteção do bem jurídico administrativo. Sendo assim, faz-se necessária a correta delimitação do termo Administração Pública, a fim de que possamos compreender as implicações advindas das transgressões administrativas e sua relação com esfera penal. (FILHO, 2019)

Além disso, não só as pessoas naturais suportarão as consequências de atos ilícitos que venham a praticar contra bens jurídicos administrativos, mas também as empresas da qual façam parte serão responsabilizadas, conforme lecionam Mauricio Schaun Jalil e Vicente Greco Filho:

A legislação não eximiu a responsabilidade individual dos dirigentes e administradores das empresas ou de qualquer outro indivíduo que venha a atuar na condição de coautor ou partícipe do ato ilícito, mas procurou penalizar as próprias empresas que atuem em desfavor da administração pública. Basta, portanto, que qualquer funcionário da empresa tenha perpetrado a infração. Passou-se a responsabilizar as empresas pelo pagamento de subornos a agentes públicos, assegurando a aplicação de sanções que possam dissuadir a prática de tais condutas. A lei entrou em vigor em janeiro de 2014, havendo destaque para as severas sanções constantes do art. 19 a serem impostas às pessoas jurídicas infratoras (perdimento de bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito, direta ou indiretamente obtidos da infração, suspensão ou interdição parcial de suas atividades, dissolução compulsória da pessoa jurídica, proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público). (FILHO, 2020, p. 800)

Como se vê, o legislador preocupou-se tanto com repressão dos indivíduos que cometem os ilícitos, quanto com a repressão das pessoas jurídicas envolvidas em tais crimes, sendo um avanço legislativo nessa seara.

Atualmente, a Administração Pública está dispersa por todos os níveis de poder do Estado, sendo correto afirmar que não é uma exclusividade do Poder Executivo, mesmo sendo esse o principal responsável pelo aparelho administrativo:

A Administração é a responsável pelo desempenho da função administrativa, ou seja, deve praticar atos concretos em busca da satisfação do interesse público. Tipicamente, essa função pertence ao Poder Executivo, mas, como sabemos, além das funções típicas, existem as atípicas, logo, os Poderes Legislativo e Judiciário também desempenharão atividades com perfil administrativo. (CAMPOS, 2019, p. 45)

A Administração Pública é extensa e ocupa-se das mais diversas funções estatais. Para um melhor entendimento acerca do tema, convencionou-se separá-la em sentidos: um sob a visão de quem executa as atividades administrativas – sentido subjetivo –, e o outro pela própria atividade executada – sentido objetivo –. (FILHO, 2019)

O sentido objetivo está intimamente ligado com o verbo gerir, ocupando um espaço dinâmico entre a coletividade e o poder público através de sua função administrativa:

Trata-se da própria gestão dos interesses públicos executada pelo Estado, seja através da prestação de serviços públicos, seja por sua organização interna, ou ainda pela intervenção no campo privado, algumas vezes até de forma restritiva (poder de polícia). Seja qual for a hipótese da administração da coisa pública (res publica), é inafastável a conclusão de que a destinatária última dessa gestão há de ser a própria sociedade, ainda que a atividade beneficie, de forma imediata, o Estado. (FILHO, 2019, p. 86)

Quanto ao sentido subjetivo, definem-no por meio do conjunto de executores da atividade administrativa estatal, separando-o em agentes e entidades, independente de pertencerem à administração direta ou à indireta. Na primeira, podemos citar a título de exemplo os servidores e os órgãos públicos, e, na segunda, as pessoas jurídicas de direito público ou privado e os empregados públicos. (CAMPOS, 2019)

Em relação ao objetivo do direito administrativo, podemos traçar um ponto de convergência entre esse e o direito penal, uma vez que ambos pertencem ao direito público e visam ao interesse da coletividade:

Sabemos que o Direito Administrativo é um ramo de direito público regido por princípios e normas próprias, as quais regulam o exercício da função administrativa. Então, a grande questão é: o que vem a ser a função administrativa? Simples. Quando o administrador atua em nome próprio, mas busca interesses alheios, ou seja, visa a atingir e beneficiar o interesse público, estará ele exercendo a função administrativa. (CAMPOS, 2019, p. 61)

Ainda sobre a delimitação conceitual da Administração Pública, podemos citar a crescente preocupação estatal com a gestão de riscos que levou a uma administrativização delitiva no âmbito penal. Isso gera uma nova problemática a ser dirimida pelos operadores jurídicos, já que o direito penal possui regramento próprio que inibe uma atuação mais ativa do Estado frente aos direitos e garantias individuais constitucionalmente previstos. (MACHADO,2012)

Tal expansão é questionável na doutrina jurídica, já que haveria dúvida quanto à eficácia dos princípios penais clássicos na conjuntura social hodierna. Vale lembrar que o ambiente legal no qual gravitam os princípios de natureza penal buscam uma maior proteção em relação à dignidade da pessoa humana, uma vez que foram construídos historicamente e com certa dificuldade devido à resistência da cúpula estatal no reconhecimento de direitos básicos do homem:

Com a administrativização do Direito Penal teríamos, basicamente, um mecanismo estatal cuja finalidade é a prevenção e gestão de riscos, e não um instrumento para a promoção da paz social com peculiaridades próprias, utilizável somente em casos específicos e bem delimitados, e ainda como último recurso.(MACHADO, 2012, p. 75)

Desse modo, deve-se buscar uma forma que seja capaz de conciliar os diferentes instrumentos legais a fim de proporcionar a devida proteção aos indivíduos e à Administração Pública, pois, mesmo com a dificuldade de se proteger todos os bens jurídicos sensíveis do direito administrativo, não se pode atropelar direitos e princípios originários de nossa carta magna e dos tratados internacionais de direitos humanos incorporados ao direito pátrio.

 

1.3      Interesse público primário e secundário 

É fato que o Estado tem uma gama de interesses que alcança diversos níveis de importância dentro da disciplina jurídica. Entre tais elementos, podemos citar a diferenciação de interesses públicos feita pela doutrina e pela jurisprudência, que consiste em classificar esse interesse em primário ou secundário. O primário estaria mais ligado ao âmago do direito administrativo, qual seja o atendimento prioritário aos anseios da sociedade, uma vez que essa seria uma verdadeira razão de existir do Estado, ao lado da necessidade de controle social para a manutenção da paz. (BARBOSA,2017)

Por outro lado, o interesse público secundário estaria voltado ao interesse privado da administração, como pessoa jurídica que possui direitos próprios dessa condição jurídica, contrapondo-se aos direitos dos diversos participantes do ordenamento jurídico. Vale salientar, contudo, que o interesse secundário só será legítimo caso respeite a supremacia do interesse público, já que não seria possível abandonar a atuação fundamental do Estado em nome de seus interesses privados. (BARBOSA,2017)

Dentro do direito penal, o foco no alcance da proteção da tutela administrativa reside tanto no interesse primário ou essencial do Estado, quanto no interesse público secundário ou não essencial do Estado, na medida em que a lei penal tutela não só o respeito aos princípios administrativos e a supremacia do interesse público, mas também o patrimônio e os demais direitos privados da Administração Pública. (CAMPOS,2019)

 Ainda sobre o tema, José dos Santos Carvalho Filho traz uma importante definição da dualidade no interesse público estatal, em que pese a o fim único a ser buscado pelo Estado:

A grande diversidade dos interesses coletivos exige sua caracterização em primários ou essenciais, de um lado, e secundários ou não essenciais, de outro. Quando o serviço é essencial, deve o Estado prestá-lo na maior dimensão possível, porque estará atendendo diretamente às demandas principais da coletividade. Inobstante, ainda que seja secundário, a prestação terá resultado de avaliação feita pelo próprio Estado, que, por algum motivo especial, terá interesse em fazê-lo. (FILHO, 2019, pg. 493)

 

Com tais definições, cabe dizer que o Estado só deverá lançar mão de seus direitos de interesse público secundário, quando esse coadunar-se com o interesse primário.

Essa posição também é clara para os estudiosos do direito, conforme o seguinte entendimento doutrinário baseado em julgamentos do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema:

[...] cumpre assinalar que, segundo a corrente majoritária, os interesses públicos secundários só poderão ser objetivados se também atingirem o interesse primário. Ou seja, só poderá o Estado atuar em busca de seus fins patrimoniais se o bem coletivo também for atingido. Por exemplo, a existência de impostos tanto interessa ao próprio Estado quanto à coletividade que deseja, com o dinheiro destes, receber a prestação de diversos serviços públicos. (CAMPOS, 2019, pg. 62)

 

Percebe-se que, independentemente da atividade estatal exercida, a Administração deve buscar o objetivo precípuo de existência do sistema democrático: a proteção e a satisfação social de todos aqueles que dele participem. 

A definição de peculato, estampada no título XI, capítulo I do Código Penal Brasileiro, caminha ao encontro da proteção de bens administrativos imbricados na definição de patrimônio público, que é próprio do interesse público secundário, veja:

Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: 
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa. (BRASIL, 1940)

 

É importante destacar que, apesar do teor predominante privado dessa tipificação, a lei tenta buscar uma proteção completa de todos os interesses públicos. Não há como separar os princípios de forma a proteger apenas o interesse privado da administração, pois é através desses bens que o Estado aplica as políticas públicas, principal instrumento para a garantia de aplicação do interesse público essencial. 

Dessa forma, é importante ressaltar que a própria Constituição da República Federativa do Brasil asseverou, em seu art. 37, a obediência da Administração Pública a princípios vitais no desempenho de suas funções:

A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]. (BRASIL, 1988) 

Verifica-se que o crime de peculato tutela bens jurídicos interligados, fazendo com que cada um deles tenha repercussão legislativa e judicial. Dentro do texto normativo, o legislador achou por bem reservar um capítulo inteiro do Código Penal para tratar dos crimes relacionados a essa tutela, dando crucial importância à responsabilização de agentes públicos ou privados que atentem contra seus bens. (ESTEFAM, 2020)

Ademais, o Código de Processo Penal traz um rito específico para os delitos do capítulo retromencionado, os quais estão disciplinados entres os artigos 312 a 326 do decreto-lei nº 2.848 de 1940, abrangendo os crimes funcionais próprios e os impróprios, sendo essa solenidade uma forma de proteção mais incisiva do bem jurídico atrelado ao serviço público. (ESTEFAM, 2020)

A proteção da coisa pública reflete também no princípio da insignificância, que poderia vir a ser causa de excludente de tipicidade material em determinadas situações caso não houvesse ofensa à moralidade administrativa: 

A aplicação do princípio da insignificância deve levar em conta não somente o montante do prejuízo provocado, mas também outros aspectos como a mínima ofensividade da conduta do agente, a pequena periculosidade social da ação e o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento. Por essa razão, prevalece o entendimento de que não é possível a absolvição de funcionário público que tenha desviado ou furtado bens de valor não muito elevado (peculato) ou que tenha se corrompido por pequeno valor ou por fato de pouca relevância, na medida em que o bem jurídico primordialmente tutelado é a moralidade da Administração Pública. A propósito: “O entendimento firmado nas Turmas que compõem a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que não se aplica o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, ainda que o valor da lesão possa ser considerado ínfimo, uma vez que a norma visa resguardar não apenas o aspecto patrimonial, mas, principalmente, a moral administrativa” (STJ, AgRg no REsp 1.275.835/SC, Rel. Min. Adilson Vieira Macabu (Desembargador Convocado do TJ/RJ), 5ª Turma, julgado em 11-10-2011, DJe 1º-2-2012). Em 20 de novembro de 2017, o Superior Tribunal de Justiça aprovou a Súmula 599 com o seguinte teor: “O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a Administração Pública” (GONÇALVES, 2020, pg. 616) 

 

Apesar do tema ainda não ser completamente pacificado no Supremo Tribunal Federal, é notória a importância dada à proteção aos princípios que devem reger a máquina pública. Para o guardião da Constituição Federal, há a necessidade de avaliação do caso concreto antes que se afaste de pronto a possibilidade de aplicação do princípio em apreço. (2ª T., HC 107.370/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, Dje 22/06/2011)

Pelo exposto, é evidente a importância de um sistema administrativo estável, uma vez que sem este, ficaria inviável o atendimento às necessidades da população. Nossa lei maior, além de ser reconhecida como constituição cidadã por conta de sua preocupação com os direitos e garantias fundamentais, próprios de um país democrático, é a responsável por dar as diretrizes de todo o ordenamento jurídico. Portanto, é através do arcabouço jurídico nacional que conseguimos retirar vários elementos protetivos e vitais do bem jurídico administrativo, justificando-se dessa maneira todos os esforços empreendidos pelos atores estatais na salvaguarda dos princípios institucionais. 

 

CAPÍTULO II – O CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO PARA FINS PENAIS

O presente capítulo terá por finalidade a conceituação de funcionário público sob a ótica penal, o alcance dos efeitos da condenação no âmbito criminal e as diferentes espécies de agentes que constituem o gênero funcionário público, sempre com o foco que as normas que trazem conceitos e extensão do tipo penal são doutrinariamente classificadas como explicativas. 

De fato, percebemos o cuidado da lei em abranger diferentes atores que possuem laços com a coisa pública, e, portanto, devem agir conforme o princípio da legalidade estrita. 

Essa ordem legal visa proteger a supremacia do interesse público frente aos interesses particulares, uma vez que o agente público não pode usar de seu cargo para obter vantagens escusas, ou ainda se privilegiar de facilidades obtidas pela posição ocupada nos quadros funcionais da gestão pública.

 

2.1      Norma penal explicativa

A norma penal subdivide-se em duas: a norma penal incriminadora e a norma penal não incriminadora. Aquela é a norma usada para descrever uma conduta e sua respectiva pena, já esta serve como parâmetro explicativo ou permissivo, servindo de apoio aos aplicadores do direito. (ESTEFAM; GONÇALVES, 2020)

Tratando-se de norma penal incriminadora, existem os preceitos primário e secundário. O primeiro é responsável por trazer as ações (crimes comissivos que trazem condutas das quais todos devem se abster), ou omissões (crimes omissivos que enquadram comportamentos absenteístas dos indivíduos). Já o segundo tem a função de quantificar e qualificar as penas aplicáveis pelo descumprimento do comando normativo. (ESTEFAM; GONÇALVES, 2020)

No que se refere à norma penal não incriminadora, também há uma divisão quanto ao seu impacto na aplicação da lei, posto que, ela delimita o alcance da aplicação da norma incriminadora, vejamos: 

A norma penal não incriminadora, por sua vez, subdivide?se em explicativa ou complementar, quando fornece parâmetros para a aplicação de outras normas (ex.: o conceito de funcionário público para fins penais do art. 327 do CP), e permissiva, quando aumenta o âmbito de licitude da conduta (e, a contrario sensu, restringe o direito de punir do Estado) (p. ex.: o art. 25 do CP, que define a legítima defesa). (ESTEFAM; GONÇALVES, 2020)

 

Com isso, cabe destacar que a norma penal explicativa tem a função de amarrar alguns conceitos importantes para a validade das normas penais incriminadoras, a fim de dar-lhes a aplicabilidade correta. 

Sem essa explicação, alguns termos jurídicos poderiam ter um grau muito grande de abstração, trazendo insegurança jurídica. Além disso, alguns termos presentes nessas normas, apesar de se encaixarem no caso concreto, poderiam não considerar todos os detalhes presentes no convívio social. (JALIL; FILHO, 2016)

Abrangendo essas possíveis ocorrências, algumas normas permissivas servem como um contrapeso do poder estatal, abarcando situações que, se não fossem analisadas, poderiam causar injustiças, desvirtuando uma das principais finalidades do direito penal: a proteção de bens jurídicos constitucionais.

Em relação a norma penal complementar, existem diversos artigos espalhados pela legislação e podemos citar um exemplo de sua aplicação nos incisos do art. 14 do Código Penal:

Art. 14 - Diz-se o crime:

I - consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal;

II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. (BRASIL, 1940)

 

A norma supracitada ainda complementa que a tentativa será punida como se consumado o crime, mas com diminuição de um a dois terços. Essa disposição é deveras importante para a aplicação da justiça, haja vista que a tentativa jamais seria punida por conta de sua não disposição no preceito primário das normas incriminadoras.

Pelo exposto, convém arrematar o entendimento de norma penal não incriminadora com o conceito dado por Rogério Greco, tem por finalidade única e exclusivamente elucidar o conteúdo de outras normas, senão vejamos: 

As normas penais existentes no código não têm como finalidade única e exclusiva punir aqueles que praticam as condutas descritas nos chamados tipos penais incriminadores. Existem normas que, em vez de conterem proibições ou mandamentos os quais, se infringidos, levarão à punição do agente, possuem um conteúdo explicativo, ou mesmo têm a finalidade de excluir o crime ou isentar o réu de pena. São as chamadas normas penais não incriminadoras. (GRECO, 2017, p.97)

Dessa forma, podemos perceber a importância do art. 327 do Código Penal (CP) na definição abrangente de funcionário público, uma vez que, sem tais definições, correr-se-ia o risco de a norma ficar aquém da finalidade para a qual foi criada. 

Entretanto, o termo mais correto para essa finalidade seria o de agente público, na medida em que a norma explicativa abarca todos aqueles presentes na estrutura da Administração Pública, independentemente de serem servidores públicos, agentes políticos, particulares em colaboração com o Estado, entre outros. 

 

2.2      Diferenças entre os agentes abrangidos pelo conceito de funcionário público

Diante da infinidade de atores que podem ser considerados como funcionários público para os fins de aplicação da lei penal, faz-se mister entender quem são e quais suas atuações dentro da Administração Pública. 

No tocante aos agentes políticos, existe uma inconsistência conceitual entres os doutrinadores. Todavia, a corrente majoritária os compreende de forma indissociável do governo (aspecto subjetivo) e da função política (aspecto objetivo). (DI PIETRO, 2019)

Eles ocupam suas funções, prioritariamente, na cúpula dos poderes estatais, como pode-se observar nos ensinamentos da melhor doutrina conforme segue na citação abaixo: 

Essas funções políticas ficam a cargo dos órgãos governamentais ou governo propriamente dito e se concentram, em sua maioria, nas mãos do Poder Executivo, e, em parte, do Legislativo; no Brasil, a participação do Judiciário em decisões políticas praticamente inexiste, pois, a sua função se restringe, quase exclusivamente, à atividade jurisdicional sem grande poder de influência na atuação política do Governo, a não ser pelo controle a posteriori.

O mesmo se diga com relação aos membros do Ministério Público e do Tribunal de Contas, o primeiro exercendo uma das funções essenciais à justiça, ao lado da Advocacia-Geral da União, da Defensoria Pública e da Advocacia, e o segundo a função de auxiliar do Legislativo no controle sobre a Administração. Em suas atribuições constitucionais, nada se encontra que justifique a sua inclusão entre as funções de governo; não participam, direta ou indiretamente, das decisões governamentais. (DI PIETRO, 2019, p. 1218-1219)

 

Outra categoria contemplada pela norma penal é a de servidor público, sendo a mais ampla dentre aqueles que podem ser considerados como funcionários públicos pelo art. 327 do CP.

Esses são todos os prestadores de serviços à administração direta ou indireta, com remuneração custeada pelos cofres públicos, podendo ter ou não vínculos empregatícios. Subdividem-se em servidores estatutários, titulares de cargos públicos e vinculados ao regime estatutário; empregados públicos, titulares de empregos públicos e vinculados ao regime celetista; e os servidores temporários, ocupantes de função pública sem qualquer vinculação a emprego público ou a cargo público, com contratação por período certo e quando haja singular interesse público para o atendimento temporário de algumas necessidades. (SPITZCOVSKY, 2019)

Já em relação aos militares, a emenda constitucional número 18 de 1998 foi responsável pela divisão de grupos, estruturando o sistema dos militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios e o das Forças Armadas, que fazem parte da União. (CARVALHO FILHO, 2019)

Apesar do sistema diferenciado em relação aos outros agentes públicos e de outras normas específicas, inclusive de caráter penal, os militares fazem parte de um conceito mais amplo de servidor:

No que concerne aos militares, cumpre fazer uma observação. A despeito da alteração introduzida pela EC no 18/1998, que substituiu a expressão “servidores públicos civis” por “servidores públicos” e da eliminação da expressão “servidores públicos militares”, substituída por “Militares dos Estados, Distrito Federal e Territórios” (Seção III, mesmos Capítulo e Título, art. 42), com a inclusão dos militares federais no Capítulo das Forças Armadas (Título V, Capítulo II, arts. 142 e 143), o certo é que, em última análise, todos são servidores públicos lato sensu, embora diversos os estatutos jurídicos reguladores, e isso porque, vinculados por relação de trabalho subordinado às pessoas federativas, percebem remuneração como contraprestação pela atividade que desempenham. Por tal motivo, parece-nos correta a expressão “servidores militares”. (CARVALHO FILHO, 2019, p. 864)

Ainda existe a categoria dos particulares em colaboração com o poder público, a qual é abrangida no conceito de funcionário público para fins penais, apesar de não possuírem vínculo empregatício com o Estado. 

Esses particulares podem ser alcançados pelo conceito funcional do art. 327 do CP a depender do caso concreto, uma vez que, mesmo sem possuir uma ligação direta com o Estado, exercem uma atividade capaz de os colocar em uma situação de responsabilização especial. Isso ocorre por conta de peculiaridades envolvidas na relação público-privada em que tais agentes estão inseridos, na medida em que seus atos ultrapassam a esfera privada e alcançam bens públicos tutelados pela norma penal. (MAZZA, 2019)

A doutrina majoritária ainda divide o conceito de particulares em colaboração com o Estado em quatro espécies distintas:

Agentes honoríficos: também denominados agentes designados, são aqueles que exercem um múnus público após serem convocados pelo Poder Público. Exemplos: mesário e os jurados do tribunal do júri.

Agentes delegados: aqueles que atuam em concessionárias ou permissionárias de serviços públicos. Todavia, existe uma crítica a essa classificação em virtude de tais agentes não atuarem em nome do Estado. Para facilitar a compreensão, imagine a seguinte situação: João, motorista de ônibus da empresa “X” (concessionária), por negligência, atropela um particular. Observe que quando este for mover uma ação de indenização, processará diretamente a concessionária, possuindo o Estado uma responsabilidade meramente subsidiária (esse assunto é aprofundado no capítulo sobre a responsabilidade civil do Estado). Sendo assim, os agentes delegados atuam, na verdade, em nome da pessoa jurídica do setor privado que recebeu a delegação, e não em nome do Estado. 

Agentes voluntários: são aqueles que atuam em escolas, hospitais, repartições públicas ou em situações de calamidade, de forma completamente voluntária. Podemos citar o caso dos “Amigos da Escola” e dos médicos particulares que atuam em hospitais públicos em virtude de um grave acidente.

Agentes credenciados: representam a Administração em determinada ação ou praticam uma atividade específica após a celebração de um convênio com o Poder Público. Como exemplo, podemos citar o caso dos médicos particulares que atendem pelo SUS e são pagos pelo Estado. (CAMPOS, 2019, p. 653-654)

 

A jurisprudência dos tribunais superiores já catalogou diversas funções abrangidas no conceito penal de funcionário público, entre elas a de diretor de organização social no julgamento do HC 138484/DF; a de Administrador de Loteria no AREsp 679.651; a de Médico de hospital particular credenciado/conveniado ao SUS no AgRg no REsp 1101423/RS; e a de Estagiário de órgão ou entidade públicos no REsp 1303748/AC. De forma oposta, no julgamento do HC 402.949-SP, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o depositário judicial ocupa apenas múnus público, sendo equivocado o entendimento extensivo de em seu desfavor. (SAID, 2019)

Apesar da infinidade de definições advindas do direito administrativo e de seus doutrinadores, percebe-se que o direito penal busca esgarçar esses conceitos a fim de alcançar uma proteção ampla da moralidade administrativa. Isso se dá, segundo a melhor doutrina, devido ao grande número de atos que podem ser praticados pelos indivíduos, mesmo sem vínculos formais com o Estado, em nome do poder público:

Parece óbvio que se pretendeu uma extensão do alcance da condição de funcionário público, não bastando a condição de um cargo próprio da Administração, como é o caso do parlamentar, do juiz, do professor de escola pública, mas também aquele que se vincula a organismos que não sendo propriamente o Estado, a ele se incorporam, como é o caso da empresa prestadora de serviço ou entidade paraestatal. Tal dilação, porém, não obsta que a interpretação a respeito das condutas nas quais a pessoa pode ser considerada funcionário público a efeitos penais sejam somente as próprias da atividade pública exercida por ele. Assim, a identidade do funcionário público em matéria penal não é determinada por quem ele é, senão pela conduta que realiza. Vale dizer, é preciso que a conduta realizada que se incrimina seja associada necessariamente à atividade própria do cargo que exerce, ainda que tenha sido por ele desvirtuada. Enfim, não se trata do quão subalterna ou terceirizada é a função realizada para a determinação de ser ou não considerado funcionário, senão que isso é determinado precisamente pela aproximação existente entre a conduta incriminada e as atividades próprias da função pública exercida pelo criminoso. Somente se presente esta sobreposição é possível identificar um caso de crime especial do funcionário público. (BUSATO, 2017, pg. 583-584)

 

Desse modo, percebemos que a intenção, tanto no campo legislativo quanto no jurisprudencial, é enquadrar de forma ampla no conceito de funcionários públicos para fins penais todos aqueles que tenham uma relação intrínseca com o Estado ou com os bens jurídicos sob sua tutela.

 

2.3      Funcionário público e efeitos da condenação 

É fato que, além da pena prevista no tipo penal em apreço, existem outros efeitos decorrentes da condenação. Conforme o art. 92, I, do CP, a perda do cargo, função pública ou mandado eletivo será um efeito secundário da aplicação condenatória:

Art. 92 - São também efeitos da condenação:
I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação do dever para com a Administração Pública; 
b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. (...)
Parágrafo único - Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença. (BRASIL, 1940)

 

Percebe-se que o abuso de poder ou violação de poder tem um peso maior na legislação no que se refere a perda do cargo. Tal fato demonstra ainda mais a preocupação em retirar da estrutura administrativa aqueles que se valem de suas funções públicas para auferir vantagens indevidas, principalmente quando evidenciem uma clara ruptura entre atos que, em vez de legitimarem a indisponibilidade do interesse público, escondem espúrios interesses individuais.

Apesar da perda do cargo, função pública ou mandado eletivo não serem efeitos automáticos na aplicação da pena, existem situações nas quais esse entendimento será diverso. Isso apenas acontece por conta do grau de lesividade das condutas excepcionais, abrindo margem para uma maior repressão estatal, tanto na defesa dos princípios administrativos, quanto na defesa de interesses e garantias individuais abrangidos em normas constitucionais:

Conforme prevalece, há exceção na tortura e na organização criminosa, casos em que a condenação definitiva de agente público acarreta a perda do cargo como efeito automático da condenação. Fundamentos:
Tortura (art. 1º, § 5º, da Lei nº 9.455/97): “A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada. 
Crime organizado (art. 2º, § 6º, da Lei nº 12.850/13): “A condenação com trânsito em julgado acarretará ao funcionário público a perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a interdição para o exercício de função ou cargo público pelo prazo de 8 (oito) anos subsequentes ao cumprimento da pena.  (AZEVEDO; SALIM, 2020, pg. 222)

Nota-se, a partir das situações supracitadas, que o legislador se preocupou com as peculiaridades do caso concreto, procurando aplicar diferentes efeitos através de leis extravagantes. O Código Penal, apesar de sua extensão, não seria suficiente para a correta aplicação da pena quando confrontado com a infinidade de ilícitos penais que podem vir a ser praticados pelos funcionários públicos.

Outra lei especial, que trata de crimes praticados por funcionários públicos, foi promulgada em 2019, revogando a antiga lei de abuso de autoridade e disciplinando a aplicação de penas e seus efeitos em determinadas situações. A lei 13.869/2019 foi responsável por introduzir vários crimes próprios, em que o agente precisa ser um daqueles especificados no texto normativo como agente dotado de poder público para que responda segundo suas diretrizes. (SOUSA, 2020)

Os efeitos da condenação judicial pela nova lei de abuso de autoridade foram disciplinados de forma clara, ratificando a necessidade de fundamentação na sentença para que sejam aplicados, como percebe-se através da leitura do art. 4º e seus incisos:

Art. 4º São efeitos da condenação:
I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, devendo o juiz, a requerimento do ofendido, fixar na sentença o valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos por ele sofridos;
II - a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos;
III - a perda do cargo, do mandato ou da função pública.
Parágrafo único. Os efeitos previstos nos incisos II e III do caput deste artigo são condicionados à ocorrência de reincidência em crime de abuso de autoridade e não são automáticos, devendo ser declarados motivadamente na sentença. (BRASIL, 2019)

 

Frente ao exposto, é notável a diversidade de instrumentos legais disponíveis aos aplicadores do direito, configurando um verdadeiro sistema legal a ser usado na proteção dos bens jurídicos administrativos. Todas essas normas possuem a legalidade como norte, devendo, portanto, obedecer ao sistema processual acusatório adotado pelo Brasil. Além disso, é perceptível que grande parte dessa normatização repressiva vai ao encontro dos princípios norteadores da Administração Pública, quais sejam a supremacia e a indisponibilidade do interesse do interesse público.
 

CAPÍTULO III – ANÁLISE DO CRIME DE PECULATO

O presente capítulo terá por finalidade a conceituação do crime de peculato, as suas diferentes formas e a aplicação das respectivas penas previstas em lei. Trata-se de crime multifacetado e de emprego abrangente, uma vez que possui vários verbos nucleares, que, caso não fossem praticados por funcionários públicos, encaixariam perfeitamente em outros tipos penais como o furto e a apropriação indébita.

Por conta disso, percebe-se um grande número de entendimentos jurisprudenciais e de conceitos doutrinários com o intuito de explicar o alcance fático da norma penal. Essa não é uma tarefa fácil devido às inúmeras condutas ilícitas que podem ser realizadas por aqueles que emaranham seus interesses privados com o interesse público.

Por outro lado, muito além de punir os infratores, a norma pretende moralizar a estruturas da Administração Pública em seu sentido subjetivo. Tal encargo decorre de nossa norma maior, a Constituição Federal, que tratou de ressignificar o Estado como ente subordinado ao povo, o verdadeiro detentor do poder em um regime de governo democrático.

 

3.1      Do bem jurídico penalmente protegido

O peculato é um dos principais crimes praticados contra a administração pública. Por conta disso, sua normatização busca a proteção dos seguintes bens jurídicos: o patrimônio público, a moralidade e a probidade administrativa. Além da intenção de combater os administradores corruptos, a norma penal também se preocupa em trazer garantias de que o agente, em alguns casos, seja responsabilizado pela sua falta de cuidado com os bens públicos sob sua supervisão. (AZEVEDO; SALIM, 2020)

A origem da palavra peculato está atrelada mais ao objeto do tipo penal do que ao agente, como vemos nos dias atuais. Contudo, é importante conhecer a origem do termo para que se compreenda com a devida profundidade sua importância como medida de proteção estatal:

O termo peculato tem origem em Pecus (gado), que nas sociedades primitivas, antes que se conhecesse a moeda, foi utilizado como meio de troca, constituindo o mais importante patrimônio mobiliário e o mais visado para furtos. Daí a expressão romana peculatus ou depeculatus, que contempla a mesma raiz de pecunia e pecúlio.

Afirma-se, ainda, que no direito da antiguidade o peculato era comumente associado ao sacrilégio, acreditando-se que isto tenha relação com o fato de que em muitas culturas o gado era um objeto religiosamente consagrado. Mommsen afirma que “Sacrilegium, o mesmo por sua etimologia que segundo o uso corrente da palavra, era o furto dos bens pertencentes aos Deuses, como o peculatus era o furto de bens pertencentes ao Estado. Apesar da diferente denominação de um e outro, é indubitável que desde o princípio se lhes considerou formando realmente um só grupo”. (BUSATO, 2017, p. 443)

Como visto, a origem do tipo penal está estritamente ligada à tutela de bens estatais, cumprindo destacar que o patrimônio protegido pela norma penal é aquele pertencente a toda a coletividade, ou ainda, os bens privados que, por algum motivo, estejam sob a tutela do poder público. 

Outrossim, os bens abrangidos pelo tipo penal devem ser móveis, uma vez que não caberiam nessas definições os bens imóveis, que, conforme a doutrina, não são suscetíveis de apropriação. Tal característica se coaduna com a norma administrativa que proíbe a figura da usucapião em propriedades públicas. (BUSATO, 2017)

Em relação aos princípios da moralidade e da probidade, percebe-se que o comportamento da administração deve pautar-se, por óbvio, na legalidade. Todavia, além de comportar-se dentro dos parâmetros legais, ela também deve buscar uma ideia cotidiana de honestidade, procedendo de forma justa, equânime e baseada nos bons costumes. (DI PIETRO, 2019)

Entretanto, por conta da dificuldade de normatizar alguns elementos tão subjetivos, faz-se necessária a busca de referências doutrinárias e jurisprudenciais com o fito de suprir algumas lacunas e de aplicar, de uma maneira coerente, a norma penal.

Com isso, podemos citar a seguinte consideração sobre o binômio moralidade/probidade, a fim de esclarecer algumas dúvidas acerca de sua compreensão pelos operadores do direito:

A Lei nº 8.666/93 faz referência à moralidade e à probidade, provavelmente porque a primeira, embora prevista na Constituição, ainda constitui um conceito vago, indeterminado, que abrange uma esfera de comportamentos ainda não absorvidos pelo Direito, enquanto a probidade ou, melhor dizendo, a improbidade administrativa já tem contornos bem mais definidos no direito positivo, tendo em vista que a Constituição estabelece sanções para punir os servidores que nela incidem (art. 37, § 4º). O ato de improbidade administrativa está definido na Lei nº 8.429, de 2-6-92; no que se refere à licitação, não há dúvida de que, sem usar a expressão improbidade administrativa, a Lei nº 8.666/93, nos artigos 89 a 99, está punindo, em vários dispositivos, esse tipo de infração. (DI PIETRO, 2019, p. 773)

Pelo exposto, nota-se que os bens jurídicos protegidos pela norma são vitais para a sustentabilidade da administração pública enquanto instrumento estatal de garantia dos direitos e garantias constitucionais. Devido a isso, a ação penal do crime de peculato deverá ser pública incondicionada, devendo o ministério público promovê-la quando houver indícios suficientes da materialidade do ilícito e da sua autoria. 

 

3.2      Formas de peculato 

Diante das diversas modalidades do crime de peculato, é essencial entender cada uma delas. É fato que a lei buscou enquadrar diversas ações ilícitas que podem ser praticadas contra a administração pública, sendo o peculato um dos tipos legais de maior aplicação na jurisdição criminal.  

A definição do crime supramencionado está nos artigos 312 e 313 do Código Penal (CP), sendo que a própria norma já traz uma separação didática das ações ilícitas e de suas respectivas penas, a depender da gravidade com que atinjam os bens jurídicos protegidos: 

 

Peculato

Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

§ 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

 

Peculato culposo

§ 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano.

§ 3º - No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta.

 

Peculato mediante erro de outrem

Art. 313 - Apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de outrem:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. (BRASIL, 1940)

 

Como se vê, o delito foi ramificado em cinco tipos penais diferentes: o peculato apropriação e o peculato desvio, ambos tratados pelo caput; o peculato furto; o peculato culposo e o peculato mediante erro de outrem.

Para que haja a configuração do peculato apropriação, faz-se necessário o assenhoreamento do bem móvel. A posse, que pode ocorrer de forma total ou parcial, se faz presente quando o agente público age como verus dominus da coisa. O fato de não haver a posse pelo infrator, não significa, necessariamente, que ele restará impune. Porquanto, dentro das outras concepções do crime de peculato, existe o peculato furto que independe de qualquer relação possessória. (COSTA, 2010)

Contudo, não basta que haja simplesmente a posse da coisa pública, devendo haver uma relação direta e objetiva entre esta e o cargo daquele que venha a cometer o ilícito. Caso contrário, essa ação até poderia configurar outro tipo penal como a apropriação indébita estampada no artigo 168 do CP, mas com certeza não haveria como enquadrá-la na figura normativa do peculato apropriação. 

Em relação ao peculato desvio, o regramento é o mesmo no que se refere à ação penal, aos sujeitos e ao objeto jurídico, diferenciando-se, principalmente pela finalidade delitiva:

Desviar significa alterar o destino do bem que está em seu poder. O funcionário público emprega o objeto em um fim diverso de sua destinação original, com o intuito de beneficiar-se ou de beneficiar terceiro. Exs.: o funcionário público que paga alguém com dinheiro público por serviço não prestado ou objeto não vendido à Administração Pública; o que empresta dinheiro público de que tem a guarda para ajudar amigos etc.
O desvio deve ser em proveito próprio ou de terceiros, porque, se for em proveito da própria Administração, haverá o crime do art. 315 do CP (emprego irregular de verbas ou rendas públicas). 
O proveito pode ser material (patrimonial) ou moral — como a obtenção de prestígio ou vantagem política. 
Eventual aprovação de contas pelo Tribunal de Contas não exclui o crime.  (GONÇALVES, 2020, p. 839)

 

Como visto, o desvio irregular de bens públicos pelo agente, com a temerária intenção de aproveitar-se do posto ocupado, deve ser julgado conforme os ditames legais. Essa prática é um dos principais infortúnios que afligem a administração pública, causando inúmeros prejuízos ao povo.

Dentro das definições do peculato desvio, ainda existe um desdobramento chamado de peculato de uso. Trata-se do emprego de verbas ou bens públicos, de forma não autorizada e em proveito próprio ou de terceiros, pelo agente público. Urge salientar que o agente só será denunciado caso o uso seja de bem fungível, não sendo possível a sua condenação pelo mero uso de bens infungíveis. Contudo, caso haja o uso de bem infungível nas situações supramencionadas pelos prefeitos, estes responderão de conta de expressa determinação legal do art. 1°, II, do Decreto-lei n. 201/67 (GONÇALVES, 2020)

De forma inversa às categorias de peculato já mencionadas, a do peculato furto não pressupõe, previamente, a relação possessória entre o bem e o agente. Também conhecido como peculato impróprio, por conta das razões expostas, o peculato furto subdivide-se nas seguintes condutas tipificadas pelo artigo 312, § 1º do CP:

a) Subtrair: furtar, tirar, desapossar com ânimo de assenhoreamento. Exs.: funcionário público abre o cofre da repartição em que trabalha e leva os valores que nele estavam guardados; policial subtrai rádio (ou toca-CD) de carro apreendido que está no pátio da delegacia. 
Caso um policial esteja no interior de uma casa fazendo uma investigação e subtraia dinheiro de uma gaveta, responde por crime comum de furto (art. 155), porque o bem particular só pode ser objeto de peculato quando está sob a guarda ou custódia da Administração. 
b) Concorrer para que terceiro subtraia: o funcionário público colabora dolosamente para a subtração. Ex.: intencionalmente o funcionário deixa a porta da repartição aberta para que à noite alguém entre e furte. Há peculato furto por parte do funcionário e do terceiro. Pouco importa se o terceiro que efetiva a subtração também é funcionário público ou não. Trata-se de hipótese de concurso necessário, e ambos respondem pelo peculato, nos termos do art. 30 do Código Penal. (GONÇALVES, 2020, p. 840)

 

Dessa maneira, percebe-se a íntima ligação desse tipo penal com o furto, diferenciando-se deste por haver a necessidade do agente, não só ser considerado funcionário público para fins penais, mas também usar essa qualidade para perpetrar o delito. 

É fato que os ilícitos tratados no gênero peculato exigem uma ação do agente. Porém, uma de suas espécies também admite a conduta omissiva imprópria que concorra para a ação lesiva aos bens jurídicos protegidos pelo tipo penal. Caso essa ação seja praticada com a concorrência culposa do funcionário público, este responde pelo peculato culposo. Contudo, se ele participar ativamente da prática delituosa, não caberá tal modalidade culposa, mas sim uma das outras espécies abrangidas pela norma penal. (SARRUBBO, 2012)

O peculato culposo admite a tentativa, consumando-se no mesmo momento consumativo do outro crime que for a causa da concorrência culposa do funcionário público: 

O funcionário, por negligência, imprudência ou imperícia, concorre para a prática de crime de outrem, seja este também funcionário ou simples particular. 
É imprescindível que o sujeito tenha a posse ou a detenção do objeto material diante da atividade por ele realizada na Administração Pública. 
Se o terceiro, também funcionário público, vale-se da facilidade de acesso que tem junto à repartição pública, concorrendo à conduta culposa de outro, este responde por peculato culposo; aquele, pelo delito do art. 312, § 1o (peculato furto).
O crime se aperfeiçoa com a conduta dolosa de outrem, havendo necessidade da existência de nexo causal entre os delitos, de maneira que o primeiro tenha permitido a prática do segundo. (SARRUBO, 2012, pg. 237)

 

Desse modo, é clara a opção legislativa de asseverar a necessidade de punição estatal para todos aqueles que de alguma forma concorram para a desmoralização do serviço público e para a dilapidação de seu patrimônio.

Por fim, a espécie prevista pelo artigo 313 do CP, também chamada de peculato impróprio, é o peculato mediante erro de outrem, que possui o dolo como elemento subjetivo. Essa categoria admite ainda a tentativa e a conduta omissiva imprópria, figurando no polo passivo da ação penal a pessoa lesada e o Estado:

O funcionário se apropria de dinheiro ou de qualquer utilidade quando do exercício de seu cargo, a partir da ocorrência de erro alheio, que deve ser espontâneo. O agente não induz a vítima ao erro, como ocorre no estelionato. Ele percebe o equívoco do outro e apodera-se do bem, sendo a posse advinda desse erro, ou seja, o funcionário público não tem a posse prévia do objeto material. 
O erro pode suceder não só de particular, mas também de outro funcionário público.
Consuma-se o delito quando o funcionário público atua como se dono fosse da coisa. 
Perpetra o delito o servidor público federal que percebe vencimento pago a mais pela União e não o devolve, sendo certo que a jurisprudência tem entendido que o crime somente se consuma quando este, chamado a dar conta, cai em mora e não o restitui (TRF-3a Região, AC n. 20000399011516-0/SP, 5a T., rel. Des. Fed. André Nabarrete, j. 17.09.2002). 
O crime resta caracterizado, portanto, quando o agente público que recebeu o objeto material por erro de outrem se recusa a devolvê-lo após ter sido cientificado do equívoco. (JALIL; FILHO, 2016, p. 802-803)

 

Desse modo, nota-se que que o crime praticado pelo funcionário público, caso haja indução da vítima em erro, será o de estelionato. Isso ocorre por conta da definição legal, que impõe a necessidade de o dolo ocorrer na intenção do agente de apropriar-se do bem alheio e de sua entrega ocorrer mediante erro advindo da vítima.

Pelo exposto, insta comentar que a jurisprudência majoritária não acolhe a possibilidade da aplicação do princípio do princípio da insignificância nos crimes praticados contra a administração pública. Contudo, pode haver algumas exceções a depender do caso concreto e da gravidade da conduta, devendo o juiz sempre amparar-se nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

 

3.3      Análise das penas aplicáveis 

É fato que, antes de adentrar-se nas penas aplicáveis ao crime de peculato, é recomendável o prévio conhecimento do procedimento especial dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos. Mesmo que a caracterização como crime de responsabilidade remeta ao julgamento feito por órgãos políticos dentro do poder legislativo, o procedimento acima mencionado cuida, especificamente, dos crimes funcionais afiançáveis localizados entre o artigo 312 e o 326 do CP. (NUCCI, 2021)

O procedimento especial para os crimes funcionais justifica-se porque, em alguns casos já embasados em provas pré-constituídas, há a dispensabilidade do inquérito policial. Por conta disso, prevê o procedimento que o funcionário público terá o direito de manifestar-se previamente ao recebimento da denúncia:

A notificação do acusado para, previamente ao recebimento da denúncia, manifestar-se sobre o tema, apresentando sua defesa e evitando que seja a inicial recebida, é privativa do funcionário público, não se estendendo ao particular que seja coautor ou partícipe.
A justificativa para haver a defesa preliminar, adotando-se procedimento especial, é a ausência de inquérito policial, dando sustentação à denúncia, razão pela qual, quando o inquérito for feito, inexiste razão para seguir esse rito. Atualmente, pacificou-se o entendimento, editando-se a Súmula 330 do STJ: “É desnecessária a resposta preliminar de que trata o artigo 514 do Código de Processo Penal, na ação penal instruída por inquérito policial”. (...)
(...) A não concessão de prazo para o oferecimento de defesa preliminar gera nulidade relativa, dependente da prova do prejuízo e da alegação da parte interessada. Há quem sustente tratar-se de nulidade absoluta, pois não se respeitou o procedimento legal.
Dado o prazo para apresentação da defesa preliminar, não o fazendo o funcionário, é irrelevante. Afinal, ele não é obrigado a contestar o contido na denúncia, sendo apenas faculdade fazê-lo. (NUCCI, 2021, p. 466)

Apesar da previsão legal desse procedimento, verifica-se que, atualmente, é pouco utilizado, principalmente por conta da preferência dada ao uso do inquérito policial. Isso ocorre pois é aconselhável que, dentro de um sistema acusatório, a denúncia já tenha base suficiente, com inequívocos indícios de autoria e materialidade, para o início da persecução penal.

Por outro lado, quando falamos sobre as penas aplicáveis às diversas modalidades de peculato, percebe-se uma espaçosa margem entre o quantum de fixação da pena privativa de liberdade. Isso ocorre não só por conta de uma infinidade de delitos que podem ser praticados sob a cobertura desta norma penal, mas também pelos diversos valores morais desrespeitados por essa prática. (BUSATO, 2017)

 Além disso, a multa é presente em quase todas as figuras do peculato. O que é natural, principalmente por trata-se de um crime patrimonial que atinge a coletividade.

A exceção ao modus operandi de aplicação das penas está no peculato culposo, também chamado de fórmula imprudente. Este, além de não prever a aplicação de multa, possui a pena de detenção, diferenciando-se das demais categorias, que são punidas mediante a reclusão:

Na fórmula imprudente, existe uma sensível redução da pena, para detenção, de três meses a um ano, convertendo o delito em crime de menor potencial ofensivo. Este dado é revelador da escassa importância do dispositivo incriminador e reforça a convicção de que a solução para casos quejandos residiria na seara do direito administrativo. Trata-se efetivamente de uma causa especial de redução de pena, ou seja, uma providência a posteriori da própria condenação.
 De qualquer modo, uma vez condenado, pode o réu reduzir à metade sua pena, na hipótese de delito imprudente, pelo ressarcimento do dano à vítima, por disposição expressa do § 3º do art. 312. 
Esta mesma disposição, aplicável tão somente ao crime imprudente, prevê uma hipótese de extinção da pretensão de punibilidade: a reparação do dano por parte do agente antes da sentença condenatória irrecorrível. (BUSATO, 2017, pg. 459)

 

Nota-se, portanto, que o legislador, ao tipificar o crime de peculato, criou um verdadeiro sub sistema legal dos crimes contra a administração pública, a fim de proteger os bens jurídicos administrativos. 

O peculato é o primeiro tipo penal a ser tratado por esse sistema, o que ratifica sua importância na defesa desses bens. Malgrado seja uma forma de resistência aos desmandos de alguns gestores corruptos, ainda há muito a ser feito pela moralidade do serviço público. Por isso, o combate à corrupção ainda é crucial na sociedade brasileira, seja na punição daqueles que depredam o erário, seja no exemplo a ser dado àqueles que participam ativamente da vida pública.

 

CONCLUSÃO

Arrematando, o desenvolvimento da presente pesquisa buscou, de forma objetiva, a análise conceitual do crime de peculato, amarrando conceitos doutrinários e a aplicação das penas por nossas cortes superiores.

Constatou-se o impacto negativo desses crimes nas estruturas do Estado, uma vez que, mesmo após inúmeras ocorrências de ilícitos praticados contra o erário público durante a evolução desta nação, não se avançou de forma consistente no combate a esses delitos atualmente.

Não se pode olvidar dos esforços jurisprudenciais e administrativos nesse período. Ocorre que, cada vez mais, surgem novos escândalos envolvendo agentes estatais no trato dos bens públicos, devendo os órgãos responsáveis pela probidade do estado buscar sempre por ferramentas e tecnologias capazes de desestruturar as bases corruptas destas organizações criminosas.  

Chegou-se à conclusão de que os ilícitos abrangidos pelo crime de peculato são muito danosos à sociedade brasileira, estando presente em praticamente todos os núcleos de poder dos diversos entes federativos. O combate a esses crimes é responsabilidade de todos, tanto por parte do estado, quanto por parte dos indivíduos, os quais devem denunciar e cobrar medidas repressivas de seus representantes.

O assunto não se esgota na presente pesquisa. No futuro, certamente projetos de leis mudarão o cenário atual e novas posições jurídicas acerca do tema serão firmadas. 
 

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Data da conclusão/última revisão: 12/09/2021

 

Como citar o texto:

VALADÃO, Carlos Antônio Bernades; LIMA, Adriano Gouveia..A proteção do bem jurídico administrativo e a análise do crime de peculato. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 20, nº 1072. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/11419/a-protecao-bem-juridico-adminstrativo-analise-crime-peculato. Acesso em 28 fev. 2022.

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