A ausência de regulação fundiária adequada e a exploração da Amazônia brasileira nos moldes da acumulação capitalista intensificaram um cenário emergente de crise. A fim de buscar uma interpretação para além da visão legalista e restritiva, não raro, do Direito Agrário, propõe-se uma análise que não seja restrita a concepção positivista do direito e, que permita pensar a produção da lei a partir de uma perspectiva democrática.

O debate acerca do tema pauta-se pela aliança entre capital e propriedade fundiária, no qual quem detém a posse é favorecido pelo processo de valorização da terra como mercadoria. Nessa perspectiva, as comunidades tradicionais e povos indígenas desempenham importantes papeis como agentes de preservação da Amazônia e de suas riquezas, pois suas vivências pressupõem equilíbrio com o meio ambiente.

Os conflitos fundiários na região datam desde sua ocupação geopolítica e, sobretudo, econômica. Em 1950, os governos brasileiros encaravam a Amazônia como espaço vazio, embora a região estivesse ocupada por diversas tribos indígenas e por uma população camponesa.

Ocorreu uma expropriação violenta dos ocupantes originais da região, através de ações violentas para estabelecer a ocupação agropecuária, fundações de fazendas e indústrias. O Governo brasileiro, tanto populista quanto militar, socializou os custos dessa ocupação capitalista da Amazônia, ofereceu recursos e incentivos fiscais - que favoreceu o modelo concentracionista de propriedade.

Em termos dos grandes conflitos étnicos com os índios e camponeses, muitos passaram a viver na miséria da subocupação e dependiam de mecanismos atrasados e arcaicos de exploração de mão-de-obra.

Desse modo, os conflitos relacionados à terra se tornaram comuns na região, com grandes proprietários de terras estabelecendo seu capital de forma ilegal.

Sobre o respaldo legal da regularização fundiária é necessário ressaltar que os interesses legislativos foram alheios às peculiaridades regionais da Amazônia.

A narrativa hegemônica do direito propiciou uma realidade conflituosa e injusta, por vezes, do direito agrário. Propor a perspectiva da visão sistêmica, do sociólogo francês chamado Edgar Morin, o qual a análise do tema se perfaz em diferentes perspectivas, faz-se necessário através do confronto interdisciplinar para uma construção mais justa e eficiente do direito, levando em consideração as especificidades da região e implicações no plano internacional.

O redimensionamento da “política de desenvolvimento” da região amazônica esbarra na política fundiária e na real necessidade de assegurar o direito das populações tradicionais e indígenas afetadas pela negligência do Estado.

A análise de dados fundiários na região Amazônica é alarmante, florestas públicas sem destinação legal são alvos de grilagem e representam 20% dos focos de queimadas ocorridas em 2019. A grilagem na região é atestada pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) dos 45.256 focos de calor no bioma Amazônia registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) entre 1º de janeiro e 29 de agosto de 2019.

Em que pese a Constituição brasileira de 1988 ser extremamente protetiva em termos ambientais, surge uma legislação infraconstitucional disciplinando a matéria com uma série de problemas. Por exemplo, o Código Florestal (Lei n. 12.651/2012) estabelece que todo proprietário ou posseiro deve se inscrever no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Contudo, não estipulou prazo e, ao deixar em aberto a inscrição em um importante instrumento de controle, monitoramento e combate ao desmatamento, abre margem para uma série de problemas de fiscalização.

No Acordo de Paris, conferência sobre mudança climática, o Brasil se comprometeu em fortalecer suas políticas e medidas com vistas a alcançar na Amazônia brasileira o desmatamento ilegal até 2020 e na recuperação de 12 milhões de hectares de florestas até 2030. Logo, ao deixar em aberto o prazo de inscrição no CAR significa que até o ano em vigor, o desmatamento ilegal não será passível de monitoramento, em sentido oposto do compromisso firmado.

Diante a tentativa de proteção do meio ambiente e direito das populações indígenas e comunidades tradicionais, outra legislação foi questionada como, em situação semelhante, a Lei n. 13.465/2017.

A Lei n. 13.465 prevê como possibilidade de regularização da posse mediante a conversão do uso do solo. Anteriormente, para regularizar a posse fazia-se necessário cumprir todos os requisitos, simultaneamente, da Função Social elencados no artigo 186 da Constituição Federal de 1988. Com efeito, a legislação atual enfraquece o instituto da Função Social da terra e, consequentemente, inviabiliza a luta por Reforma Agrária e viabiliza grandes quantidades de terras públicas para o mercado fundiário.

Ademais, a Lei n. 13.465 também inova com um instituto chamado ‘áreas rurais consolidadas’ ao estipular que tudo o que foi desmatado ilegalmente até 2008 se consolida dessa forma, em outros termos, foi concedida ‘anistia’ aos desmatadores. Tal hipótese foi fundamentada na Teoria do Fato Consumado, sob o entendimento de que em casos excepcionais, em que a restauração da estrita legalidade ocasionaria mais danos sociais que a manutenção da situação consolidada pelo decurso do tempo a situação se manteria daquela forma. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento contrário, vejamos:

TEORIA DO FATO CONSUMADO. INACEITÁVEL. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça preceitua que “o novo Código Florestal não pode retroagir o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientas o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da ‘incumbência’ do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1°, I)” (AgRg no REsp 1.434.797/PR, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 7/6/2016). [...] 3. A jurisprudência desta Corte entende que a teoria do fato consumado em matéria ambiental equivale a perpetuar, a perenizar um suposto direito de poluir que vai de encontro, no entanto, ao postulado do meio ambiente equilibrado como bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida. Dessa forma, tal teoria é repelida pela incidência da Súmula 613 do STJ, que preceitua: Não se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental.

É necessário deslocar o olhar racional e simplificado promovido pelo monismo jurídico para as antinomias presentes na realidade empírica dos conflitos envolvendo a terra. Desse modo, expor as fragilidades do Estado Liberal e propor uma revisão crítica das questões fundiárias implica em confronto e, permite estabelecer que, por exemplo, a luta por demarcação de terras indígenas deve ser uma luta coletiva, pois sua vivencia permite uma relação de respeito com o meio ambiente que implica em benefícios a coletividade.

Ao falar de Amazônia sob a perspectiva do Direito Agrário, é reafirmar que o desenvolvimento sustentável deve orientar todo o processo de regularização fundiária, com base na exploração racional dos recursos naturais, em beneficio tanto do desenvolvimento econômico como o social. Samuel Benchimol, um dos principais especialistas da região amazônica, sustenta como principal bandeira o desenvolvimento sustentável em políticas que respeitem o equilíbrio do meio ambiente. 

Discutir a autodeterminação dos povos indígenas e comunidades tradicionais se manifesta na luta de existências não submissas à acumulação capitalista – sem com isso provocar um colapso socioambiental e impedir a promoção da justiça social. 

As construções teóricas acerca do Pluralismo Jurídico rompem com a ideia de um direito posto, imóvel e completo. Revelam que a luta por direitos e a hermenêutica jurídica são construções que não terminam, devendo ser experiências que comunicam com a sociedade. Através da sensibilidade crítica, é preciso analisar e fomentar as práticas de justiça social, para além de um manifesto panfletário, denunciar o aumento dos latifúndios, o êxodo rural, a fome e a exclusão social.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E DE PESQUISA

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Data da conclusão/última revisão: 31/1/2020

 

Como citar o texto:

SILVA, Patrícia Rodrigues da..A Política Fundiária da Amazônia. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1696. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-agrario/4686/a-politica-fundiaria-amazonia. Acesso em 11 mar. 2020.

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