A reforma trabalhista finalmente aconteceu, veio por meio da Lei 13.467 de 13 de julho de 2017, e ainda gera diversas discussões, especialmente por ter a referida norma revogado da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) dispositivos que estariam alinhados com as normas constitucionais. Mas aí fica fácil de se resolver. Quando há conflitos entre normas infraconstitucionais (postas abaixo da Constituição Federal/88) e constitucionais (contidas na CF/88), prevalece a nossa Lei Maior, isto é, os dispositivos da Constituição se sobrepõem aos demais.

            O problema maior é quando há conflitos entre princípios. Sabe-se que comumente o Supremo Tribunal Federal resolve questões que há muito são discutidas, gerando diversos entendimentos pelos magistrados do país; então, quando o STF finalmente se pronuncia sobre determinada questão diz-se que se pacificou o entendimento. Aquele passa ser o “Norte” para as futuras sentenças que discutam aquele mesmo assunto. Comumente a Suprema Corte se faz valer de princípios para dirimir os diversos conflitos que ali se travam.

            Ocorre que são diversos os princípios contidos na Constituição Federal, sendo que pode vir de haver conflitos principiológicos num determinado tema. A contraposição entre princípios constitucionais é possível, portanto; contudo, quando vir a ocorrer, deve-se procurar reduzir o âmbito de alcance de cada princípio confrontado de maneira equitativa ou, em determinadas situações, verificar a precedência estabelecida na ordem de prioridade estabelecida pela própria Carta Constitucional. Por exemplo: os princípios que asseguram a dignidade da pessoa humana devem prevalecer sobre o princípio da supremacia do direito público sobre o privado, eis que o primeiro vem antes na Carta Magna, e assim por diante.

            Antes, é preciso que se compreenda que não se trata de uma relação hierárquica entre princípios, mas sim, em suma, da definição do princípio da razoabilidade. Assim, em situação de conflito principiológico é necessário obscurecer parcialmente um princípio para que outro possa resplandecer de forma mais intensa através de um exercício de ponderação de interesses, procedendo-se uma filtragem constitucional, ou seja, submetendo o conflito à lentes dos princípios constitucionais mais pertinentes para serem aplicados naquele caso concreto. Tal filtragem vai permitir uma solução mais igualitária ao caso concreto evitando exageros, injustiças e, sobretudo, decisões engessadas que desconsideram as peculiaridades específicas de cada caso. Dentro deste contexto temos munição para combater os denominados efeitos vinculantes e suas derivações como a súmula vinculante, por exemplo.

            Trago aos leitores um exemplo muito claro da injustiça que a aplicação irrestrita de uma súmula pode causar, sumula esta que foi forjada sob a égide de um princípio; vejamos:

SÚMULA 363 do Tribunal Superior do Trabalho

A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.

             

            Ocorre que é fato notório que as prefeituras do país, salvo raríssimas exceções, contratam de forma precária diversas trabalhadores, afim de compor o quadro de servidores públicos escolhidos por secretários e prefeitos. Deixam assim de realizar concursos públicos, conforme prescreve a norma constitucional como forma de ingresso no serviço público. Quando o trabalhador é dispensado, recebe apenas o salário do mês, somente neste instante fica cientificado de que não tem direito a mais nada, nem férias, nem décimo terceiro salário, nem horas extras, ou quaisquer outras verbas trabalhistas.

            Independentemente de qualquer interpretação, uma coisa é certa: o trabalhador não pode ser penalizado por motivos de desídia do Estado que não faz a sua parte, não realizando concursos públicos para suprimento de vagas, todavia, contrata a mão de obra qualificada, sem precisar se responsabilizar em oferecer o mínimo de dignidade ao cidadão (direitos trabalhistas).

            Ao mesmo tempo em que a Administração está adstrita ao princípio da legalidade, também deve respeito ao princípio da igualdade. Prevalecendo, neste ínterim, o princípio da ponderação dos valores.

            Dito isso, algumas indagações saltam aos olhos: por que o trabalhador que foi contratado para prestar os serviços idênticos aos do concursado, será prejudicado, não recebendo seus direitos mínimos elencados na Constituição Federal (art. 7º, CRFB/88)? E ainda: se o Estado está sendo irresponsável não respeitando a legalidade posta pela lei (art. 37, II, §2º da CRFB/88) por que recair sobre o servidor temporário a culpa de sua negligência? Não haveria aí ofensa ao princípio da isonomia?

            Credenciar incidência IRRESTRITA à Súmula 363 do TST, seria como orientar a pessoas físicas a não prestar serviços ao poder público, forçando este a realizar o concurso. Convenhamos que, na prática, isso é quase impossível. A carência de empregos na atualidade é imensa e se a pessoa recebe uma oportunidade de emprego irá abraçá-la, submetendo-se à exorbitância das cláusulas do contrato com o poder público que não lhe assegurará os direitos postos da Constituição Cidadã, haja vista a necessidade de sobrevivência humana.

            Vislumbra-se neste momento um paradoxo: como pode o Estado ao elaborar o Texto Maior e as leis trabalhistas obrigar uma empresa privada a arcar com todas as verbas do empregado nos casos de rescisão contratual, e ele próprio, o responsável pela execução das leis, em sua função administrativa, não cumpre com o seu papel? Responder-se-á a este questionamento talvez com: por meio da vigência do princípio da Supremacia do Direito Público sobre o privado; correto, mas fica a questão: tal princípio poderia servir de “escora” para lesar direitos individuais ou sociais constitucionalmente estabelecidos? Com a devida vênia, entendemos que não.

            Tal entendimento é inadmissível, isto sob a ótica dos princípios da dignidade da pessoa humana, isonomia e da vedação ao retrocesso social, princípios basilares dos direitos sociais.

            É cediço que os princípios, os quais são vetores de interpretação, se sobrepõem à norma, e para todos os efeitos não se pode permitir que o empregado seja punido com o cerceamento de seus direitos fundamentais tendo em vista a omissão do ente público em não cumprir com suas obrigações legais. Quem deve ser penalizado por contratações irregulares é única e exclusivamente o Poder Público, assim como já prescreve o § 2º do art. 37, II da CRFB e o art. 11 da Lei 8.429/92 (Lei da Improbidade Administrativa).

            Portanto, a conclusão é simples: se tal súmula continuar a viger ISENTA DE QUALQUER RESTRIÇÃO, embasando relações trabalhistas precárias sob o “pano-argumentativo” de relação jurídico-administrativa o poder público sempre irá retardar a realização de concursos públicos, até que haja a atuação do Ministério Público no sentido de orientar à realização do concurso público, sob pena de estar incorrendo em ato de improbidade, assim quem perde é o cidadão comum – os que precisam trabalhar e se sujeitam a qualquer proposta.

            Uma outra questão que fica é: o que garante que tais contratações não sejam efetuadas de forma pensada, proposital? O que assegura que a finalidade de tais contratações seja de conseguir o gestor público fazer uma suposta “economia” das verbas públicas às custas do sacrifício de direitos pessoais e sociais de outrem? Simplesmente não há garantia alguma acerca das reais intenções desse tipo de contratação precária.

            Sendo assim, conclui-se: ainda que a Súmula 363 do TST esteja sob a proteção do princípio da Supremacia do direito público sobre o privado, há que se sopesar os demais princípios em cada caso concreto, sendo por certo que uma relação trabalhista de origem precária que se arraste por mais de 2 anos (princípio da razoabilidade), por exemplo, jamais poderia ser caracterizada como uma relação jurídico-administrativa, por certo haveria aí uma relação trabalhista de fato.

Data da conclusão/última revisão: 09/10/2017

 

Como citar o texto:

SEIBERT, Ailto Roberson..Súmula 363 do TST: uma questão de conflitos principiológicos. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1483. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-do-trabalho/3754/sumula-363-tst-questao-conflitos-principiologicos. Acesso em 10 nov. 2017.

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