1. Considerações Iniciais

 

Na ocorrência de anencefalia, por se tratar de anomalia biológica complexa que envolve uma série de aspectos tutelados pelo Direito, apresentam-se diversas vertentes jurídicas com o escopo de solucionar tal problemática. Embora neste particular haja inúmeras teorias que procuram resolver a situação vivida pela gestante, carece ainda o mundo jurídico de um posicionamento decisivo a respeito tão delicada questão.

Por se tratar de um tema melindroso, faz-se necessário primeiro buscar uma definição de anencefalia e suas principais implicações. Segundo o professor titular de Ginecologia da USP José Aristodemo Pinotti, a anencefalia é assim descrita:

A anencefalia é resultado da falha de fechamento do tubo neural, decorrente da interação entre fatores genéticos e ambientais, durante o primeiro mês de embriogênese. O reconhecimento de concepto com anencefalia é imediato. Não há ossos frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borda superior das órbitas que contam globos oculares saliente. O cérebro remanescente encontra-se exposto e o tronco cerebral é deformado. Hoje, com os equipamentos modernos de ultra-som, o diagnóstico pré-natal dos casos de anencefalia torna-se simples e pode ser realizado a partir de 12 semanas de gestação. A possibilidade de erro, repetindo-se o exame com dois ecografistas experientes, é praticamente nula.

Dentre as complicações da gestação de feto anencéfalo destacam-se o deslocamento da placenta, o trabalho de parto demorar de 2 a 3 vezes mais, haver 3 a 5 vezes mais incidência de hipotonia uterina e, por fim, haver hemorragia no pós-parto. Ademais, pelo fato da mulher não amamentar, também a involução uterina é mais lenta, suscitando sangramentos, além de eclampsia, embolia pulmonar, aumento do líquido amniótico e até a morte materna.

Vale salientar que nos fetos anencéfalos, 75% já nascem mortos e os que sobrevivem tem uma expectativa extra-uterina de no máximo 48 horas. Existem casos de alguns que nasceram e conseguiram sobreviver por alguns poucos dias.

Em tais casos, o fator psicológico casos é incomensurável, pois é uma dádiva para uma mulher ser mãe, e é frustrante ter conhecimento que o seu filho tão esperado terá no máximo horas de vida. Daí surge o questionamento de abortar e sentir a dor antecipada ou esperar a gestação completar-se e haver um apego ou frustração maior.

Este trabalho procura demonstrar que na incidência de gravidez de feto anencéfalo, por não estar tipificado penalmente e por revelar a colisão de direitos fundamentais, fazem-se necessárias a interpretação conforme a Constituição e a aplicação do principio da proporcionalidade nas disposições penais pertinentes, para que a final se conclua ser desnecessária a autorização para a antecipação terapêutica do parto.

Assim, não seria preciso criar hipótese nova de permissão do aborto, além das já existentes em nossa legislação penal, mas interpretá-la conforme a Constituição, à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana, liberdade e autonomia da vontade, além do fundamental direito à saúde.

2. Colisão de direitos fundamentais

2.1 Sistema jurídico

Ao averiguar o processo de interpretação sistemática, Carlos Maximiliano aduz que o direito não se constitui num conglomerado caótico de preceitos, mas numa vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma em seu lugar próprio fixada cada uma em seu lugar próprio.

No entendimento de Jean Dabin , as regras de direito não constituem um ajustamento de peças desligadas, sem ligação umas com as outras. Ao contrário, elas formam conjuntos orgânicos (...).

Com fulcro no clássico posicionamento de Hans Kelsen , para que se possa falar em ordem normativa, faz-se mister que todas as normas busquem seu fundamento em uma e mesma norma, a qual, por isso, denomina-se norma fundamental. A partir dessa premissa, a norma fundamental constitui a unidade das mais diversas normas jurídicas, da qual todas vão extrair o seu fundamento de validade. Aduz Lourival Vilanova a respeito da proporção normativa fundamental, que ela oferece não somente o critério de pertinencialidade ao sistema, como o caráter homogeneamente normativo de suas partes integrantes.

Para Edmond Picard , o sistema jurídico:

(...) forma uma massa compacta dotada da unidade orgânica da mesma forma que um corpo humano, mas com dimensões gigantescas (...) Em realidade, vivendo e funcionando, ele se manifesta, neste conjunto, como uma colônia de células jurídicas. É um todo lógico, sistemático, em vasto encadeamento de milhares de seres e de ralações, uma imensidão onde tudo é conformado e engrenado, onde tudo é orquestrado por uma sinfonia de efeitos sociais. Parece um composto de moléculas: cada direito particular, cada disposição legal, cada concepção jurídica intelectual é uma de suas moléculas (...).

Assim, Pontes de Miranda define os sistemas jurídicos como sistemas lógicos, compostos de preposição que se referem às situações da vida, criadas pelos interesses mais diversos.

A partir da análise do sistema jurídico encontramos os princípios, os quais são proposições fundamentais que um sistema jurídico.

2.1.1 Princípios constitucionais

De acordo com Plácido de Silva , podemos inferir que princípios jurídicos significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio direito. Indicam o alicerce do direito.

Assevera Celso Antônio Bandeira de Mello que princípio é o:

Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.

Deste modo percebe-se que a violação de um princípio é mais grave que a transgressão de outra norma qualquer, pois implica ofensa a todo o sistema jurídico e não somente a uma determinada prescrição normativa.

Caso haja violação aos princípios, esta representa no entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello a insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e coesão de sua estrutura mestra.

Ressalta Canotillho que a consciência dos princípios é conflitual, permitindo o balanceamento de valores e interesses, enquanto a das regras é antinomia, o que acarreta a exclusão de uma delas.

Neste sentido os princípios, ao contrário da outra espécie de norma, possuem uma amplitude própria, ou seja, a dimensão do peso ou da importância relativa de cada um deles, mesmo que todos sejam válidos.

2.2 Princípio da dignidade da pessoa humana

Em seu art. 1º, III, a CF consagra como um dos seus fundamentos o princípio da dignidade da pessoa humana.

Diz Daury César Fabriz sobre a dignidade da pessoa humana:

(…) a dignidade da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é um ser idela e abstrato. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível e insubstituível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege. Em todo o homem e em toda a mulher estão presentes todas as faculdades da humanidade.(griffo do autor)

Tal princípio é fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, dando unidade e coerência aos demais comandos.

O princípio da dignidade da pessoa humana pode também ser conceituado por Alexandre de Moraes da seguinte maneira:

Concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Neste sentido, Ingo Wolfgang Sarlet é preciso:

A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todos e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Reconhecer o princípio da dignidade da pessoa humana pressupõe que se respeite a esfera de autodeterminação dos indivíduos, que devem ter o poder de tornar as decisões primordiais sobre suas próprias vidas e de manter um comportamento conexo com elas. Assim, cada pessoa é um agente moral dotado de razão, com capacidade de decidir o que é bom ou não para si, traçar planos de vida e realizar escolhas existenciais, em suma, guiar-se de acordo com sua vontade.

2.3 Direito à saúde

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (CF, art. 196), sendo de relevância pública as ações e serviços de saúde. Cabe ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo a execução ser procedida diretamente ou por meio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado (CF, art. 197).

2.4 Direito à vida

O direito à vida é o supedâneo de todos os demais direitos humanos, pois constitui pré-requisito à existência e efetividade dos demais direitos.

Neste diapasão, acentua Alexandre de Moraes :

O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que constitui-se em pré-requisito a existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive a uterina.

Destarte, a preservação da vida humana encontra-se assegurada no art. 5º, caput, da CF, integrando elementos materiais (físicos) e imateriais (espirituais). Também, trata-se de um direito inato, de características próprias, a saber: intransmissível, irrenunciável e indisponível.

Assevera Maria Helena Diniz que:

O direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, caput, assegura a inviolabilidade do direito à vida, ou seja, a integralidade existencial, conseqüentemente, a vida é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico desde a concepção, momento específico, comprovado cientificamente, da formação da pessoa. Se assim é, a vida humana deve ser protegida contra tudo e contra todos, pois é objeto de direito personalíssimo. O respeito a ela e aos demais bens ou direitos correlatos decorre de um dever absoluto ‘erga omnes’, por sua própria natureza, ao qual a ninguém é lícito desobedecer...Garantido está o direito à vida pela norma constitucional em cláusula pétrea, que é intangível, pois contra ela nem mesmo há o poder de emendar...tem eficácia positiva e negativa...A vida é um bem jurídico de tal grandeza que se deve protegê-lo contra a insânia coletiva, que preconiza a legalização do aborto, a pena de morte e a guerra, criando-se normas impeditivas da prática de crueldades inúteis e degradantes...Estamos no limiar de um grande desafio do século XXI, qual seja, manter o respeito à dignidade humana.

Cabe salientar o pensamento de Cretella Junior :

O direito à vida é o primeiro dos direitos invioláveis, assegurados pela Constituição. Direito à vida é expressão que tem, no mínimo, dois sentidos, (a) o “direito a continuar vivo, embora se esteja com saúde” e (b) “o direito de subsistência”: o primeiro, ligado à segurança física da pessoa humana, quanto a agentes humanos ou não, que possam ameaçar-lhe a existência; o segundo, ligado ao “direito de prover à própria existência, mediante trabalho honesto”...

Aduz ainda Pontes de Miranda que:

O direito à vida é inato; quem nasce com vida, tem direito a ela (...) Em relação às leis e outros atos, normativos, dos poderes públicos, a incolumidade da vida é assegurada pelas regras jurídicas constitucionais e garantida pela decretação da inconstitucionalidade daquelas leis ou atos normativos (...)O direito à vida é direito ubíquo: existe em qualquer ramo do direito, inclusive no sistema jurídico supraestatal (...)O direito à vida é inconfundível com o direito à comida, às vestes, a remédios, à casa, que se tem de organizar na ordem política e depende do grau de evolução do sistema jurídico constitucional ou administrativo (...)O direito à vida passa à frente do direito à integridade física ou psíquica (...) o direito de personalidade à integridade física cede ao direito de personalidade à vida e à integridade psíquica.

Fica evidente que o direito à vida é a base do ordenamento jurídico, de sorte que suas disposições tem aplicação tanto na existência quanto na subsistência humana.

3. Aborto ante a inviabilidade de vida humana

Aduz Maria Helena Diniz que o vocábulo aborto é originário do latim abortus, advindo de aboriri (morrer, perecer), utilizado para denominar a interrupção da gravidez antes de seu tempo normal, seja ela espontânea ou provocada, com ou sem expulsão do feto destruído.

Segundo Delton Croce e Delton Croce Júnior abortamento é o ato de abortar. É o conjunto de meios e manobras empregados com o fito de interromper a gravidez.

Léo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine vislumbram o aborto como:

A expulsão ou extração de toda ou qualquer parte da placenta ou das membranas, sem um feto identificável, ou de um recém nascido vivo ou morto, que pese menos de quinhentos gramas. Na ausência do conhecimento de peso, uma estimativa da duração da gestação de menos de vinte semanas completas, contando desde o primeiro dia último período menstrual normal pode ser utilizada.

Segundo o ordenamento jurídico pátrio o aborto é permitido em dois casos: quando a gravidez resulta de estupro (aborto sentimental) ou para salvar a vida da gestante (aborto necessário).

No entanto, não resta dúvida de que a hipótese de anencefalia encerra inviabilidade absoluta e inquestionável de vida extra-uterina, não se cogitando a possibilidade de continuação da vida do feto.

Por tais motivos, a antecipação de parto de feto anencéfalo não se enquadra no conceito de aborto porque este requer potencialidades de vida extra-uterina, enquanto que a morte no caso de anencefalia é inevitável.

4. Procedimento para harmonização do conflito de direitos fundamentais

4.1 Interpretação conforme a Constituição

A colisão entre direitos e bens constitucionalmente protegidos resulta de que a Constituição protege determinados bens jurídicos (saúde pública, segurança, liberdade de imprensa, integridade territorial, defesa nacional, família, idosos, índios etc.), que podem vir a envolver-se numa relação de conflito. Para dirimir tal conflito, compatibilizando-se as normas constitucionais, a fim de que todas tenham incidência harmônica, a doutrina revela diversas regras de hermenêutica constitucional em auxílio ao intérprete.

Segundo Fernando Coelho , o vocábulo intérprete:

Tem origem latina - interpres – que designava aquele que descobria o futuro nas entranhas das vítimas. Tirar das entranhas ou desentranhar era, portanto, o atributo do interpres, de que deriva para a palavra interpretar com o significado específico de desentranhar o próprio sentido das palavras da lei, deixando implícito que a tradução do verdadeiro sentido da lei é algo bem guardado, entranhado, portanto, em sua própria essência".

Na definição de Vicente Ráo :

A hermenêutica tem por objeto investigar e coordenar por modo sistemático os princípios científicos e leis decorrentes, que disciplinam a apuração do conteúdo, do sentido e dos fins das normas jurídicas e a restauração do conceito orgânico do direito, para efeito de sua aplicação e interpretação; por meio de regras e processos especiais procura realizar, praticamente, estes princípios e estas leis científicas; a aplicação das normas jurídicas consiste na técnica de adaptação dos preceitos nelas contidos assim interpretados, às situações de fato que se lhes subordinam.

Ao analisar a Constituição Federal, Raul Machado Horta aponta a precedência, em termos interpretativos, dos Princípios Fundamentais da República Federativa e da enunciação dos Direitos e Garantias Fundamentais, mencionando que:

É evidente que essa colocação não envolve o estabelecimento de hierarquia entre as normas constitucionais, de modo a classificá-la em normas superiores e normas secundárias. Todas são normas fundamentais. A precedência serve à interpretação da Constituição, para extrair dessa nova disposição formal a impregnação valorativa dos Princípios Fundamentais, sempre que eles forem confrontados com atos do legislador, do administrador e do julgador.

Segundo entendimento de Alexandre de Moraes :

A Constituição Federal há de sempre ser interpretada, pois somente por meio da conjugação da letra do texto com as características históricas, políticas, ideológicas do momento, se encontrará o melhor sentido da norma jurídica, em confronto com a realidade sociopolítico-econômica e almejando sua plena eficácia.

Assim, a interpretação conforme a Constituição revela-se como o entendimento de que os preceitos da Carta Magna sobrepõem-se na resolução dos conflitos de direitos fundamentais. Por isso, deve-se dar prioridade à interpretação conforme a Constituição sempre que determinada disposição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação.

4.2 Princípio da proporcionalidade

Como preceitua Willis Santiago Guerra Filho :

O princípio da proporcionalidade tem um conteúdo que se reparte em três “princípios parciais” (Teilgrundsätze): “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” ou “máxima do sopesamento” (Abwägungsgebot), “princípio da adequação” e “princípio da exigibilidade” ou “mandamento do meio mais suave” (Gebot des mildesten Mittels) — a propósito, v., por todos, Paulo Bonavides (“Curso de Direito Constitucional” [“O princípio da proporcionalidade e seus elementos parciais ou subprincípios”], São Paulo: Malheiros, 1993, págs. 318 e segs.). O “princípio da proporcionalidade em sentido estrito” determina que se estabeleça uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado, que seja juridicamente a melhor possível. Isso significa, acima de tudo, que não se fira o “conteúdo essencial” (Wesensgehalt) de direito fundamental, com o desrespeito intolerável da dignidade humana, bem como que, mesmo em havendo desvantagens para, digamos, o interesse de pessoas, individual ou coletivamente consideradas, acarretadas pela disposição normativa em apreço, as vantagens que traz para interesses de outra ordem superam aquelas desvantagens.

Vale salientar que na CF, em seu artigo 5º, § 2º, está presente o reconhecimento do princípio da proporcionalidade:

Art. 5º [...]

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta constituição não excluem outras decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

 

Humberto Bergmann Ávila conceitua a proporcionalidade da seguinte forma:

Pode-se definir o dever de proporcionalidade como um postulado normativo aplicativo decorrente da estrutura principal das normas e da atributividade do Direito e dependente do conflito de bens jurídicos materiais e do poder estruturador da relação meio-fim, cuja função é estabelecer uma medida entre bens jurídicos concretamente correlacionados.

Aduz Suzana Barros quanto à proporcionalidade:

A expressão proporcionalidade tem um sentido literal limitado, pois a representação mental que lhe corresponde é a de equilíbrio: há nela, a idéia implícita de relação harmônica entre duas grandezas. Mas a proporcionalidade em sentido amplo é mais do que isso, pois envolve também considerações sobre a adequação entre meios e fins e a utilidade de um ato para a proteção de um determinado direito. A sua utilização esbarra no inconveniente de ter-se de distinguir a proporcionalidade em sentido estrito da proporcionalidade tomada em sentido lato e que designa o princípio constitucional.

Assim Canotilho refere-se sobre o tema:

Proíbe nomeadamente as restrições desnecessárias, inaptas ou excessivas de direitos fundamentais. (...) os direitos fundamentais só podem ser restringidos quando tal se torne indispensável, e no mínimo necessário, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Sergio Gilberto Porto sustenta:

Nesta medida, o princípio da proporcionalidade (...) tem por escopo – como sua designação deixa antever – a vontade de evitar resultados desproporcionais e injustos, baseado em valores fundamentais conflitantes, ou seja, o reconhecimento e a aplicação do princípio permite vislumbrar a circunstância de que o propósito constitucional de proteger determinados valores fundamentais deve ceder quando a observância intransigente de tal orientação importar na violação de outro direito fundamental ainda mais valorado.

A aplicação do princípio da proporcionalidade significa, portanto, moldar a aplicação do Direito através da norma positivada de forma coerente, proporcionando a harmonia dos os vários interesses antagônicos que coadjuvam uma mesma relação jurídica. Assim, na existência de um conflito de princípios é necessário verificar qual deles possui maior peso diante das circunstâncias concretas, implicando regras cujo estabelecimento depende de uma ponderação que o caso concreto exige.

5. Considerações finais

Vale salientar que não se faz necessária a autorização judicial para a realização da interrupção gestacional em caso de gravidez de feto anencéfalo, pois a gestante não precisa de uma autorização para praticar algo que não está proibido, ou seja, que não incorre em tipificação penal.

Nas palavras do célebre e eterno Miguel Reale a modelagem do Direito perfaz-se frente às novas relações contemporâneas:

A experiência jurídica representa a especificação de uma forma de tutela ou de garantia social do que é valioso. E se dissermos que nada é tão valioso como a possibilidade de realizar livremente novos bens valiosos, compreenderemos que o problema da liberdade se põe no âmago da experiência do direito, como de toda a experiência ética, pela razão fundamental de ser a liberdade a raiz mesma do espírito.

Complementa o autor com brilho:

Ética é a realização da liberdade, e que o Direito, momento essencial do processo ético, representa a sua garantia específica, tal como vem sendo modelado através das idades, em seu destino próprio de compor em harmonia, liberdade, normatividade e poder.

É sabido que nenhum direito é absoluto, inclusive o direito à vida, razão pela qual é perfeitamente admissível a interrupção gestacional no caso de gravidez de feto anencéfalo, para preservar a vida digna da gestante. Por se tratar tal hipótese de uma intervenção estritamente terapêutica, o Estado não deve ter influência nesta celeuma, visto que, devem prevalecer am interpretação conforme a Constituição e o princípio da proporcionalidade, no caso de gravidez de feto anencéfalo, os direitos individuais da mulher em escolher pelo prosseguimento de gestação ou interrupção.

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Data de elaboração: dezembro/2010

 

Como citar o texto:

AMRAL, Daiane Acosta.Gestacão de feto anencéfalo: colisão de direitos fundamentais. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-e-biogenetica/2236/gestacao-feto-anencefalo-colisao-direitos-fundamentais. Acesso em 21 mar. 2011.

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