A necessidade de aperfeiçoamento da Lei Eleitoral é consenso entre advogados, juízes, tribunais e formadores de opinião. Os motivos são vários: erros de redação, dispositivos inócuos ou confusos e fixação de penas simbólicas para condutas reprováveis que estão a merecer reprimenda exemplar, no mínimo.

         Contudo, para que sejam realizadas, tais alterações devem obedecer os critérios fixados pela Constituição Federal, notadamente seu art. 16 que consagrou o Princípio da Anualidade da lei eleitoral.

         A propósito de princípios, calha transcrever a sempre bem vinda lição de Geraldo Ataliba em seu festejado “República e Constituição”:

“Os princípios são as linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; tem que ser prestigiados até as últimas conseqüências”.

         A gravidade que reveste a violação de um princípio, sobremodo se estiver previsto constitucionalmente, pode ser resumida no magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo um sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”. 1

         Tendo em vista que violação foi a característica mais evidente do processo legislativo sob comento, pode-se afirmar que as mudanças votadas pela Câmara dos Deputados sob a pálida pretensão de “reduzir gastos de campanha” não poderão disciplinar o pleito deste ano, sob pena de grotesca e perigosa inconstitucionalidade.

         Os parlamentares desprezaram a exigência constitucional de que as regras eleitorais tenham a antecedência mínima de um ano em relação ao dia do pleito ignorando que existe uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) pretendendo revogá-la. Trata-se da PEC 446/05, inerte desde 15 de dezembro de 2005.

         Portanto, a pretensa reforma eleitoral não apreciou justamente o ponto que legitima todas as alterações pretendidas. Sem alteração do artigo 16 da Constituição, nada vale.  Assim, vedação de brindes, restrição das hipóteses de propaganda, encurtamento de campanha e limitação padronizada de gastos para candidatos, entre outras perfumarias, traduz efeito meramente periférico que beira o pueril frente às revelações das CPIs que, pasmem, ensejaram a propositura e a própria Justificativa do projeto de reforma pelo Senado Federal (2) que a Câmara alterou.

         Aliás, a simples leitura do conjunto de alterações votadas pela Câmara dos Deputados evidencia que nenhuma modificação significativa no eixo das “regras do jogo” ocorreu, especialmente porque não houve definição legal do que seja “caixa-dois”, muito embora ao Substitutivo do mencionado PL conste uma razoável proposta de tipo infracional. (3)

         Além disso, alheios ao ordenamento eleitoral vigente bem como à jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, os parlamentares não estabeleceram uma regra que possibilitasse à Justiça Eleitoral e ao Ministério Público apurar o ato criminoso ou a prestação de contas falsa ou maquiada a contar de seu conhecimento ou da revelação de “caixa-dois”. Isto seria essencial pois com a limitação de tempo que atualmente vigora para as impugnações (no máximo poucos dias após a diplomação do eleito), mais a tramitação processual, permanecerá muito difícil alcançar parlamentares ou chefes do Executivo acusados destas práticas. Salvo se se acreditar em “quebra de decoro”, é claro ...

         Porém, falácia grosseira e involução em termos de liberdades públicas não faltou. A proibição da propaganda individual por parte dos eleitores impõe cerceamento no direito de expressão do cidadão para manifestar livremente sua preferência por partidos ou candidatos que disputam o pleito. Neste rol, foi incluída a mais singela e inofensiva delas, aquela manifestada no vestuário ou no uso de uma bandeira ou adesivo. A redação aprovada colide à pacífica compreensão do TSE segundo a qual, “Não caracteriza o tipo previsto no art. 39, § 5º, II, da Lei nº 9.504/97, a manifestação, no dia da eleição, individual e silenciosa da preferência do cidadão por partido político, coligação ou candidato, incluída a que figure no próprio vestuário ou no porte de bandeira ou de flâmula ou pela utilização de adesivos em veículos ou objetos de que tenha posse (Res.-TSE nº 14.708, de 22.9.94)“ e que constou prevista em sucessivas Resoluções daquela Corte.

         Importante ressaltar que a PEC 446/05 antes mencionada altera algumas das próprias regras que foram votadas recentemente e mais: introduz outras que com aquelas colidem!

         Em síntese: o essencial para mudanças factíveis e que pudessem reanimar o cenário eleitoral, especialmente a definição de “caixa-dois” e eventuais alterações nos critérios de financiamento, não foi objeto de apreciação. A Constituição Federal foi desrespeitada. E o que é pior: sob a equivocada alegação de que teria sido em nome do eleitor.

Notas de Rodapé

1 Elementos de Direito Administrativo, Ed. RT, São Paulo, SP, p. 230.

2 Projeto de Lei do Senado Nº 275/2005, autoria do Senador Jorge Bornhausen (PFL/SC).

3 "Art. 26-A. Constitui crime eleitoral, punível com detenção de três a cinco anos e multa no valor de R$ 20.000 (vinte mil reais) a R$ 50.000 (cinqüenta mil reais), além de cassação do registro do candidato beneficiado e perda do fundo partidário, o não registro ou contabilização de doações ou contribuições em dinheiro ou estimáveis em dinheiro. (NR)".

( Elaborado em fevereiro/2006)

 

Como citar o texto:

SANTOS, Antônio Augusto Mayer dos..Reforma eleitoral: superficialidade e inconstitucionalidade. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 167. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-eleitoral/1058/reforma-eleitoral-superficialidade-inconstitucionalidade. Acesso em 27 fev. 2006.

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