O legislador entendeu por excluir alguns credores dos efeitos da recuperação judicial, conforme o art. 49, § 3º da Lei nº 11.101/2005. Diante desse cenário de entrave legal – que expõe a empresa em recuperação a grave risco de não superar a crise – buscou-se discutir alternativas, cujo resultado está na obra “Recuperação Judicial: A Necessidade de Manutenção dos Bens na Empresa em Crise – Cenário atual e perspectivas para o futuro”, do mesmo autora deste artigo.

O Brasil passa por uma das maiores e mais profundas crises em sua economia. Esse quadro já vinha se desenhando faz alguns anos, mas a pandemia do novo coronavírus inflacionou os números. O aumento do desemprego[1] e dos pedidos de recuperação judicial[2], por exemplo, são bons indicadores.

A Lei nº 11.101/2005, conhecida Lei de Recuperação e Falência (LRF), veio com o objetivo de superar os entraves verificados no regime do Decreto-lei nº 7.661/45, no qual a concordata não era suficiente para impedir a falência das empresas. Assim, a legislação atual pretende reduzir as estatísticas de liquidação e permitir, cada vez mais, a preservação das empresas: daí porque prevê o instituto da recuperação judicial.

Em seu art. 47, a LRF é expressa em proclamar como objetivo da recuperação judicial a superação da crise econômico-financeira e, assim, permitir a manutenção da fonte produtora, qual seja, a empresa. Com isso, restam mantidos os empregos, a produção e circulação de bens e serviços, a geração e arrecadação de tributos, a produção de tecnologia, a salutar concorrência, a oferta ao mercado de consumo, enfim, uma série de benefícios sociais gerados pela empresa. E, como não poderia deixar de ser, objetiva-se também o atendimento aos interesses dos credores.

O que fica claro é que a função social da empresa e o estímulo à atividade econômica – evidentemente – são tratados em um regime de supremacia em face do direito dos credores em receber seus créditos. Em outras palavras: os credores devem compartilhar do remédio amargo da recuperação com vistas a que uma empresa viável não tenha sua falência decretada com prejuízo a uma gama de benefícios sociais que ela geraria se estivesse em pleno funcionamento.

Pois bem. O legislador entendeu por excluir alguns credores dos efeitos da recuperação judicial, conforme o art. 49, § 3º da Lei nº 11.101/2005, quais sejam, os credores titulares da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio.

Todavia, em que pese não tenham de se submeter à recuperação judicial, nem se vinculem ao plano aprovado em assembleia e homologado pelo juiz – a não ser que a ele tenham voluntariamente aderido[3] – tais credores não podem, de inopino, vender ou retirar seus bens do estabelecimento da recuperanda. Devem, ao contrário, observar o prazo de 180 dias para reaver os bens de sua propriedade, isso se tais bens forem de capital e essenciais do desenvolvimento das atividades da empresa, tal como literalmente previsto na parte final do art. 49, § 3º[4], que faz referência ao art. 6º, § 4º, ambos da Lei de Recuperação e Falência[5].

A prática forense, porém, tem revelado que esse prazo é insuficiente para se obter a aprovação do plano, tanto mais para conseguir cumpri-lo.

É diante desse cenário de entrave legal – que expõe a empresa em recuperação a grave risco de não superar a crise – que se buscou discutir alternativas, cujo resultado está na obra “Recuperação Judicial: A Necessidade de Manutenção dos Bens na Empresa em Crise – Cenário atual e perspectivas para o futuro”, do mesmo autora deste artigo.

A proposta é, portanto, apontar uma solução para compatibilizar, de um lado, a necessária garantia de manutenção dos bens na empresa, para permitir seu soerguimento, e, de outro, os interesses dos credores proprietários titulares de créditos excluídos dos efeitos da recuperação judicial.

Para tanto, foram levantadas diversas premissas que sustentam o raciocínio, expostas a seguir em forma de tópicos. Veja-se:

1) A jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça[6], consolidou-se no sentido de que, não sendo a demora imputável à recuperanda, deve o juiz prorrogar o prazo de 180 dias de suspensão das ações e execuções. 

2) A doutrina mais ampliativa – à qual se filia, considera que bens essenciais são todos os bens adquiridos pela empresa e destinados à atividade por ela desenvolvida, ficando até mesmo difícil a formulação de hipótese em que determinado bem escape a essa conceituação – afora os casos ilícitos, por óbvio[7].

3) O stay period se estende mesmo após a aprovação do plano de recuperação judicial, conforme prevê o art. 56, § 1º (ao estabelecer que a AGC deve ocorrer em até 150 dias a partir do deferimento do processamento da recuperação judicial[8]) quando confrontado com o art. 6º, § 4° (que prevê a suspensão das ações e execuções por 180 dias, também do deferimento), ambos da Lei de Recuperação e Falência. Isso é importante para desfazer o mito de que a manutenção dos bens na empresa em crise serve para permitir a aprovação do plano, sendo que, na verdade, a manutenção é necessária inclusive – e talvez ainda mais – após aprovado o plano, para viabilizar seu efetivo cumprimento. 

4) É fundamental reconhecer o estabelecimento empresarial como uma universalidade de fato que contém os bens necessários à atividade econômica organizada da empresa[9]. Todavia, não é imprescindível a propriedade para que determinado bem integre o estabelecimento. Destarte, o domínio pode até ser de terceiro – credor excluído da recuperação – mas, ainda assim, o bem compõe o estabelecimento da empresa devedora, o que impede a sua retirada, conforme expressa previsão do próprio § 3 art. 49. Isso está correto e se relaciona com o sistema da recuperação judicial. O que destoa é a limitação temporal insuficiente prevista no dispositivo.

5) É preciso bem compreender a mudança do paradigma da Teoria dos Atos de Comércio para o da Teoria da Empresa, a leitura atenta do conceito de empresa como organismo econômico marcado pelo profissionalismo e pela organização (CC, art. 966), bem como a função social da propriedade e dos contratos.

6) O STJ sedimentou, em matéria recuperacional, a concursalidade, que atrai para o juízo da recuperação judicial a competência para analisar todas as ações e execuções que possam impactar o patrimônio da recuperanda[10], ainda que se trate de demanda envolvendo créditos extraconcursais ou, até mesmo, não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial. 

7) As execuções individuais não podem prosseguir individualmente após o decurso do prazo legal de suspensão[11], devendo – afora a hipótese de desistência homologada em assembleia – a recuperação judicial culminar ou em aprovação e homologação do plano, ou em convolação em falência.

Com suporte nessas premissas, este autor considera que a superação da crise da empresa pode ser dar, sem violação da Lei nº 11.101/2005, se observados os seguintes parâmetros:

a) o juiz da recuperação tem competência para, em decisão evidentemente fundamentada, prorrogar, para além dos 180 (cento e oitenta) dias, o prazo em que o credor excluído dos efeitos da recuperação não pode vender ou retirar os bens do estabelecimento da empresa em crise, se esses bens forem essenciais às atividades desta. Mais que isso: se previsto o cenário de essencialidade, o juiz deve manter o bem no estabelecimento mesmo após a aprovação do plano, se tal medida for imprescindível à efetiva recuperação da empresa[12].

b) cabe a fixação de justa remuneração ao credor pelo uso do bem[13], a qual é crédito extraconcursal e, por isso, de pronto pagamento pela recuperanda.

c) cabe, sempre e inexoravelmente, ao juízo da recuperação conhecer e decidir acerca da essencialidade ou não do bem, não podendo o credor, sponte propria, sacar do estabelecimento da empresa em crise o bem que reputa de sua propriedade. Ao revés, o credor deverá pleitear ao juízo da recuperação a venda ou retirada do bem e, se se considerar que este não é essencial ao funcionamento da empresa, aí sim o credor poderá dele se apossar[14].

Com essa solução, entende-se que não ficam desprotegidas ou desconstituídas as proteções dadas aos credores excluídos da recuperação judicial mas, também, não se permite que esses passem ao largo da crise da empresa com a qual se relacionam.

Sabe-se que alguns posicionamentos acima são minoritários. Entretanto, com o devido respeito aos pensamentos diversos, por tudo que se expôs, acredita-se que a solução jurídica aqui destacada é prudente, factível e séria do ponto de vista científico. 

Dá-se, com isso, concretude ao supraprincípio da Lei nº 11.101/2005: o da preservação da empresa. Dá-se, enfim, cumprimento aos mandamentos constitucionais da ordem econômica e se prestigiam os interesses sociais que a empresa viável gera e solidifica. E, para tanto, à empresa em crise é oportunizado um instrumento para sua efetiva recuperação.

 

NOTAS:

[1] Em mai-jun-jul de 2020 a taxa de desocupação no Brasil foi de 13,8%, a maior na série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua. Fonte: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html?=&t=series-historicas&utm_source=landing&utm_medium=explica&utm_campaign=desemprego

[2] Até jul/2020, na análise acumulada em 12 meses, os pedidos de recuperação judicial apresentaram alta de 31,4%. Fonte: https://www.boavistaservicos.com.br/noticias/pedidos-de-falencia-recuam-126-em-julho/.

[3] A respeito: STJ, Terceira Turma, REsp 1513260/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe 10/05/2016.

[4] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

[...]

§ 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.

[5] Art. 6o A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.

[...]

§ 4o Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.

[6] A conferir: STJ, Segunda Seção, AgRg no CC 143802/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 19/04/2016.

[7] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005 Comentada Artigo por Artigo. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista do Tribunais, 2013, p. 145.

[8] Art. 56. Havendo objeção de qualquer credor ao plano de recuperação judicial, o juiz convocará a assembléia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação.

§ 1o A data designada para a realização da assembléia-geral não excederá 150 (cento e cinqüenta) dias contados do deferimento do processamento da recuperação judicial.

[9] BULGARELLI, Waldirio. Sociedades Comerciais: Sociedades Civis e Sociedades Cooperativas: Empresas e Estabelecimento Comercial. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1996, p. 332.

[10] Por todos: STJ, Terceira Turma, REsp 1630702/RJ, Relª. Minª Nancy Andrighi, DJe 10/02/2017.

[11] A matéria é pacífica no STJ desde longa data, como se observa do v. acórdão da Primeira Seção no Conflito de Competência nº 79.170/SP, Rel. Min. Castro Meira, DJe 19/09/2008.

[12] Neste sentido: STJ, Segunda Seção, Agravo Regimental no Conflito de Competência nº 119.337/MG, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 23/02/2012.

[13] Ver: STJ, Segunda Seção, Conflito de Competência nº 110.392/SP, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 22/03/2011.

[14] Esse foi, inclusive, o posicionamento do Ministro Luis Felipe Salomão em seu voto-vista no Recurso Especial nº 1.263.500/ES.

Data da conclusão/última revisão: 01/10/2020

 

Como citar o texto:

GONÇALVES, Tarcisio Vieira..Alternativas para uma recuperação judicial efetivaALTERNATIVAS PARA UMA RECUPERAÇÃO JUDICIAL EFETIVA. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1009. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-empresarial/10764/alternativas-recuperacao-judicial-efetiva. Acesso em 15 dez. 2020.

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