Em 10 de janeiro de 1919, por meio do Decreto nº 3.708, inspirado no modelo germânico, o legislador instituiu dentro do nosso ordenamento jurídico a forma de sociedade por cotas de responsabilidade limitada, visando contornar as dificuldades de constituição das sociedades anônimas e, principalmente, reduzir a responsabilidade de seus associados à importância do capital social.

O modelo inserido pelo citado Decreto, em poucos artigos, apenas dezenove, introduziu um sistema simples, unicamente delineando seus contornos e suas fisiologias, por isso tem sido recriminado pelas falhas e omissões que seu laconismo enseja.

Para atender às necessidades econômicas, que se encontram em um processo constante de mutação evolutiva sempre com repercussão no Direito, os empresários buscam no mundo prático soluções para muitos conflitos advindos desta obscuridade legislativa.

No presente estudo, dentre vários aspectos instigantes das sociedades por cotas que merecem relevância, sem pretensão de esgotar o assunto, mas obedecendo aos objetivos e limites de uma monografia, propõe-se fazer, preambularmente, referência à origem das sociedades limitadas para nos atermos às bases sobre as quais o instituto foi consolidado.

Ultrapassada esta etapa, no capítulo seguinte cumpre verificar onde está inserida a sociedade por quotas de responsabilidade limitada: na sociedade de pessoas ou na sociedade de capital? Ou seria ela detentora de uma terceira classificação, intermediária entre as duas anteriores?

Propõe-se, ainda, analisar no capítulo terceiro qual o posicionamento da doutrina pátria em relação à delegação da gerência a não sócio. A questão apresenta interesse em razão da não muito nova tendência administrativa que aponta para a profissionalização da administração societária, a qual deve tomar posição de neutralidade quanto aos interesses pessoais dos sócios.

Os capítulos quarto e quinto tratarão, respectivamente, da sociedade unipessoal por cotas de responsabilidade limitada e da exclusão do sócio minoritário pela maioria do capital.

Neste trabalho procurar-se-á, a partir de alguns pontos vislumbrar, com a contribuição da doutrina histórica e contemporânea, dos entendimentos correntes em nossos tribunais, sempre referindo à concepção legislativa, bem como baseando nos aspectos práticos mais comuns, soluções para estas incógnitas.

1. O Surgimento das Sociedades Limitadas

As sociedades por cotas de responsabilidade limitada - com características diferentes das sociedades anônimas - surgiram na Alemanha com a promulgação da lei de 20 de abril de 1892, regulando as Gesellschaften mit Beschraenkter Haftung. Em pouco tempo essas sociedades dominaram o comércio alemão, de molde a, em nosso tempo, ultrapassarem de muitíssimo, em número, as sociedades anônimas existentes na Alemanha(1).

A sociedade por quotas de responsabilidade veio para o Brasil via Portugal, primeiro país a adotar o modelo germânico por meio de lei, em 1901. No Brasil, é oriunda do projeto de Herculano Marcos Inglês de Sousa apresentado ao Congresso em 20.09.18, o qual, uma vez aprovado veio a constituir o Decreto nº 3.708 de 10.01.1919.

Roni Genicolo Garcia (2) nos dá conta de que o modo teutônico de organização e de definição de responsabilidade das GBH apresenta semelhanças com o traçado, no Brasil, para as limitadas, porém há sensíveis diferenças estruturais entre as duas formas de organização, não havendo, v. g., para a versão brasileira, os imprescindíveis instrumentos de controle para o acompanhamento público da vida da empresa. De qualquer modo, conclui Genicolo Garcia, o modelo seguido no Brasil foi o português.

Os modelos societários até então existentes no Brasil eram claramente divisíveis em dois blocos, um em que pelo menos um dos sócios tinha sua responsabilidade ilimitada e outro no qual a responsabilidade dos sócios limitava-se ao valor das ações subscritas, na qual se inseriam as sociedades por ações e a comandita por ações.

As sociedades anônimas, não obstante seus sócios responderem limitadamente pelas obrigações sociais, mantinham uma composição muito estruturada e onerosa, razão esta que fez com que a comunidade empresarial exigisse um modelo de sociedade comercial no qual a responsabilidade pessoal dos sócios fosse limitada e também que não fosse muito onerosa em sua fisiologia.

Ao contrário de todos os demais tipos de sociedades, criados pela prática mercantil, esse tipo societário resultou de processo intelectual e apareceu sob forma de uma companhia pequena, uma sociedade que combinava a limitação da responsabilidade e flexibilidade organizacional.

Assim, o modelo criado na Alemanha deu forma a uma estrutura que facilitava o desenvolvimento da atividade econômica sem grandes riscos para os empresários, e, de outro lado, previu certa garantia aos credores sociais na medida em que impunha a observância de capital mínimo obrigatório durante toda a sua existência visando proporcionar segurança para quem com elas viesse a praticar negociações de toda sorte.

Waldirio Bulgarelli (3) ressalta a posição das sociedades limitas no momento histórico de sua inserção no contexto legal pátrio, lembrando que a exposição de motivos do Projeto nº 287, de 1918 (que se converteria no Decreto nº 3.708/1919) afirmava a certa altura:

"Considerando que a instituição das sociedades por quotas de responsabilidade limitada vem preencher uma lacuna no direito pátrio, funcionando com excelentes resultados na Alemanha, Inglaterra e Portugal, sendo a sua adoção, no Brasil, reclamada pelo incentivo, que oferecem à concorrência das atividades, e dos capitais ao comércio, sem ser preciso recorrer a sociedade anônima, que melhor se reservaria para as grandes empresas industriais que necessitam de capitais muito avultados e prazo superior ao ordinário da vida humana (Inglez de Sousa, Introdução do Projeto do Código Comercial apresentado ao Poder Executivo, na conformidade do Decreto nº 2.379, de 4 de janeiro de 1911)."

João Eunápio Borges (4) relembra que a intenção da lei foi a de criar um novo tipo de sociedade que oferecesse ao comércio, numa síntese feliz, as vantagens das sociedades comumente denominadas de pessoas e, ao mesmo tempo, as vantagens da sociedade anônima, sem os inconvenientes de umas e outras. Uma sociedade de organização e estrutura mais simples, mais fácil e menos pesada que a anônima, e na qual, como nesta, todos os sócios, sem exceção, assumem a responsabilidade limitada sem os graves riscos patrimoniais a que, nas outras sociedades, ficavam expostos ou todos os sócios ou, pelo menos, um ou alguns deles. Sem que a limitação da responsabilidade seja obtida à custa de qualquer restrição quanto à faculdade de gerir a sociedade, como acontece na comandita ou na sociedade de capital e indústria.

Com esse objetivo surgiu na Alemanha o novo tipo de sociedade e, com o mesmo propósito, foi ele adotado em toda parte. E a Lei nº 3.708 nos dá, nos arts. 2º e 18, a chave do sistema a que obedeceu.

2. Sociedade de Pessoas ou de Capital?

O enquadramento jurídico da sociedade por cotas de responsabilidade limitada no modal sociedade de pessoas ou sociedade de capital é questão que merece detida reflexão dos operadores do direito em razão dos efeitos que produz.

Convém, de início, analisar o que se entende por sociedade de pessoas e por sociedade de capital.

Segundo esse sistema classificatório, são sociedades de pessoas aquelas em que os sócios se escolhem tendo em vista as qualidades pessoais que ostentam. Prevalece a vontade de contratar com determinada pessoa específica. Caso esta pessoa venha a não fazer parte da sociedade porque falecera, porque se retirara voluntariamente ou ainda porque fora excluída etc, outra não poderá integrá-la, em substituição ao que se retirar, por faltar no âmago dos que nela permanecerem o elemento essencial consubstanciado na vontade de contratar com pessoa específica portadora de determinados atributos. Repousam tais sociedades na confiança recíproca, no crédito, na solvência, na experiência dos sócios.

Dizem-se formadas intuitu personae, motivo por que, via de regra, a morte, a incapacidade de um dos sócios provoca a dissolução da sociedade.

No que diz respeito às sociedades de capitais, para sua formação não se leva em conta a pessoa do sócio, mas tão somente a sua contribuição financeira para integração da sociedade. Via de regra qualquer pessoa poderá dela participar, sendo, a princípio, livre a transferência de ações que formam o capital social. Nada impede que esta ou aquela pessoa integre a sociedade, mesmo não sendo portadora deste ou daquele atributo. Também não será dissolvida a sociedade de pleno direito pela morte de um dos sócios, pela sua retirada voluntária ou por qualquer outra circunstância.

Para que não permaneça dúvida a respeito desta diferenciação, convém transcrever o posicionamento da doutrina que encontra, no autorizado escólio da lavra dos eminentes Lyon-Caen e Renault (5) , o seguinte posicionamento:

"Segundo esse sistema, são sociedades de pessoas aquelas em que os sócios se escolhem tendo em consideração as suas qualidades pessoais, o que determina a predominância do intuitu personae no seu funcionamento e, assim, em princípio, a morte de um sócio acarreta-lhe a dissolução e as quotas sociais não são livremente cessíveis; as sociedades de capitais são aquelas em que somente a contribuição dos sócios é tomada em conta, de modo que qualquer pessoa delas pode fazer parte, sendo livremente transferíveis as ações que formam o seu capital e não se dissolvendo a sociedade pela morte de um sócio."

Por sua vez, leciona Fábio Ulhoa Coelho (6) que dividem-se as sociedades, no tocante às condições da alienação da participação societária, nas seguintes categorias: a) sociedades de pessoas - em relação às quais vige o art. 334 do C. Com., tendo os sócios o direito de vetar o ingresso de estranhos no quadro associativo. São desta espécie a sociedade em nome coletivo, de capital e indústria e em comandita simples; b) sociedades de capitais - em relação às quais não vige o art. 334 do C. Com., mas, pelo contrário, o princípio da livre circulabilidade da participação societária. São desta categoria a sociedade anônima e a sociedade em comandita por ações.

O Decreto nº 3.708, de 1919 inseriu as sociedades por cotas de responsabilidade limitada ao lado das demais sociedades reguladas pelo Código Comercial. Tais sociedades preexistentes eram tidas pela maioria da doutrina como de pessoas, sendo estas as em nome coletivo, em comandita simples, de capital e indústria e em conta de participação. Para tanto, dispôs o art. 1º do citado Decreto que "além das sociedades a que se referem os arts. 295, 311, 315 e 317 do Código Comercial, poderão constituir-se sociedades por quotas de responsabilidade limitada".

A princípio, em virtude dessa equiparação operada pela legislação que introduziu as sociedades limitadas no ordenamento jurídico pátrio, vislumbraram-na como sendo uma sociedade de pessoas.

Recentemente, Waldirio Bulgarelli (7) , do alto de sua cátedra, se pronunciou a respeito desse art. 1º do Decreto nº 3.708/1919 e lançou a afirmação de que sob tal aspecto tudo levava a crer que se tratava de mais um tipo de sociedade de pessoas.

O citado comercialista, o qual não desconsiderava que a discussão era muito ampla, no entanto, lançou sua análise sob a seguinte ótica: "como, porém, o art. 18 determinou que se aplicassem às omissões do contrato as regras sobre as sociedades anônimas, e ainda, como a evolução do modelo entre nós passou a se orientar, em muitos casos, para as sociedades de capital, ocorreu que parte da doutrina, como, por exemplo, João Eunápio Borges, passou a considerá-la como sociedade de capital. Por outro lado, a sua manifesta flexibilidade em se adaptar, como vimos, aos mais variados tipos de combinações de interesses fez com que surgisse nova concepção, entendendo-as como tipo distinto entre as sociedades de pessoas e as de capital"(8).

A doutrina é hoje, no Brasil e fora dele, expressamente contrária à bifurcação das sociedades em sociedades de pessoas e sociedades de capital. Todas as sociedades são de pessoas e de capitais a um só tempo (9) . É assim que se manifestou Egberto Lacerda Teixeira (10) nos idos de 1956.

Insatisfeita com a qualificação da limitada em uma posição intermediária entre a sociedade de pessoas e a sociedade de capital, a doutrina propôs uma classificação diferenciada que não levasse em consideração a divisão da sociedade comercial em sociedade de pessoas e de capital, mas sim a adoção do critério diferenciador fundado na "extensão da responsabilidade pessoal dos sócios pelas obrigações sociais".

Com base nesse novo critério e, tendo em vista que na sociedade por cotas cada sócio é responsável pelas obrigações sociais até o limite das cotas por ele subscritas, entendeu Lacerda Teixeira (11) que a sociedade por cotas de responsabilidade limitada é uma sociedade tanto de pessoas quanto de capital, seguida da característica de ter a responsabilidade dos sócios limitada ao capital social subscrito.

Obviamente o que se percebe é que a classificação das sociedades limitadas em um ponto intermediário entre as sociedades de pessoas e as sociedades de capital permaneceu, acrescentando-se a ela mais uma característica, agora, relativa à responsabilidade dos sócios.

Não resta a menor dúvida de que a doutrina e a jurisprudência brasileiras se inclinam a considerar as sociedades por cotas de responsabilidade limitada uma sociedade com intuitu personae. Por este motivo, Fran Martins (12) afirmou que na doutrina brasileira, que Waldemar Ferreira, entre outros, se fizera expoente, a maior tendência é, sem dúvida, para dar às sociedades por cotas o caráter de sociedade de pessoas.

Essa tomada de posição do insigne professor Waldemar Ferreira se deu com fundamento no fato de que o Decreto nº 3.708/1919, especialmente o art. 1º, inseriu a sociedade limitada entre as sociedades comerciais, ou seja, entre as sociedades de pessoas, o que está previsto no Código Comercial no Capítulo III do Título XV, de sua Parte Primeira.

Pela primazia com que enfoca o tema, eis a lição do ilustre comercialista na íntegra:

"Não é admissível ignorância de que no Capítulo III do Título XV de sua parte primeira, o Código Comercial tratou das sociedades comerciais, ou seja, das sociedades de pessoas. Das companhias de comércio ou sociedades anônimas cuidou o Capítulo II do mesmo Título. Quando o Decreto nº 3.708 de 10 de janeiro de 1919, em seu art. 1º, dispôs que, além das sociedades a que se referem dos arts. 295, 311, 315 e 317 do Código Comercial, poderão constituir-se sociedades por quotas, de responsabilidade limitada", evidentemente entre elas colocou esta nova sociedade, o que tornou evidente, no art. 2º, ao estabelecer que o título constitutivo de tais sociedades se regerá pelos arts. 300 a 302 e seus números daquele Código" (13).

Não obstante abalizada doutrina dedicar severamente ao estudo da tradicional classificação das sociedades em sociedades de pessoa e de capital, João Eunápio Borges (14) considera destituída de interesse prático e, expõe o pensamento de Felipe de Sola Cañizares, para quem a controvérsia clássica não tem hoje, nem utilidade nem atualidade.

Insatisfeito e fazendo coro a Egberto Lacerda Teixeira, sugere Eunápio Borges (15) outro critério mais positivo e menos impreciso do que os usualmente propostos pelos partidários dessa classificação - se se quiser mantê-la - o da garantia oferecida aos credores sociais.

Segundo esse novo critério seriam de pessoas as sociedades cujas obrigações fossem garantidas pelo patrimônio social e, subsidiariamente, pelo patrimônio individual de um ou mais sócios: sociedade em nome coletivo, em comandita, de capital e indústria. E de capital as que - uma vez integralizado o capital - só oferecem aos credores, como garantia exclusiva, o patrimônio social: as sociedades anônimas e as sociedades por cotas de responsabilidade limitada (16) .

A conclusão de Eunápio Borges está assim exposta:

"Reafirmando, pois, a inatualidade e a inutilidade prática dessa classificação, incluímos a sociedade por quotas de responsabilidade limitada ao lado da sociedade anônima, entre as sociedades de capital" (17).

Ressalta o citado mestre, na seqüência das idéias anteriores, que contra a opinião do texto está a generalidade dos nossos comercialistas, tendo à frente Valdemar Ferreira, como nos foi dado observar em suas lições outrora transcritas. Esclarece ainda Eunápio Borges(18) que Valdemar Ferreira e Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto enxergaram na sociedade por cotas simples sociedades em nome coletivo de responsabilidade limitada.

Em meio a este desacerto de idéias, muito sensata é a opinião de Bento de Faria(19) :

"Essa diferenciação que, aliás, resulta da posição eqüidistante do intuitu rei e do intuitu personae, conceitua por igual, a natureza jurídica da sociedade limitada, criada como novo tipo de sujeito coletivo de direitos e obrigações, com capacidade e patrimônio próprios, que lhe são assegurados pela sua personalidade jurídica para, assim, gozar de vantagens proporcionadas pelas sociedades anônimas, sem extensão dos riscos das em nome coletivo. Desse modo se justifica, no quadro das sociedades, a sua colocação intermédia, ou seja, como ficou dito, entre as denominadas de pessoas, e as apelidadas de capitais."

Embora muito criticados pela doutrina, a classificação da sociedade por cotas de responsabilidade limitada em sociedades de pessoas e sociedades de capital, ao contrário da inutilidade apregoada por alguns, ela é o início de um longo caminho e a chave para a solução de vários aspectos polêmicos oriundos de uma sociedade por cotas. Neste sentido, discute-se ferrenha e irremediavelmente a natureza personalista ou capitalista desta sociedade, dadas as conseqüências doutrinárias e práticas que dela decorrem.

Tendo em vista esta infindável divergência doutrinária, tantos enfoques sob os mais diversos ângulos, o notável doutrinador Dilvanir José da Costa (20) , então professor de direito civil da Universidade Federal de Minas Gerais, reconheceu que a polêmica não chegava a ser tão destituída de importância.

Segue dizendo que constitui a divergência um dos pontos de partida ou tomada de posição para o encaminhamento e solução de relevantes teses jurídicas de repercussão na vida empresarial e enumerou alguns desses aspectos: o estatuto legal da sociedade limitada; a alienação ou cessão inter vivos e causa mortis e a gravação de cotas com ônus reais; a penhora de cotas; a responsabilidade do cotista; a sociedade entre cônjuges; o menor cotista; o critério e o quorum de deliberação social; a dissolução por morte ou retirada de sócio; a sociedade unipessoal e a sociedade sem sócios; e o transcendente tema da despersonalização e sobrevivência da empresa, como substância de interesse econômico-político-social, pairando acima das formas disciplinadoras de interesses individuais.

Eis os principais aspectos da sociedade por cotas que podem ser solucionados pela classificação da sociedade em pessoal ou capitalista, demonstrando assim que esta bifurcação não é tão desprovida de interesse quanto se pretendia fazer crer.

O posicionamento dos modernos comercialistas Fábio Ulhoa Coelho e Rubens Requião mostra-se mais acertado e melhor soluciona a controvérsia, já que consideram a sociedade por cotas de responsabilidade limitada um tipo misto que vai depender do que previr o contrato social, o que corresponde precisamente ao posicionamento de que ocupamos. Vale a pena ter transcrito as lições de Fabio Ulhoa Coelho(21) , in verbis:

"A sociedade por quotas de responsabilidade limitada é uma espécie híbrida. Ou seja, não é de pessoas, nem de capital enquanto um tipo societário, mas cada sociedade em concreto é que será de uma ou outra categoria. Haverá, pois, sociedades limitadas enquadráveis entre as de pessoas e sociedades limitadas enquadráveis entre as de capital, de acordo com o que previr o contrato social específico.

Não existe sociedade composta exclusivamente por pessoas ou por capital. Toda sociedade surge da conjugação desses dois elementos, ambos imprescindíveis. O que faz uma sociedade ser de pessoas ou de capital é, na verdade, a vigência, ou não, do art. 334 do Código Comercial em relação a ela, vale dizer, o reconhecimento jurídico do direito de veto ao ingresso de terceiro no quadro associativo por parte do sócio da sociedade comercial."

Para Requião(22) , sociedade por cotas de responsabilidade limitada está situada, na classificação personalista ou não das sociedades, num divisor de águas. Seu contrato social poderá inculcar-lhe um estilo personalista ou capitalista.

O que se depreende de todo esse estudo de posicionamentos doutrinários é que não há como julgar as sociedades limitadas, genericamente, enquadráveis na modalidade "de pessoas" ou "de capital". Também não resta dúvida de que sob a ótica da responsabilidade dos sócios para com terceiros, a sociedade limitada mais se afigura como sendo de capital do que de pessoas em razão da limitação da responsabilidade estar vinculada ao montante das cotas sociais.

Por outro lado, se considerado a affectio societatis, ela se amolda melhor à sociedade de pessoas em razão daqueles atributos outrora enumerados, tais como, confiança, crédito, experiência, etc, que também dependerão do contrato social.

Desta forma, apesar da divergência doutrinária, será determinante para considerá-la localizada em um ou outro lado, se ater detidamente à análise do contrato social, o qual permitirá extrair sua verdadeira natureza.

3. Administração da Sociedade pelo Sócio Gerente e sua Delegação a não Sócio.

Cabe aqui aduzir algumas observações acerca dos problemas administrativos suscitados pelo caráter personalista das sociedades limitadas no Brasil, notadamente no que se refere à possibilidade de gestão dos negócios sociais ser confiada a quem não ostente a qualidade ou estado de sócio.

De início há que notar que a vigente norma que regula as sociedades limitadas não faz qualquer referência explícita à possibilidade de haver gerentes não sócios. Quanto a esse aspecto, a doutrina apresenta certa divergência, salientando, todavia, que a grande maioria defende ser possível este intento.

Relativamente à administração pelos próprios sócios, uma das benesses proporcionadas pelo laconismo do Decreto nº 3.708/19 é a de deixar por conta da imaginação criadora dos empresários a estruturação da sociedade por cotas de responsabilidade limitada. No modelo brasileiro, esta tem ampla e total liberdade contratual para fixação de sua organização administrativa.

Podem os sócios-quotistas, na elaboração do contrato social, escolher uma estrutura simples, como também uma estrutura um pouco mais sofisticada para administrar a sociedade. Assim, poderão estruturá-la meramente como as sociedades de pessoas, com apenas um ou mais gerentes, ou então adotar a sistemática das sociedades anônimas, criando uma administração mais complexa, com diretoria, conselho de administração e conselho fiscal, assembléias, etc.

Adotando esta segunda opção, o contrato social tem a função minuciosa de estatuto gerencial da sociedade, dispondo sobre o funcionamento desses órgãos.

Caso ocorra alguma omissão na elaboração do contrato social, a Lei das Sociedades Anônimas estará de plantão para vir em socorro à questão fática, isto com suporte no art. 18 do Decreto nº 3.708/1919.

Nelson Abrão(23) , ao cuidar do estudo da gerência, ensina em lições muito elucidativas que ente coletivo, técnica legal encontrada para diferenciá-la das pessoas físicas suas integrantes, a sociedade por cotas de responsabilidade limitada, como as sociedades em geral, só pode executar sua vontade por meio de seres racionais. Estes são uma ou mais pessoas físicas, incumbidas de administrá-la.

O administrador por cotas denomina-se gerente. Internamente, em suas relações com os sócios, o gerente exerce poder de gestão; em seu relacionamento com terceiros, o de representação.

Temos então que a escolha do sócio ou sócios-gerentes normalmente é realizada pela sociedade, voluntariamente, podendo estar prevista no contrato social ou ser determinada na assembléia dos quotistas. Neste caso, os sócios, reunidos em assembléia geral, antecedida de prévia convocação, elegerão, por maioria de membros a quem compete desempenhar o mister de gerir o negócio, sendo que a ata da assembléia deverá ser registrada na Junta Comercial do local de situação da sociedade.

A gerência, contudo, recairá sobre todos os sócios se o contrato social for omisso nesse tocante (24).

Apesar do contrato social conter a designação dos sócios-gerentes, não há impedimento nem regra que impossibilite que estes sejam destituídos por força de alguma alteração contratual superveniente. Isto ocorre porque a maioria dos sócios tem o poder de alterar o contrato social, inclusive alterar a gerência da sociedade.

Ponto fundamental de convergência entre os estudiosos é que na etapa de globalização da economia, a profissionalização da empresa tem sido forte fator de aperfeiçoamento, redução dos custos internos e dos conflitos na própria sociedade, de tal maneira que a atribuição da gerência a pessoa estranha ao corpo da sociedade não se afigura medida excepcional, ou de terceirização da sua atividade, porém um instrumento que conserva os ingredientes de uma performance livre de eventuais obstáculos (25).

Referida profissionalização mais se justifica em nossos dias devido à realidade de que normalmente as sociedades por cotas de responsabilidade limitada têm como sócios quotistas pessoas de uma mesma família, fato este que, quase sempre, proporciona enormes disputas que podem ocasionar inclusive o desaparecimento da sociedade.

A propósito, convém rememorar que o gerente deverá agir com o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios (26). Esta norma do direito societário brasileiro corresponde ao standard of care for directors, do direito societário norte-americano.

Dentro deste contexto surge a idéia de se delegar a gerência à pessoa habilitada ao empreendimento administrativo e negocial, idéia esta que tem o apoio filosófico unânime da doutrina, mas que, para alguns aplicadores do direito, encontra obstáculo no vigente ordenamento jurídico pátrio.

Para que fique bem clara a questão a ser estudada, nada melhor do que partir da leitura da legislação, especialmente do que determina o art. 13 do Decreto nº 3.708/19, que assim verbera:

"Art. 13. O uso da firma cabe aos sócios-gerentes; se, porém, for omisso o contrato, todos os sócios dela poderão usar. É lícito aos gerentes delegar o uso da firma somente quando o contrato não contiver cláusula que se oponha a esse delegação. Tal delegação, contra disposição do contrato, dá ao sócio que a fizer pessoalmente a responsabilidade das obrigações contraídas pelo substituto sem que possa reclamar da sociedade mais do que a sua parte das vantagens auferidas do negócio."

Já o art. 2º do referido Decreto dá o seguinte norte:

"Art. 2º. O título constitutivo regular-se-á pelas disposições dos artigos 300 a 302 e seus números do Código Comercial, devendo estipular ser limitada a responsabilidade dos sócios à importância total do capital social."

Fundamenta os defensores da proibição da delegação da gerência para não sócio na remissão feita pelo citado art. 2º ao art. 302 do Código Comercial, cujo nº 3 assim dispõe:

"Art. 302. A escritura (do contrato social), ou seja pública ou particular, deve conter:

1. omissis

2. omissis

3. os nomes dos sócios que podem usar da firma social ou gerir em nome da sociedade; na falta desta declaração, entende-se que todos os sócios podem usar da firma social e gerir em nome da sociedade.

..."

Waldirio Bulgarelli (27) é incisivo em dizer que a doutrina dominante considera que somente o sócio poderá exercer a gerência.

Neste sentido já se firmou a JUCESP no item 13, nº I, de sua Deliberação nº 1/83, tomada em 24/02/1983 pela unanimidade de seu plenário, publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo de 10/03/83, vazada nos seguintes termos: "A gerência da sociedade por cotas de responsabilidade limitada somente poderá ser atribuída a sócio."

Quanto à possibilidade de somente o sócio exercer a gerência, é também o magistério do ilustre Egberto Lacerda Teixeira (28) . Este renomado jurista critica em sua obra "Das Sociedades por Quotas de Responsabilidade Limitada" a imperfeita redação do art. 13 do Decreto nº 3.708/1919, asseverando no sentido de que seria preferível que o Decreto tivesse dito, expressamente, que a gerência cabe tão somente aos sócios, a fim de evitar interpretações desencontradas a propósito do sentido e alcance de seu art. 13.

Ciente de que em tempos modernos e competitivos no âmbito empresarial e defendendo o entendimento de que a gerência deva ser exercida apenas por sócios-quotistas em obediência à legislação que rege as limitadas, Nelson Abrão (29) assim se pronunciou:

"É óbvio que o atual diploma legal brasileiro está em conflito com a orientação vigente no direito comparado acerca do exercício da gerência por não sócios (v. Lei francesa, art. 49, e Argentina, art. 157). O Projeto de Código Civil dispõe, no art. 1.064, que ´se o contrato permitir administradores estranhos à sociedade, a sua designação dependerá da aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado; ou após a integralização, de votos correspondentes, no mínimo, a 3/4 dele`. Numa sociedade de técnicos em que vivemos, com a multiplicação dos managers, não deve ficar excluída a possibilidade de os sócios designarem gerente estranho ao corpo social, se as necessidades da administração assim o requererem, dado o caráter intermédio, corporificado pela sociedade por quotas, entre as de pessoas e a anônima."

Lembra muito bem o Prof. Oscar Barreto Filho (30) que, com essa medida, perde razão de ser a indesejável faculdade de delegação do uso da firma, prevista pelo art. 13 do Decreto nº 3.708, considerada pelos comentadores um primor de obscuridade e relegada ao desuso na prática.

Acrescenta Barreto Filho (31) que alguns pontos da lei vigente merecem atualização. Propala o insigne mestre que não se justifica a limitação da investidura nos cargos de administração na sociedade limitada apenas aos sócios. Os cargos de gestão devem ser franqueados a pessoas estranhas à sociedade, ou seja, não sócios.

A doutrina estrangeira vem acolhendo a possibilidade de delegação da gerência a não sócio nas sociedades por cotas de responsabilidade limitada. Já no direito pátrio, como vimos, tal posicionamento tem encontrado adeptos, não obstante reinar com certa primazia na doutrina a tese de que a gerência deve ser exercida única e exclusivamente por sócios que façam parte do quadro social.

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Como citar o texto:

SALGE, Ricardo Augusto..Aspectos polêmicos das sociedades por cotas de responsabilidade limitada. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 19. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-empresarial/286/aspectos-polemicos-sociedades-cotas-responsabilidade-limitada. Acesso em 30 mai. 2003.

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