Índice

 

I – Preliminares (conceito, histórico e atributos da Soberania)

II – A Soberania e os recursos naturais

III – Intervenção no âmbito da Soberania das Nações

III.I – Papel da ONU

IV - A soberania e os litígios internacionais (soluções diplomáticas e coercitivas)

V – O exemplo mais concreto de que a Soberania enfrenta crise (Novas éticas sobre a Soberania)

VI – Opinião Pessoal

I – Preliminares (conceito, histórico e atributos da Soberania)

O Estado, pessoa internacional por excelência, é um conjunto de indivíduos estabelecidos em um determinado território de maneira permanente e que obedecem a um governo autônomo, no plano externo, e soberano, no campo interno.

Pelo próprio enunciado, verificamos que, sem população permanente, não possuindo território determinado e governo autônomo e soberano, o Estado não pode existir. Esses elementos devem coexistir, são partes essenciais do todo. É bem verdade que outros requisitos dele podem fazer parte, muito embora aqueles sejam imprescindíveis.

Dentro desse raciocínio, alguns juristas dizem que não se pode compreender que uma comunidade, formada por indivíduos distintos, se reúna e se congregue em torno de um poder superior se este não objetivasse “o bem comum do grupo” enquanto os governos representados na Sétima Conferência Internacional Americana celebraram, em Montevidéu, em 26 de outubro de 1933, uma “Convenção sobre Direitos e Deveres dos Estados”, na qual afirmaram no seu art. 1º:

“O Estado como pessoa de Direito Internacional deve reunir os seguintes requisitos:

1º. População permanente;

2º. Território determinado;

3º. Governo;

4º. Capacidade de entrar em relações com os demais Estados.”

O governo do Estado é representado pelos que não só dirigem a coletividade, mas também mantêm relações com os demais membros da comunidade internacional. Este governo não pode sofrer interferências dos demais Estados quer no plano interno, quer na órbita externa. Esta é a razão por que se exige para a existência do Estado que ele possa escolher livremente forma de seu governo, promulgar as leis que julgar necessárias e aplicar penas aos que as transgredirem (soberania) e que livremente, também, mantenha relações com os demais Estados, celebre com estes os tratados que julgar convenientes e adote nos momentos bélicos a atitude que melhor atenda ao seu interesse ou conveniência (autonomia).

Distingue-se, portanto, soberania e autonomia, porque se no plano interno o Estado não é subordinado a nenhum poder, no plano externo ele está sujeito às normas costumeiras ou convencionais do Direito Internacional. E como a soberania não pode sofrer limitações e na órbita externa o Estado as sofre, em conseqüência das regras do Direito das Gentes a que se submete, com o intuito de manter relações com os demais membros da comunidade internacional, dada a necessidade de intercâmbio e de solidariedade que devem existir entre os componentes desta, não se é possível afirmar que no plano externo o Estado seja soberano, razão pela qual é preferível a expressão autônomo.

Mencionada diferenciação encontra alicerce na doutrina de eminentes juristas. Assim é que Miguel Reale conceitua a soberania como “o poder que tem uma Nação de organizar-se livremente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões para a realização do bem comum”. Na clara lição de Sampaio Dória: “O poder que dita, o poder supremo, aquele acima do qual não haja outro, é a soberania. Só esta determina a si mesma os limites de sua competência. A autonomia, não. A autonomia atua dentro de limites que a soberania lhe tenha prescrito”.

Não é demais lembrar que a Carta da Organização das Nações Unidas constrange todos os Estados – mesmo aos que não ingressaram na entidade – à obrigação de agir de acordo com os seus princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança internacionais.

Vê-se, por conseguinte, que o dogma da soberania ilimitada é inadmissível no Direito das Gentes, pois os Estados se submetem às normas convencionais do Direito Internacional, sob pena de responsabilidade.

Uma primeira aproximação do conceito de Soberania exige a separação de outra noção com que comumente é confundida: a de poder político. Soberania não é propriamente um poder do Estado, mas é uma qualidade que se empresta normalmente a este poder. As sociedades políticas, sob as quais vivemos hoje, requerem a soberania como condição para a sua existência. A Soberania é, pois, um atributo do Estado. Traduz-se a soberania pela circunstância de não reconhecer nenhum outro poder superior nem igual ao seu na ordem interna nem ou superior na externa. Nesta, a relação que se instaura entre os Estados é de coordenação, em que todos se limitam reciprocamente, não podendo um invadir a esfera de ação dos outros. Já no plano doméstico (interno), a relação é outra. O poder tem de ser superior a todos os demais, sob pena de ocorrer o próprio desmembramento do Estado.

Não se nega que a Antigüidade Clássica já apresentasse sinais precursores dessa realidade. Todavia, preferem os autores localizar o seu aparecimento no início dos tempos modernos, uma vez que só então, em última análise, se reúnem, nas entidades políticas assim denominadas, todas as características próprias do Estado: território, povo, e poder soberano.

O termo Soberania surge no período em que os Estados nacionais europeus tiveram um papel fundamental na guinada da expansão do setor mercantil (ou, melhor dizendo, da força capitalista), e não pode ser desvinculado de outro: o do Estado Moderno. Num primeiro momento, principalmente sob as influências de Jean Bodin (o qual dizia que a soberania era absoluta, ilimitada juridicamente) A soberania foi elaborada com o intuito de fortalecer o poder do rei. Num segundo momento, a soberania passa a residir no povo, o seu único detentor (segundo influências de Rousseau) e, mais tarde, no Estado (Jellinek); até chegar-se à concepção de que a Soberania, nada obstante localizar-se no povo, entretanto, não era por este exercida diretamente, mas sim pelos seus representantes. A CF/88 põe-se de acordo com este entendimento, estatuindo, no parágrafo único do artigo 1º o seguinte: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Portanto, à medida que as transformações sociais e políticas passam a tornarem-se realidades, o conceito de soberania transmuda-se.

Os atributos do poder soberano são:

a) unidade: por não haver mais de uma autoridade soberana em um dado território;

b) indivisibilidade: como corolário do primeiro atributo, a soberania apresenta-se como um todo, podendo repartir competências e dividir as funções políticas em três (Executivo, Legislativo e Judiciário) sem que importe numa cisão da mesma;

c) inalienabilidade: a soberania não pode ser transferida a outrem, é personalíssima; e, finalmente,

d) imprescritibilidade: a soberania eterniza-se no tempo, não sofrendo limitações de ordem temporal.

Vale dizer ainda que, no plano interno, a lei é o maior limite à soberania, pois é ela quem irá estabelecer os contornos desta. Portanto, é a Lei Maior, como organização jurídica fundamental do Estado, que restringirá a soberania, através das regras concernentes à garantia dos direitos individuais, coletivos e difusos, à forma do Estado, à forma do Governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos. Em conclusão pode-se dizer que a noção de soberania não é tão útil nos tempos modernos e o mais provável é que ela não tenha sido a expressão de nenhuma realidade objetiva. Um poder absolutamente infrene jamais existiu a começar pela óbvia razão de que todo exercício do poder está condicionado a circunstâncias de ordem econômica, social, demográfica, até mesmo tecnológica, que não podem ser alteradas por manifestações unilaterais do poder. Na ordem externa, os Estados também se limitam reciprocamente na medida em que o próprio respeito à soberania de outrem implica uma limitação do seu próprio poder (será?). Contudo, é necessário salientar que a evolução da ordem jurídica estatal não tem feito senão restringir a margem de atuação livre e incondicionada do seu poder. O Estado constitucional é aquele que só pode atuar nos limites das competências que lhe são referidas pela Lei Maior.

O princípio da soberania é fortemente corroído pelo avanço da ordem jurídica internacional. A todo instante reproduzem-se tratados, conferências, convenções, que procuram traçar as diretrizes para uma convivência pacífica e para uma colaboração permanente entre os Estados. Os múltiplos problemas do mundo moderno como alimentação, energia, poluição, guerra nuclear, repressão ao crime organizado, etc. ultrapassam as barreiras do Estado, impondo-lhes, desde logo, uma interdependência de fato.

Hodiernamente, será termo atual, quanto à questão de a soberania ainda ser útil para qualificar o poder de Estado, se com ele estivermos significando uma qualidade ou atributo da ordem jurídica estatal. Nesse sentido, ela ainda é soberana porque embora exercida com limitações, não foi igualada por nenhuma ordem de direito interna, nem superada por nenhuma outra externa. O certo é que a comunidade jurídica internacional é destituída de supremacia sobre os Estados.

“... Se a intervenção humanitária é, de fato, um ataque inaceitável à soberania, como deveremos responder a uma situação como a de Ruanda, e Srebrenica – a violações brutais e sistemáticas dos direitos humanos que ofendem todos os preceitos da nossa humanidade comum?... Certamente nenhum princípio jurídico – nem mesmo a soberania – poderá alguma vez proteger crimes contra a humanidade... A intervenção armada deve sempre constituir uma opção de ultimo recurso, mas perante o homicídio em massa, é uma opção que não pode ser abandonada...” (Kofi Annan, secretário-geral das Nações Unidas, in Nós as Pessoas)

 

 

II – A Soberania e os recursos naturais

Não obstante a pouca repercussão, mesmo pelo fato de não ser muita a divulgação, a questão da Soberania em relação aos recursos naturais que uma Nação possui é um tema que merece a devida atenção, especialmente no que tange ao nosso território, o brasileiro, que é tão vasto e diversificado. Colocar à disposição de outras Nações bens naturais que nos pertence e que por nós pode ser aproveitado e conservado (referimo-nos à Amazônia) é praticamente uma afronta à nossa Soberania.

Em 1958, a Assembléia Geral criou a Comissão de Soberania Permanente Sobre os Recursos Naturais para que esta realizasse um estudo completo da situação da soberania permanente sobre recursos e riquezas naturais como elemento básico do direito da livre determinação, reformulando recomendações se fosse o caso, e também resolveu estudar profundamente a questão sobre a soberania permanente dos povos e das nações sobre suas riquezas e recursos naturais, levando-se em conta os direitos e deveres dos Estados em virtude do direito internacional e a importância de fomentar a cooperação internacional no desenvolvimento econômico dos países em vias de desenvolvimento.

Na Comissão se recomendou que seja respeitado o direito soberano de todo Estado de dispor de sua riqueza e de seus recursos naturais. Qualquer medida a este respeito deve basear-se no desenvolvimento inalienável de todo Estado dispor livremente de suas riquezas conforme seus interesses nacionais, e o respeito à independência econômica dos Estados. Ainda considerou que é conveniente fomentar a cooperação internacional de desenvolvimento econômico dos países em vias de desenvolvimento, e que os acordos econômicos e financeiros entre os países desenvolvidos e os países em vias de desenvolvimento devem se basear nos princípios de igualdade e de direito dos povos e nações na sua livre determinação; e também indicou a utilidade que surge da troca de informações técnicas e científicas que favoreçam a exploração e o benefício de tais riquezas e recursos e o importante papel que corresponde às Nações Unidas desempenhar a este respeito assim como a outras organizações internacionais. Por fim, tomou-se nota de que o exercício e o aprimoramento da soberania permanente dos Estados sobre suas riquezas e os recursos naturais fortalecem a sua independência econômica.

Alguns dos postulados da Resolução das Nações Unidas, a qual contém o título “Soberania Permanente Sobre os Recursos Naturais”, atentam com bastante ênfase ao princípio fundamental do direito internacional: respeito e reverência à Soberania das Nações. Tal ênfase vem ainda mais aclarar a importância do dever de obediência a este preceito que, sem soma de dúvida, se apresenta, hodiernamente, ameaçado.

Eis alguns desses postulados:

“ (...)• A exploração, o desenvolvimento e a disposição de tais recursos, assim como a importação de capital estrangeiro para efetivá-los, deverão estar em conformidade com as regras e condições que estes povos e nações livremente considerem necessários ou desejáveis para autorizar, limitar ou proibir tais atividades.

• Nos casos em que se outorgue a autorização, o capital introduzido e seus incrementos serão regidos por ela, pela lei nacional vigente e pelo direito internacional. As utilidades obtidas deverão ser compartilhadas, na proporção que convenha livremente em cada caso, entre os investidores e o Estado que recebe o investimento, cuidando para não restringir por nenhum motivo a soberania de tal Estado sobre suas riquezas e recursos naturais.

• O exercício livre e proveitoso da soberania dos povos e das nações sobre seus recursos naturais deve ser fomentado de acordo com o mútuo respeito entre os Estados baseados em sua igualdade soberana.

• A violação dos direitos soberanos dos povos e nações sobre suas riquezas e recursos naturais é contrária ao espírito e aos princípios da Carta das Nações Unidas e dificulta o desenvolvimento da cooperação internacional e da preservação da paz.

• Os acordos sobre os investimentos estrangeiros livremente acertados por Estados soberanos ou entre eles deverão ser cumpridos de boa-fé; os Estados e as organizações internacionais deverão respeitar estrita e escrupulosamente a soberania dos povos nacionais sobre suas riquezas e recursos naturais em conformidade à Carta e aos princípios nela contidos.”

III – Intervenção no âmbito da Soberania das Nações

A intervenção é a intromissão indevida de um Estado nos negócios internos (forçando a mudança da forma de governo) ou externos (impondo a aceitação de certas normas em relação à sua política exterior) de outro membro da sociedade internacional.

Diplomata ou militar, a intervenção é sempre, seja qual for o motivo, uma violação do Direito das Gentes, pois todo Estado tem a obrigação de se abster de qualquer ingerência na vida política de outro, razão pela qual é combatida pelas convenções internacionais e pela doutrina dos mais eminentes juristas.

Decorre do conceito que inexiste intervenção se o ato interventivo tem por objetivo o oferecimento de bons ofícios ou mediação com o fito de solucionar litígios internacionais. Não se deve pôr de lado que o art. 34 da Carta da ONU outorga ao Conselho de Segurança a faculdade de “investigar qualquer controvérsia ou situação suscetível de provocar atritos entre as Nações ou dar origem a uma controvérsia, a fim de determinar se a continuação de tal controvérsia ou situação pode constituir ameaça à manutenção da paz e da segurança internacionais” e se este concluir pela “existência de qualquer ameaça à paz, ruptura de paz ou ato de agressão” (art.39) poderá aplicar ao transgressor as sanções previstas nos arts. 41(interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicações ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos ou de qualquer outra espécie e o rompimento de relações diplomáticas) e 42 (bloqueio de operações por parte das forças aéreas, navais ou terrestres).

III.I - Papel da ONU

A ONU, Organização das Nações Unidas, foi primordialmente criada mediante um pacto firmado entre os Estados grandes e pequenos no período pós-Guerra na Conferência de Moscou, em 1943. Baseada no princípio da soberana igualdade de todos os Estados amantes da Paz, tem como alguns de seus propósitos: manter a paz e a segurança internacionais; fomentar as relações amistosas entre as Nações baseadas no respeito e na igualdade de direitos e autodeterminação dos povos; cooperar na resolução dos problemas de caráter econômico, cultural ou humanitário e estimular o respeito dos direitos humanos e nas liberdades fundamentais.

Essas finalidades poderiam ser conseguidas se obedecidos fossem os seguintes princípios: igualdade soberana dos membros, boa-fé no cumprimento das obrigações internacionais, solução dos conflitos por meios pacíficos, abstenção da ameaça e da força contra a integridade territorial e a independência política de qualquer Estado, e não-intervenção em assuntos que sejam, essencialmente, da competência interna dos Estados.

IV – A Soberania e os litígios internacionais (soluções diplomáticas e coercitivas)

Segundo o Direito Internacional Público, os Estados podem solucionar suas controvérsias sem a necessidade de apelarem para a guerra. Diversos processos – pacíficos ou coercitivos – podem resolver os litígios existentes entre dois ou mais Estados e as diversas organizações de caráter internacional ou regional estabelecem que todos os desentendimentos que possam surgir entre seus membros devem ser solucionados pelos meios pacíficos, quer eles sejam diplomáticos ou jurídicos.

Assim é que a Carta da Organização das Nações Unidas é taxativa em combater os meios violentos de solucionar os litígios entre seus membros, quando declara no seu artigo 33:

“I – As partes, em uma controvérsia que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacional, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha.

II – O Conselho de Segurança convidará, quando julgar necessário, as referidas partes, a resolver, por tais meios, suas controvérsias”.

Partindo disso é que os diversos organismos regionais de caráter político procuram solucionar as controvérsias entre seus membros antes que a ONU deles tome conhecimento.

Dispõe, por ex., o art. 5º do Pacto da Liga dos Estados Árabes que é interdito aos seus componentes recorrerem à força para resolver quaisquer controvérsias que possam surgir entre si e além disso o Conselho da Entidade deve prestar seus bons ofícios no intuito de solucionar todos os litígios suscetíveis de ocasionar uma guerra entre dois Estados-membros ou entre estes e terceiros.

Por seu turno, a Carta da Organização dos Estados Americanos, estatui no seu art. 23:

“Todas as controvérsias internacionais que surjam entre os Estados Americanos serão submetidas aos processos pacíficos indicados nesta Carta, antes de serem levados ao Conselho de Segurança das Nações Unidas”.

Depreende-se, pois, que a guerra como solução de uma controvérsia entre dois ou mais Estados é um ato contrário ao Direito das Gentes e por isso mesmo constitui um crime contra as normas jurídicas existentes e obrigatórias para os membros da Comunidade Internacional.

Como um dos princípios fundamentais do Direito das Gentes é o de que as discrepâncias entre Estados se resolvam pelo meio mais pacífico que haja, ainda assim há certa previsão para casos em que tal preceito não possa ser seguido. É aí que entram em ação os meios coercitivos nos quais se tem o escopo de forçar um dos lados contrapostos a solucionar o desacordo existente entre ambos.

Com a criação dos Organismos Internacionais ou Regionais parecia que esses meios coercitivos deveriam apagar-se como medida adequada para um Estado resolver, de maneira unilateral, as suas diferenças internacionais, pois as sanções contra um Estado violador das normas interestaduais não poderiam ser tomadas individualmente, e sim pela Organização Internacional ou Regional.

É fato conhecido que a Sociedade das Nações, quando um dos seus membros recorria à guerra, contrariando os compromissos assumidos, decretava ao Estado agressor as sanções estipuladas no artigo 16 do Pacto assinado em Versalhes e que podem ser resumidas em ruptura de relações e na aplicação de atos coercitivos de natureza econômica e financeira, podendo ainda organizar uma força armada destinada a fazer o transgressor cumprir os compromissos desrespeitados. Na prática, essas sanções não funcionavam como era preciso, principalmente por ocasião de vários conflitos surgidos na década de 1930.

A boa harmonia entre os Estados pode ser conturbada não poucas vezes quando um deles não cumpre as cláusulas de um tratado, viole os direitos fundamentais de outro membro da comunidade internacional e se negue a reparar a ofensa praticada ou ressarcir os danos causados. Há vários institutos que são muitas vezes recorridos quando surgem desavenças entre os Estados. Citar-se-ão alguns deles a seguir.

• Retorsão: Questionam os estudiosos se o Estado no exercício legítimo da soberania pode elevar sucessivamente as tarifas alfandegárias referentes a mercadorias provenientes de determinado membro da comunidade internacional.

Quando isso se verifica, o Estado que sofrer tais violências terá o direito de tomar as mesmas providências, isto é, adotará o instituto da retorsão, que pode ser conceituado como a medida que um Estado aplica com o intuito de revidar de maneira idêntica a violência ou prejuízo imposto por outro Estado. Pois bem, na teoria a solução é bem plausível e justa. Contudo, na prática não se verifica tal equidade. Percebe-se tal contradição pelo fato de, aqui mesmo no Brasil, não possuirmos um controle efetivo sobre entrada e saída de mercadorias pelas fronteiras com outros países, como o Paraguai, por exemplo.

• Represálias: Quando um Estado revida as ofensas recebidas por outro membro da comunidade internacional, com medidas contrárias ao Direito das gentes, entende-se que emprega “represálias”, as quais devem, no entanto, ser proporcionais às ofensas recebidas e adotadas apenas ao Estado violador das normas internacionais e não aos seus cidadãos – não foi o que aconteceu no caso dos Estados Unidos perante Bagdá, onde aquele país simplesmente praticou atos com ênfase ou superioridade (talvez até opostos ao Direito) com o fito de impor seu poderio face às outras Nações.

Ao contrario da retorsão, as represálias decorrem de um ato ilícito que causa prejuízo ao Estado que a emprega.

• Embargo: Verifica-se o embargo quando um Estado, em tempo de paz, efetua o seqüestro de navios mercantes de um Estado estrangeiro ancorado em seus portos ou em sua águas territoriais com o objetivo de protestar contra o ato nocivo ao direito e que é prejudicial praticado por este.

Não se deve confundir este embargo com o chamado “embargo do príncipe (arret de prince)” que é a proibição, por questões sanitárias, judiciais ou de polícia, da saída de navios fundeados de um porto do Estado que adota tal medida. Igualmente, não se deve enlear o embargo com o chamado “direito de angaria”, que pode ser definido como a requisição por parte de um estado dos navios mercantes estrangeiros baseados em seus portos para que transportem soldados, armas ou munições, mediante pagamento. Em tempo de guerra, os neutros podem, por igual, se utilizar do direito de angaria sobre os navios mercantes dos beligerantes que se encontram em suas águas territoriais ou em seus portos.

• Bloqueio pacífico: O bloqueio pacífico consiste em impedir, mediante o emprego de belonaves, em tempos de paz, que um Estado mantenha suas comunicações com os demais membros da sociedade internacional. Bastante controvertida entre os juristas a legitimidade de tal medida, e o Instituto do Direito Internacional, em sua sessão de Heidelberg, em 07.09.1887, o admitiu desde que fossem obedecidas algumas condições.

No continente americano, tivemos o bloqueio praticado pela Grã-Bretanha, Itália e Alemanha contra a Venezuela com o intuito de obrigar este país a saldar seus débitos para com os cidadãos dos Estados bloqueantes.

• Boicotagem: Trata-se da proibição de serem adquiridas mercadorias ou serem mantidas relações comerciais com os nacionais de um Estado que violou as regras de Direito Internacional ou que causou prejuízos aos interesses de um Estado ou de seus nacionais.

• Rompimento de relações diplomáticas: Ocorre quando o litígio excede seu patamar e não é possível mais o dialogo entre as Nações. Aqui se tem o rompimento de relações com o Estado violador das regras internacionais. Para tanto, entrega os passaportes aos diplomatas do Estado culpado, pedindo a retirada de toda a missão ao mesmo tempo que ordena o retorno dos seus representantes acreditados no referido Estado.

Vê-se, por conseguinte, segundo a doutrina, que algumas dessas soluções coercitivas atentam contra a Soberania dos Estados. E o caso da retorsão no que tange ao aspecto de um país soberano ter obstado (violado) o seu direito de comando com relação às tarifas alfandegárias. Tal mecanismo atenta só para o nivelamento entre tais Estados, esquecendo-se do diálogo. Outro instituto que se aproxima de uma afronta à soberania nacional é o embargo, que mais parece um ato de revolta de cunho desrespeitoso do que propriamente uma oposição. Trata-se de uma contestação pouco eficaz para demonstrar que se é contra algo feito pelo outro Estado.

Embora com tantas discrepâncias, falhando algumas dessas soluções, só resta um caminho - a guerra.

“Falam, então as vozes sinistras dos canhões, já que a voz do homem não encontrou ressonância no coração dos outros homens”.

V – O exemplo mais concreto de que a Soberania enfrenta crise (novas éticas)

Recentemente, numa revista canadense, publicou-se uma propaganda de um banco de investimentos. Nela, vê-se o desenho de um mapa-múndi singular. Os continentes, regiões e países aparecem com uma extensão territorial à importância deles no mercado de capitais. Assim, a distribuição do espaço torna-se inusitada. Os continentes africano e latino-americano, por exemplo, não passam de pequenas manchas. Por seu turno, o Japão, a Europa e os Estados Unidos estão superdimensionados. Porém, o mais chama atenção é um frase que principia o texto propagandístico: “Este é o mundo real”. Talvez esta seja a melhor síntese da nova ordem que está se instaurando após o fim da Guerra Fria. O “mundo real” inclui apenas aqueles que são relevantes para a economia de mercado. Essa propaganda traduz o mais tenebroso dos fenômenos hodiernos: a exclusão sistêmica. Regiões, países e povos de um momento para o outro tornaram-se descartáveis. A substituição de matérias-primas e de mão-de-obra, em decorrência da alta tecnologia, vai relegando a um plano mais subalterno nações e povos situados na periferia do capitalismo.

Essa nova ordem internacional introduz formas inéditas e sutis de dominação. Assistimos à concretização de uma ordem transnacional, nas esferas econômica, cultural e do conhecimento. Ainda mais grave é a presença de uma ideologia de cunho totalitário que pretende demonstrar a inexistência de qualquer alternativa. Tal ideologia comporta um caráter perverso, que considera as massas empobrecidas como um obstáculo ao crescimento econômico, à expansão do mercado total. Segundo essa lógica econômica, os contingentes empobrecidos demandam direitos fundamentais sem uma contrapartida compatível em termos produtivos. Portanto, seria melhor que não existissem.

Em todo caso, é preciso se estar advertido para o fato de que a plenitude do poder estatal encontra-se em acelerada obsolescência. Isto significa também o desaparecimento da assim chamada soberania nacional, tal qual a conhecemos. Considerando-se que a instância do Estado-Nação, que condensava em si mesma o poder político-jurídico, encontra-se em vias de extinção, faz-se mister uma síntese das novas formas de poder em gestação.

Foi preciso chegar ao extremismo de uma guerra político-militar (talvez até mais política e econômica do que propriamente social) para o mundo perceber que, realmente, o conceito constitucional de Soberania nacional está praticamente em ruínas. Muito mais importante do que ter eliminado o poder de força de um ditador árabe, a aço militar anglo-americana contra o Iraque pode ser vista como o Cavalo de Tróia que desarticulou os mecanismos do direito internacional (principalmente no que tange à soberania nacional), tal e qual criados no despertar do horror da Segunda Guerra Mundial. A demonstração da supremacia militar das tropas invasoras nas praças de Bagdá é uma ilustração do poderio tecnológico, militar e econômico que os Estados Unidos pretendem estender por todos os recantes do mundo. As ruas de Bagdá, lideradas pelas forças de Bush, são o exemplo maior da concepção norte-americana para o mundo do Terceiro Milênio. É a ordem mundial, unipolar e marcada por uma supremacia e liderança norte-americanas como ainda não se viu, como definiu um dos gurus dos falcões de Bush, Thomas Donnelly, diretor do American Enterprise Institute. O instituto, do qual Donnelly é o diretor, é um centro de estudos consultado pelos falcões da administração Bush, entre outros o vice-presidente Dick Cheney e o secretário de defesa Ronald Rumsfeld. Para Donnelly, o mundo está saindo o período pós-guerra fria para entrar em uma durável de Pax Americana. Uma era, segundo ele, em que organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas, deverão ser reformados para refletir esta nova realidade.

VI – Visão geral

A hegemonia que hoje se tornou precípua para os governantes dos países supremos vem tentando passar por cima de um dos elementos constitutivos do Estado de alta relevância – a soberania. Trata-se de uma ordem na qual um certo modo de vida e de pensamento se pretende dominante, onde um conceito de realidade é difundido por toda a sociedade, todas as Nações, em todas as suas manifestações institucionais e privadas, estendendo sua influência a todos os gostos, comportamentos morais, costumes, princípios políticos e religiosos, e todas as relações sociais, particularmente em suas conotações morais e intelectuais.

Segundo Miguel Reale em seu livro “Teoria do Direito e do Estado”, soberania nada mais é do que “o poder originário de declarar, em última instância, a positividade do Direito”. Este conceito nos faz invadir a seara da Teoria do Estado, onde este se coloca como organização do poder, com a distribuição originária e congruente das esferas de competência segundo campos distintos de autoridade. Ora, se o que se objetiva, pelo menos teoricamente, é a limitação de poderes de um Estado na esfera de outro, não há que se falar ou se admitir o que hodiernamente vem ocorrendo em âmbito mundial. A inércia da maioria das Nações frente ao despotismo de um só Estado (EUA), através de um governo fundado no poder de dominação econômica principalmente, vem acarretando distorções no real conceito de soberania estatal, visto que este deveria ser realçada e respeitada pela idéia que carrega em si de limitação do poder.

Para Antonio Gamsci, a explicação para esse consentimento reside no poder da consciência e da ideologia. Portanto, a hegemonia norte-americana compreende as tentativas bem sucedidas de seus governantes em usar sua liderança política, econômica e intelectual para impor sua visão de mundo como inteiramente abrangente e universal, e para moldar os interesses e as necessidades das Nações subordinadas. Destarte, como Buci-Glucksmann (1974) e Giroux (1981) salientaram, essa relação de consentimento não é absolutamente estática. Aos poucos essa hegemonia norte-americana vem ressaltando contradições, sujeitando-se ao conflito por parte de Nações com maior poder de resistência à dominação, como por exemplo a França e a Alemanha. Elas tentam impedir que o conteúdo político dos EUA expanda ainda mais sua capacidade hierárquica para reproduzir seu controle sobre o desenvolvimento e o desfecho das Nações em situações críticas (como Bagdá).

É nesse paradigma que outros Estados devem se basear, antes que as circunstâncias se façam impraticáveis, pois será essa privação de forças o motivo principal a tornar a Soberania Nacional um mero preceito fundamental de observância apenas teórica. Impedir que se atente contra a soberania de uma Nação, mesmo que não seja a de origem, é um ato de patriotismo sim. Quem ama a Pátria de origem deve amar também a pacificidade. Pacificidade esta que só se consegue a partir de relações iguais entre povos de Nações distintas, sem hierarquia e imposição de vontade única.

Dominação em um campo altamente competitivo como o econômico, por exemplo, sempre existirá. Contudo, tal poderio, ao invés de provocar controvérsias deveria servir como forma de auxílio.

Diplomacia e cooperação. Eis as palavras-chave. Harmonia nas relações entre os Estados não pode chegar ao ponto de ser considerada uma utopia irrealizável. A redundância a que me refiro não excede o teor da questão. Surgida e posteriormente acabada uma Guerra, as Nações neutras se curvam à emoção, prestam-se homenagens aos combatentes mortos, pessoas se comovem com a situação pós-guerra do país vencido. Ora, não seria mais fácil propor uma Convenção e adotar um meio conciliador de todas as propostas auferidas? Para os EUA não.

Pois bem, um único país frente a toda a comunidade internacional que tem seu poder de barganha privilegiado. O Direito das Gentes não o acolhe com equânime, é certo. Data venia, não obstante livros e mais livros conterem requisitos diplomáticos e pacíficos para solucionar discrepâncias no meio internacional, a realidade pela qual passamos não atende a tais regras diretoras.

Os Estados se carecem. Nenhum País é totalmente auto-sustentável; senão não haveria importações, exportações, auxílios, fomento entre eles. Ninguém dá ou recebe algo de graça. Se nos é emprestado dinheiro, ganha-se com os juros e nossa subordinação; se importamos produtos industrializados, ganha-se com o nosso forte mercado consumidor. Tudo é uma troca e assim é que deve ser encarado, e não como forma de súplica, pedido. A cooperação se firma no propósito de permuta, sem haver gabança de uma só Nação.

Diplomacia e cooperação – as palavras-chave que poderiam ser tomadas como formas de compromisso nas relações internacionais, obstando qualquer tipo de ameaça à Soberania Nacional dos países. Pena que a ambição de alguns não deixa essa utopia sair do papel, da teoria e se tornar realidade.

Bibliografia

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Data de elaboração: outubro/2012

 

Como citar o texto:

HONDA, Nilo Carlos Bandeira Nicácio..Crise da soberania. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1030. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-internacional/2660/crise-soberania. Acesso em 23 nov. 2012.

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