1. Origem e Evolução do Notariado

A história do notariado confunde-se com a história do Direito e com a da própria sociedade, residindo aí, a sua beleza e importância.

Desde os tempos mais remotos, a sociedade já sentia a necessidade de obter meios para fixar e perpetuar os seus convênios, surgindo daí os encarregados de redigir os contratos, não obstante a pluralidade de denominações e o maior ou menor grau de limitação no desempenho da função.

Existia, na civilização egípcia, um personagem de marcantes características, de grande importância, o qual, por sua denominação, possivelmente poderia ter no antepassado longínquo, o entendimento de que o “Notário” era o “escriba”.[1]

Era ele quem atendia e anotava todas as atividades privadas do Estado, além de redigir os atos jurídicos para a monarquia.  O “escriba” era acima de tudo aquele que sabia exprimir, numa escrita única, a diversidade lingüística da sociedade. Na sociedade moderna, o notário é aquele que traduz, numa linguagem uniforme, as mais variadas formas de vontade manifestadas pelas pessoas sobre os atos e negócios jurídicos que celebram.

O “escriba” pertencia às categorias de funcionários mais privilegiados e lhe era atribuída uma preparação cultural especialíssima e, por isso, os cargos recebiam o tratamento de propriedade privada e, por vezes, se transmitiam em linha de sucessão hereditária.

 Entretanto, não era possuidor de fé pública, o documento por ele redigido; somente alcançava valor como prova quando submetido à homologação de uma autoridade superior.[2]

Somente no século XIII aparece o Notário como depositário da Fé Pública, dando com sua intervenção, autenticidade aos documentos.

O povo romano, no seu início, dispensava o documento escrito. A lei natural e a boa-fé imperavam soberbas e, assim, a palavra dos cidadãos fazia fé em juízo. Porém, com a expansão do povo e conseqüente multiplicação das relações civis, foram surgindo os vícios, contaminando a boa-fé que reinava, fazendo advir a necessidade de dar vigor aos contratos, registrando-os em documentos escritos, como forma de guardar a palavra. Surgiram, com o advento desse instituto, oficiais dos mais variados, dentre os quais os notarii, os argentarii, os tabularii e os tabelliones.[3]

Os notarii costumavam escrever com notas abreviadas, registrando as declarações de seus clientes para reduzi-las a instrumentos. Apesar de terem dado nome ao notário de hoje, suas funções não se confundem, porquanto os notarii sequer eram revestidos de caráter público.[4]

Os argentarii eram espécies de banqueiros que conseguiam dinheiro por empréstimo para particulares, elaborando o contrato de mútuo e registrando em livro próprio o nome e cognome do devedor.

Existiam também os tabularii, que eram empregados fiscais, tendo por incumbência a direção do censo, a escrituração e guarda de registros hipotecários, o registro das declarações de nascimento, a contadoria da administração pública, a feitura de inventários das coisas públicas e particulares, dentre outras.

Aos tabelliones, porém, remonta o verdadeiro precursor do notário moderno. Eram eles encarregados de lavrar, a pedido das partes, os contratos, testamentos e convênios entre particulares, com notável aptidão como redator, assessorando as partes embora fossem imperitos no direito, além do que, propiciava uma eficaz conservação dos documentos.

JUSTINIANO I, imperador bizantino e unificador do império romano cristão, foi o responsável pela transformação da rudimentar atividade tabelioa em profissão regulamentada.[5]

Notabilizando-se no plano legislativo, a JUSTINIANO devemos o “Corpus Juris Civilis”, obra que emprestou ao direito romano suas dimensões elevadas, ainda hoje repercutindo no mundo civilizado.[6]

As principais disposições da legislação Justiniana, no âmbito notarial, consistiram na instituição do protocolo; na valorização do pacto pela intervenção do notário; na obrigação quanto ao local em que o Tabelião e seus auxiliares deveriam permanecer à disposição dos clientes; na disciplina rigorosa a que aquele e estes ficavam submetidos no exercício da profissão, inclusive quanto a substituições e na obrigação de redigir uma minuta do ato, perante testemunhas, dela extraindo cópia imediata.[7]

O protocolo determinava que os tabeliães não lavrassem instrumentos senão em papel que tivesse a sua marca e nome, bem como a época de sua fabricação, era uma folha pregada a certos documentos, contendo, em acréscimo, o resumo ou as indicações do conteúdo do ato.

O protocolo era um meio apto para tornar mais difíceis as falsificações, como transparece claramente dos motivos pelos quais foi determinado o seu uso.

Surgiu, sem dúvida, o ato mais significativo do ponto de vista da lisura em que a atividade do oficial público se deveria desenvolver, empregou a denominação no sentido de ementa ou anotação autenticante, que deveria encimar as folhas em que fossem exarados os atos do tabelião, para resguardo da veracidade do documento.

O sentido moderno de protocolo longe está do que lhe deu origem, eis que hoje é o arquivo permanente da serventia, composto pelos livros em que são inscritos os atos notariais, para posteriormente serem trasladados, e pelos documentos referentes aos atos contidos nos livros.[8]

Através dos tempos, os notários têm relatado, por seus atos documentados, a evolução do direito e da humanidade, registrando na história os grandes acontecimentos.

Mais tarde, no século XIII na Itália, mais precisamente na Universidade de Bolonha, com a instituição de um curso especial, a arte notarial tomou um incremento tal a ponto de os autores considerarem-na a pedra angular do ofício de notas do tipo latino, tendo acrescentado uma notável base científica ao notariado, passando, assim, a aprimorar-se cada vez mais, até tomar as feições exatas que vemos hoje.[9]

Porém, no Brasil, levou muito tempo para se projetar. Como nosso país era colônia de Portugal, simplesmente teve nosso notariado regulamentado por simples transplante da legislação portuguesa, trazendo para cá os mesmos defeitos de uma instituição jurídica já ultrapassada, pois, ao tempo do Brasil colônia, o direito português emanava quase todo de ordenações editadas pelo rei e as Ordenações Filipinas, que vigoravam  em Portugal e passaram a vigorar aqui também, transformando-se na principal fonte do direito no Brasil, onde tiveram vigência por longo período, sendo aplicadas até o início do século XX.[10]

2.     O Notariado no Brasil

O notariado brasileiro possui grande influência portuguesa, pois, no período histórico do descobrimento da América e do Brasil, o tabelião acompanhava as navegações, fazendo parte da armada das naves, tendo papel extremamente relevante no registro dos acontecimentos e, inclusive, do registro das formalidades oficiais de posse das terras descobertas. O primeiro tabelião a pisar em solo brasileiro foi Pero Vaz de Caminha, português, que narrou e documentou minunciosamente a descoberta e a posse da terra, com todos os seus atos oficiais.[11]

Assim, o direito português foi simplesmente trasladado para o Brasil, sendo aqui aplicado tal qual era em Portugal e, da mesma forma se deu a regulamentação do notariado brasileiro.

O provimento dos cargos de Tabelião se dava por meio de nomeação real, sendo o beneficiado investido de um direito vitalício. Dessa forma, por óbvio, não havia como exigir-se o preparo e aptidão tão necessários para o exercício da função. Muitos dos cargos podiam ser comprados, ou adquiridos como recompensa oferecida pela Coroa.[12]

Nesse mesmo período, o notariado europeu e o da América espanhola sofreu rígidas mudanças, o que lhe dá, até os dias atuais, o título de mais desenvolvido do mundo, porém, no Brasil, tais modificações não se fizeram sentir, pois, foi mantido o notariado ultrapassado herdado de Portugal.[13]

Em 11 de outubro de 1827, foi editada, em nosso país, uma lei regulando o provimento dos ofícios da Justiça e da Fazenda. Dita lei passou a proibir que tais ofícios fossem transmitidos a título de propriedade, mas que fossem conferidos a título de serventia vitalícia a pessoas dotadas de idoneidade para tanto e que servissem pessoalmente aos ofícios. Porém, a dita lei pecou por não exigir formação jurídica dos aspirantes aos ofícios ou, sequer determinado tempo de prática na função, bem como por não instituir uma organização profissional corporativa. A introdução dessa lei teve pouca influência  no tratamento jurídico do notariado, pois, até anos recentes, persistiu, embora de modo dissimulado, o regime de sucessão, a transmissão do cargo de pai para filho.[14]

Assim, a legislação brasileira, por muito tempo, manteve-se estática, regida pelas Ordenações importadas de Portugal, alheia às transformações e avanços mundiais, situação essa, totalmente contrária à política peculiar ao direito notarial, que deve seguir os fatores sócio-políticos  reinantes no Estado em cujo território se aplica.

Durante longo período, a política brasileira foi de profundo descaso para com a instituição notarial, que, em uma sociedade evoluída e bem organizada, tem vital importância. Desse descaso resultou na dependência imposta pelos portugueses e ineficiência na formação e prestação dos serviços. Sua evolução foi atrofiada e prejudicada ao ponto de ser classificada por eminentes autores estrangeiros na especialidade como  Notariado de evolução frustada ou atrasada.[15]

O mais grave e prejudicial – para a instituição notarial como para o serviço público – é o desprestígio  em que caiu o notário, no Brasil, a ponto de até hoje, parte da sociedade, considerá-lo como mero parasita, que, portanto, deve desaparecer.

Ainda hoje, como fruto dessa política notarial encravada, reina obscuridade a respeito da instituição notarial e de sua função, levando a devaneios, desprovidos de fundamento jurídico, que visam reduzir o alcance de sua função, ou até mesmo, estatizar os seus serviços, o que não prospera, porque é inviável para os cofres públicos, bem como acarretaria na diminuição da qualidade dos serviços, o que prejudicaria o público usuário.[16]

Essa situação, congelada em relação aos notariados evoluídos de outros países, fez com que renomados juristas, inclusive pertencentes à classe notarial, clamassem por uma legislação orgânica que elevasse o notariado brasileiro ao seu papel de relevo na sociedade, desvinculando-o do quadro de servidores da Justiça e exigindo a preparação jurídica adequada ao exercício da função notarial.

3. O Artigo 236 da Constituição Federal

Depois de tanto descaso e muita pressão, finalmente a Constituição Federal de 1988, no seu Art. 236, trouxe profundas e essenciais mudanças para o notários e registradores pátrios.

O simples fato da inserção desse artigo na nossa Carta Magna, teve o efeito arrebatador de principiar a retirada da instituição notarial do osbcurantismo que a envolvia, tornando-a mais conhecida, inclusive pelos juristas e dando notícia do seu  relevo social e jurídico.

4.  A Lei 8.935/94 e o Notariado Brasileiro

E, nesse novo contexto, finalmente em 18 de novembro de 1994, erigiu do Poder Legislativo Federal a Lei nº 8.935, a Lei Orgânica dos Notários e Registradores que, com os defeitos que possa ter, com a amplitude que talvez lhe tenha faltado, inaugurou, sem dúvida, uma nova fase para o notariado brasileiro, que paulatinamente tomará o lugar de relevo que lhe é devido no meio jurídico.

A mencionada lei regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro, sendo que os parágrafos 1o e 2o do citado dispositivo Constitucional, já previam a necessidade de ser elaborada uma lei para regulamentar as atividades, disciplinar a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, definir a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário e estabelecer normas gerais para a fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

Essa lei, que fora editada depois de mais de seis anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, sendo de há muito aguardada, regulamentou uma situação jurídica que já existia há muito tempo, antes mesmo da Constituição Federal.

Por força do seu art. 54, entrou em vigor no dia 21 de novembro de 1994, data em que fora publicada no DOU, tendo eficácia imediata a partir de então.

Tal como estabelece o Art. 1º da Lei nº 8. 935, de 18 de novembro de 1994, “serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”.  O dispositivo em apreço, no contexto legal, conceituou o que são serviços notariais e de registro.

A citada lei orgânica trouxe profundas e importantíssimas inovações para a classe notarial.

Um ponto atacado pela Lei no 8.935/94 e que consistia em antiga reivindicação, foi a questão da capacitação jurídica adequada para exercer a função de notário, passando a exigir o bacharelado em Direito, além do que, por óbvio, a aprovação em concurso público, este último item, já previsto no texto constitucional, no parágrafo 3o, do artigo 236.[17]

Uma vez tendo a Carta Maior de 1988 determinado a obrigatoriedade de concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro, as serventias que vagassem a partir da sua promulgação, não mais incidiriam no privilégio previsto no artigo 208 da constituição de 1969, eis que instituída uma nova ordem.

De acordo com o artigo 236, caput, da Constituição Federal e pela Lei no  8.935/94,  notários passaram  a ser agentes delegados do Poder Público. Poder Público, que é formado pelos três poderes do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário. Todavia, é ao Poder Executivo que cabe a incumbência de delegar os serviços notariais e registrais.

A Lei dos Notários constitui um verdadeiro marco na história do notariado brasileiro e, se por si só não servir para acabar com os problemas que permeiam a instituição notarial, como de fato não servirá, será o instrumento que, aliado aos próprios notários, levará o notariado brasileiro, tão enfraquecido pelos erros até então cometidos, ao lugar de reconhecimento social e jurídico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. Órgãos de fé pública. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963.

BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do Direito Notarial. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

CENEVIVA, Walter.  Lei dos Registros Públicos Comentada. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

_________. Lei dos Notários e dos Registradores Comentada (Lei 8.935/94). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

COTRIN NETO, Alberto Bittencourt. Perspectivas da função notarial do Brasil. Porto Alegre: Colégio Notarial  do Brasil – Seção do Rio Grande do Sul, 1973.

MARTINS, Cláudio. Direito notarial – teoria e técnica. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1974.

_________. Teoria e Prática dos Atos Notariais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.

PARIZATTO, João Roberto. Serviços Notariais e de Registro, de acordo com a Lei n. 8.935, de 18/11/94: atribuições dos tabeliães e oficiais. Brasília, DF: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1995.

PEREIRA, Antonio Albelgaria. Comentários à Lei n. 8.935. Serviços notariais e registrais. Bauru: Edipro, 1995.

SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. O Notariado Brasileiro perante a Constituição Federal. Colégio Notarial do Brasil – Seção do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 01, p. 1-4, 2000.

[1] BRANDELLI, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 26.

[2] BRANDELLI, Leonardo. Op. cit. p. 26.

[3] BRANDELLI, Leonardo. Op. cit.  p. 29

[4] Idem.

[5] MARTINS, Cláudio. Teoria e prática dos atos notariais. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979. p. 7

[6] Idem.

[7] Ibidem. p. 9

[8] BRANDELLI, Leonardo. Op. cit. p. 32.

[9] MARTINS, Cláudio. Op. cit. p. 9

[10] COTRIN NETO, Alberto Bittencourt. Perspectivas da função notarial no Brasil. Porto Alegre: Colégio Notarial  do Brasil – Seção do Rio Grande do Sul, 1973. p. 14-5.

[11] Idem. p. 11

[12] SILVA, Ovídio Baptista. O Notariado Brasileiro perante a Constituição Federal. Boletim do Colégio Registral – RS, Porto Alegre, n. 14, p. 5, abr. 2000

[13] Idem.

[14] COTRIN NETO, Alberto Bittencourt. Op. cit. p. 14-15.

[15] COTRIN NETO, Alberto Bittencourt. Op. cit. p. 16.

[16] BRANDELLI, Leonardo. Op. cit. p. 52-53.

[17] O Art. 14, inciso V da Lei  número 8.935/94,  assim dispõe: “A delegação para o exercício da atividade notarial e de registro depende dos seguinte requisitos: V – diploma de bacharel em direito.”

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Como citar o texto:

SANDER, Tatiana..A Atividade Notarial E Sua Regulamentação. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 132. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-notarial-e-registral/660/a-atividade-notarial-regulamentacao. Acesso em 30 jun. 2005.

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