A localização dos correlatos cerebrais relacionados com o juízo moral, usando técnicas de neuroimagem parece ser, sem dúvida, uma das grandes notícias da história das ciências sociais normativas de nosso tempo. É que na medida em que a neurociência permite um entendimento cada vez mais sofisticado do cérebro, as possíveis implicações  morais , jurídicas e sociais destes avanços no conhecimento de nosso programa ontogenético cognitivo começam a poder ser seriamente  considerados sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos.

Particularmente com relação ao direito, parece possível  conjeturar que a investigação neurocientífica sobre a cognição moral e jurídica possa vir a afetar nosso entendimento acerca da natureza  do pensamento e da conduta humana, com conseqüências profundas no domínio próprio (ontológico e metodológico) do fenômeno jurídico. E porque não há uma instituição humana mais fundamental que a norma jurídica e, no  campo do progresso científico, algo mais instigante que o estudo do cérebro, a união destes dois elementos (norma/cérebro) acaba por representar uma combinação naturalmente fascinante e estimulante, uma vez que a norma jurídica  e o  comportamento que procura regular são ambos produtos de processos mentais. Neste  particular contexto, o processo de interpretação e aplicação jurídica aparece como o mecanismo apto e o único meio possível e com capacidade necessária e suficiente para por em evidência a natural combinação cérebro/norma.

É que nem princípios nem regras regulam por si mesmos sua aplicação no âmbito do comportamento humano. Eles representam apenas os pilares passivos do sistema jurídico. Se se quer obter um modelo completo, se deve agregar aos pilares passivos um ativo, quer dizer, um procedimento de interpretação , de justificação e de aplicação das regras e princípios jurídicos. Portanto, os níveis das regras, dos princípios e do comportamento humano têm  que ser completados por um terceiro: o de um processo de concreta realização do direito  e a correspondente (e iniludível)  dimensão subjetivo-individual (neural) do jurista- intérprete.  Dito de outro modo, seja com Gadamer ou Dworkin, porque direito é interpretação, não há direito que não seja direito aplicado.

 Neste particular, a idéia passa a ser a de discutir as questões relativas ao impacto que a neurociência cognitiva  pode chegar a ter para o atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica, uma vez que, se o fator último de individualização da resposta ou conclusão do raciocínio  jurídico não  procede do sistema jurídico (ainda que deva resultar compatível com ele), parece óbvio que deve proceder das convicções pessoais do operador jurídico, ou seja, a subjetividade presente em todo ato de compreensão, interpretação e  aplicação jurídica deverá  abordar-se por meio da análise dos processos cerebrais do operador do direito. Parafraseando a  advertência de Philip Tobias (1997) relativa a linguagem, se julga com o cérebro.

De fato, temos todas as razões para crer que a tomada de decisão surge da atividade eletroquímica  de redes-neurais no cérebro. A experiência de decidir não é uma ficção , senão uma conseqüência causada pela atividade  fisiológica de um cérebro  (produto de sistemas cognitivos e emocionais no cérebro) moldado geneticamente ao longo da história evolutiva de nossa  espécie e desenhado para pensar de certa maneira. Trata-se de um processo neural, com a óbvia função de solucionar a “melhor solução” segundo suas conseqüências previsíveis, a par de devidamente  fundamentada.

Ocorre que toda a construção hermenêutica e a própria unidade da realização do direito elaboradas pelas teorias contemporâneas estão baseadas, na atualidade, no modo de explicação dominante da teoria da eleição racional, construindo uma imagem sobre a racionalidade ou emoções ideais  que os operadores jurídicos têm no processo de tomada de decisão. Seu conceito fundamental é o de que, antes de tudo, os juízes são essencialmente racionais e objetivos em seus juízos de valor acerca da justiça da decisão: examinam tão bem como podem todos os fatores pertinentes ao caso e ponderam o resultado provável que se segue a cada uma das eleições potenciais . A opção preferida (“justa”) é aquela que melhor se adequar aos critérios de racionalidade e objetividade por meio da qual foi gerada.

O processo de análise indicado contêm, em essência, uma operação incompatível com os conhecimentos que a neurociência nos aporta. A de construir um modelo de extrema racionalidade (da decisão dos juizes) de algo que parece ser, em si mesmo,  uma atividade com certos componentes irracionais.

O inadequado da imagem se põe de manifesto ao analisar como funciona o cérebro quando formulamos juízos morais acerca do justo ou injusto. A causa dos processos cerebrais associados é preciso aceitar a iniludível presença de elementos não-lógicos e, em geral, a intrusão do valorativo no raciocínio jurídico. A partir daí, não resulta aceitável nem legítimo o seguir considerando a tarefa hermenêutica como uma operação ou conjunto de operações regidas exclusivamente pela silogística dedutiva ou cognoscitiva. De fato, a mente humana parece estar carregada de traços e defeitos de desenho que empanam o nosso legado biológico no que se refere à plena objetividade e racionalidade cognitiva.

Daí que o juízo ético-jurídico baseado não somente em raciocínios senão também em emoções e sentimentos morais produzidos pelo cérebro, não pode ser considerado como totalmente independente da constituição e do funcionamento desse órgão que, em uma primeira aproximação, parece não dispor de uma sede única e diferenciada relacionada com a cognição moral. O melhor modelo neurocientífico do juízo normativo no direito e na justiça disponível hoje parece sugerir que o raciocínio jurídico implica um amplo recrutamento e emprego de diferentes sistemas de habilidades mentais (relacionados tanto com o pensamento racional como emocional) e fontes de informação diversas (Goodenough & Prehn, 2005). De que é a atividade coordenada e integrada das redes neurais a que torna possível a conduta moral humana, isto é, de que o juízo moral integra as regiões frontais do cérebro com outros centros, em um processo que implica a emoção e a intuição como componentes fundamentais. É mais, que cada uma destas funções cerebrais intervêm em uma grande diversidade de operações cognitivas, umas relacionadas com a inteligência social e outras não (Greene et alii,2001 e 2002; Moll et alii, 2002 e 2003).

Sem embargo, tanto no que se refere ao seu aspecto ontológico como metodológico de interpretação e aplicação do direito , o problema da localização dos correlatos cerebrais que ditam o sentido da justiça continua a suscitar algumas dúvidas relevantes: em que pontos se podem enlaçar de modo presumidamente tão decisivo para que a neurociência cognitiva ponha em questão os atuais modelos e  resultados da compreensão e da realização jurídica? De que forma um modelo neurocientífico do juízo normativo no direito e na justiça oferece razões poderosas que poderão vir a dar conta da falsidade subjacente às concepções comuns da psicologia (e da racionalidade) humana? Em que medida é possível saber onde termina a cognição e começa a emoção no processo de realização do direito? Que alcance pode chegar a ter essa perspectiva neurocientífica para o atual edifício teórico e metodológico da ciência jurídica? Ou, já que estamos, de que maneira cambiará nossa concepção acerca do homem enquanto causa e fim do direito e, conseqüentemente, para a tarefa do jurista-intérprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo em sua relação na prática?

Pois bem, partindo de tais questionamentos, e junto com um grupo de investigadores do Laboratório de Sistemática Humana da Universitat de les Illes Balears/UIB, entendemos por bem desenvolver um projeto de investigação cuja finalidade é a de identificar as áreas cerebrais ativadas (MEG e fMRI) durante tarefas de juízo em profissionais da magistratura e não profissionais.

O projeto consiste em identificar os circuitos cerebrais que se ativam quando realizamos determinados tipos de juízos. Em concreto, o objetivo do projeto reside no fato de estudar os juízos de natureza jurídica e contrastá-los com os de natureza unicamente moral, estes últimos sem consideração jurídica. Da mesma forma, pretendemos comparar as ativações geradas por estes juízos em pessoas que exerçam sua profissão na magistratura com as causadas em pessoas alheias a esta profissão. A idéia básica é a de investigar, em síntese: (I) se os chamados juízos (casos) “fáceis” e “difíceis” ativam os mesmos processos cerebrais; (II) se os circuitos cerebrais ativados por profissionais da magistratura ante um juízo são os mesmos ou similares aos que outros cidadãos ativam; e (III) se estes circuitos cerebrais coincidem em sua ativação durante juízos de caráter ético-jurídico e juízos sem carga jurídica.

A localização das redes neurais implicadas nestes juízos será levada a cabo mediante magnetoencefalografía (MEG) e ressonância magnética funcional (fMRI), com o fim de estabelecer com a suficiente precisão os padrões temporais e espaciais. O projeto está relacionado com outros dois anteriores: um do triênio 2000-2003 em que se estudaram algumas chaves evolutivas da linguagem e dos juízos morais e estéticos, e outro obtido em 2003 dirigido a analisar com maior precisão a ativação cerebral durante os juízos estéticos (Cela-Conde et al, 2004). Neste projeto se abordará agora a análise dos circuitos cerebrais ativados em tarefas de juízos morais, centrando-nos especialmente nos de natureza ético-jurídica e introduzindo a experiência profissional dos magistrados como possível fonte de diferenças.

A idéia central é a de que os experimentos propostos permitam, em primeiro lugar, conhecer que circuitos neurais intervêm no processo de juízos, tanto jurídicos como unicamente morais, tanto nos casos fáceis como difíceis, tudo isso em participantes sem transtornos clinicamente diagnosticados. Realizaremos, assim, uma localização que permita não somente estabelecer as pautas espaciais senão também sua distribuição temporal, de enorme importância à hora de entender as funções cognitivas (Bartels & Zeki, 2004). Em segundo lugar, caberia entender em que medida os profissionais da magistratura utilizam os mesmos processos cognitivos de juízo que os cidadãos sem responsabilidades judiciais.

Também permitirá definir se no ato de julgar (especialmente os denominados “casos difíceis”) as respostas aos dilemas  por parte dos distintos sujeitos implicados no experimento variam de maneira substancial, muito particularmente no que se refere aos juízos  e  às atividades levadas a cabo por magistrados pertencentes a um Tribunal (2º. Grau de jurisdição) e por juízes que exercem a atividade jurisdicional em primeiro grau de jurisdição (1ª. Instância). Nesse sentido, parece razoável supor que, no primeiro caso (de juízes pertencentes a um Tribunal), os correlatos neurais ativados no ato de julgar sejam os mesmo encontrados no dilema tipo trolley (que implica, no modelo de Greene, uma maior distância pessoal para quem julga a ação), em que os magistrados, situados em uma posição distante das partes e dos fatos concretos, intervêm de forma não arbitrária e impessoal nos planos de vida dos indivíduos envolvidos na demanda.

Por outro lado, já agora no caso de juízes de 1ª. Instância, os correlatos neurais ativados no ato de julgar podem vir a ser os mesmos encontrados no dilema tipo footbridge (que implica, no modelo de Greene, uma maior proximidade pessoal com os interesses contrapostos), uma vez que, por se encontrarem em contato mais direto com as partes e os fatos concretos, a forma de intervenção não arbitrária implique um  juízo pessoal no ato de intervir nos planos de vida dos indivíduos envolvidos na demanda. Tudo isso pese à obviedade de que o resultado final de ambos os casos é o mesmo: aplicar o direito a um caso concreto, intervindo por via institucional nos planos de vida das pessoas envolvidas em um determinado conflito de interesses.

 Por fim , nos permitirá identificar o papel que joga a racionalidade e a emotividade no ato de julgar para, a partir daí, elaborar o desenho de um modelo metodológico mais adequado para a tarefa  de interpretar e aplicar o direito positivo.

Assim que parece fora de dúvidas o fato de que as investigações em neurociência cognitiva da moral, e muito particularmente do juízo normativo no direito e na justiça, podem vir a fornecer uma enorme e rica contribuição para a compreensão em detalhe do funcionamento interno do cérebro humano no ato de julgar – de formular juízos morais acerca do justo e do injusto. A neurociência pode subministrar as evidências necessárias sobre a natureza das zonas cerebrais ativadas e dos estímulos cerebrais implicados no processo de decidir, sobre o grau de envolvimento pessoal dos julgadores e os condicionantes culturais em cada caso concreto, assim como sobre os limites da racionalidade e o grau de influência das emoções e dos sentimentos humanos na formulação e concepção acerca da “melhor decisão”.

Estas são algumas das muitas formas por meio da qual a neurociência, quanto às emoções imperfeitas e aos fatores de irracionalidade que realmente sentimos e experimentamos na tarefa de julgar,  pode trazer maior contribuição para o desenho e a elaboração de “decisões justas” do que a ilusão sobre a racionalidade ou emoções ideais que gostaríamos que os operadores jurídicos tivessem no processo de tomada de decisão.

 Sem olvidarmos, claro está, de outros aspectos distintivos da natureza do comportamento humano à hora de decidir sobre o sentido da justiça concreta e a existência de universais morais determinados pela natureza biológica de nossa arquitetura cognitiva (neural). Afinal é o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, o que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas sobre direitos, deveres, justiça e moralidade.

Referências :

Bartels, A. and Zeki, S. (2004). Functional brain mapping during free viewing of natural scenes. Human Brain Mapping 21(2):75-83.

__ (2004). The chronoarchitecture of the human brain – natural viewing conditions reveal a time-based anatomy of he brain. NeuroImage , Vol. 22(1), p. 419-433. 

Cela-Conde, C. J., Marty, G., Maestu, F., Ortiz, T., Munar, E., Fernandez, A., Roca, M., Rossello, J., & Quesney, F. (2004). Activation of the prefrontal cortex in the human visual aesthetic perception. Proceedings of the National Academy of Science, 0401427101.

Goodenough,O. & Prehn, K. (2005). Un modello neurocientífico del giudizzo normativo del diritto e nella giustizia, In  i-lex Scienze Giuridiche,Scienze Cognitive e Intelligenza Artificiale, Revista quadrimestrale on-line: www.i-lex.it, Gennaio, numero 2.

Greene, J. et alii (2001). An fMRI investigation of emocional engagement in moral judgement . Science,293: 2105-2108.

Greene, J. et alii (2002). How (and there) does moral judgement work?.Trends in Cognitive Sciences, 6 (12):517-523.

Mool, J. et alii (2002). Functional networks in emotional moral and nonmoral social judgements. NeuroImage,16: 696-703.

Mool, J. et alii (2003). Morals and the human brain: a working model, NeuroReport,14(3): 299-305.

Mool, J. et alii (2002). The neural correlates of moral sensitivity: A fMRI investigation of  basic and moral emotions. The Journal of Neuroscience,22(7): 2730-2736.

Tobias, P.V. (1997). Orígenes evolutivos de la lengua hablada. In C.J.C. Conde, R.G. Lombardo, & J.M. Contreras (Eds.), Senderos de la evolución humana (pp. 35-52).México:Ludus Vitalis, número especial 1.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa..Mente, cérebro e Direito. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 162. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/etica-e-filosofia/1007/mente-cerebro-direito. Acesso em 23 jan. 2006.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.