A questão da interpretação jurídica parece estar no centro da teoria jurídica. As razões são, creio, bastante óbvias. Uma delas reside no caráter genérico e altamente indeterminado que se reconhece às normas jurídicas (regras e princípios) que necessitam concreção para tornar-se direito efetivamente operativo e, portanto, incompatíveis com uma leitura e aplicação unívoca. A outra razão deriva da peculiaridade que têm as normas jurídicas no sentido de que trazem sempre implícita uma iniludível presença de critérios não-lógicos e de fatores que introduzem elementos de irracionalidade (valores, ideologias, prejuízos, etc.) que se invocam com uma alta carga emotiva e que, por essa razão, exigem uma tarefa que pode considerar-se propriamente como construtiva, criativa em certa medida, embora não como absolutamente livre ou desprovida de vínculos para o julgador.

À diferença das teorias tradicionais acerca da interpretação jurídica, portanto, hoje se reconhece e se inclui como fator determinante do discurso prático normativo a importância dos elementos valorativos e dos resíduos de irracionalidade no constitutivo procedimento de individualização do direito. Seu ponto fundamental consiste precisamente em reconstruir o procedimento através do qual o sujeito-intérprete chega a fazer viver a norma em relaçao com a vida, isto é, para fundamentar de tal modo, racionalmente, o âmbito prático da decisão materialmente justa.

 A interpretação apresenta sempre uma maior complexidade que a pretensa virtude taumatúrgica do legislador da irredutível claridade de sua obra, do dogma da racionalidade imanente da norma, da identificação do direito com a lei (concebida por sua vez como expressão da vontade geral) e da doutrina da separação de poderes. Ela deixa de ser um pressuposto e indiscutido algoritmo metódico ou uma técnica a que normalmente se pode recorrer, para ser um ato (uma tarefa, uma praxis social) metodológico que se problematiza na busca do “melhor resultado” (em termos comparativos e não superlativo) resultante da dinâmica de sua própria realização a cada caso concreto individual e reafirmando a sua inserção como instrumento formador e conformador do sistema jurídico.

Nestes termos, pode-se dizer que o pensamento jurídico acabou por recuperar o “concreto”, que vai à essencial vocação do direito, depois que o positivismo jurídico e legalista, fechado em seu normativismo analítico-dedutivo, pôde pensar que ajuizava e decidia juridicamente limitando-se a interpretar/conhecer a lei e o seu sistema. É como se somente agora estivéssemos em condições de entender verdadeiramente as palavras de Ihering: “O direito existe para se realizar. A realização é a vida e a verdade do direito; ela é o próprio direito. O que não passa à realidade, o que não existe senão nas leis e sobre o papel, não é mais do que um fantasma de direito, não são senão palavras. Ao contrário, o que se realiza como direito é o direito(...)”.

Não parece difícil entrever neste novo panorama teórico e metodológico da interpretação jurídica a importância do paradigma aristotélico da phrónesis (recuperado por Gadamer) como modelo da racionalidade jurídica e indispensável para aplicar a idéia do justo em situações de incerteza e conflito, ou seja, de tragédia estrutural da ação humana. De fato Gadamer (1997 e 2000), ao tratar da “atualidade hermenêutica de Aristóteles” a propósito da “recuperação do problema hermenêutico fundamental” (o da “aplicação”), busca na noção aristotélica de “phronesis” – que Aristóteles analisa no livro VI da Ética a Nicômaco – a elucidação da tese hermenêutica fundamental de que toda a compreensão coenvolve sempre e em todo momento aplicação (naturalmente que Gadamer reconhece que Aristóteles não se ocupa aí do problema hermenêutico, mas da avaliação do papel que a razão desempenha na ação moral).

E porque, por definição, um enunciado normativo não pode, por si mesmo, oferecer uma resposta unívoca às demandas objeto de controvérsia (já que a vida produz, em realidade, muito mais problemas jurídicos que os que ao legislador foi possível prever), aqui entra em cena, com toda evidência, o caráter razoável – no sentido dado por Aristóteles no Livro III da Ética a Nicômaco – do direito: razoável há de ser a conexão entre a norma e as exigências contingentes do caso; razoável, a valoração e a eleição entre as diferentes alternativas que tem que realizar o intérprete no jogo combinado de passos lógicos e de avaliações em que consiste seu procedimento. Razoável, por último – inclusive no sentido de uma argumentação que contenha “boas razões” para que a decisão seja admitida –, tem que ser a justificação judicial das eleições em que se fundamenta a decisão, a qual, nesta condição, não somente deve viabilizar um efetivo equilíbrio entre exigências contrapostas como, e muito particularmente, lograr uma  maior aceitabilidade e consenso por parte da comunidade na qual se insere.

 Nesse sentido, determinados critérios de razoabilidade do sistema jurídico, do ordenamento normativo e de suas partes, e do conjunto de ações a que se refere o direito não podem senão intervir como princípios ordenadores da argumentação jurídica, tanto no momento da decisão como no de sua justificação. É algo profundamente arraigado na idéia mesma de administração da justiça que a jurisdição transforme razoavelmente as normas em decisões equilibradas e adequadas ao caso decidendo. O mesmo princípio fundamental do “livre convencimento” do juiz, se não pretende terminar em arbítrio subjetivo do intérprete, tem que submeter-se às regras de razoabilidade e ao peso de uma adequada motivação.

Por ele, a razoabilidade se converte, ao mesmo tempo, em requisito subjetivo do juiz-intérprete e requisito objetivo do direito. Portanto, entre as distintas formas da razão há uma especificamente pertinente às operações dos operadores do direito, e essa forma específica está representada precisamente pela prudente razoabilidade: pelo fato de mover-se no campo prático, esta não pode fundar-se em uma necessidade lógica ou empírica estreita, senão em prudentes valorações argumentativas. A pretensão normativa dos textos jurídicos não se dirige tanto a uma compreensão – correta, reflexiva e que seja um fim em si mesmo – do texto enquanto tal, senão mais bem a um atuar justo ou correto. No âmbito do direito, a compreensão do texto se configura como um verdadeiro “atuar prático”.

Em resumo, a razoabilidade é a capacidade de medir-se  com direitos e expectativas sociais governando a incerteza e a probabilidade próprias do mundo da razão prática, mantendo firmes, sem embargo, os  fins da tendencial racionalidade do proceder interpretativo, assim como as normas, os princípios e os valores que correspondem à vida comunitária[2].

Por outro lado, e em que pese ter esta coordenação na Ética o ponto de vista de um “agir correto” – enquanto no discurso jurídico (pelo menos nos sistemas jurídicos modernos, dotados de forte grau de institucionalização) ao problema do “agir correto” adere-se mais bem um agir ou atuar “conforme” (aos dados do “sistema”) –, Gadamer, ao explorar a idéia de “phrónesis”, coloca-se no terreno do neo-aristotelismo e compreende o juízo prático como um mero juízo de “contextualização”, de “assimilação” entre pauta geral e situação, quer dizer, como realizando uma applicatio – ou seja, procedendo à clarificação e concretização de conteúdos normativos pré-dados.

Pois bem , muito embora a phrónesis seja um conceito essencial da ética socrática, não deixa de ser certo que Platão e Aristóteles têm importantes diferenças a respeito do mesmo: Platão lhe dá uma dignidade epistemológico-moral equivalente à sophía, enquanto que Aristóteles restaura o uso cotidiano de “phrónesis” na língua grega, “degradando” o conceito até convertê-lo em sabedoria prático-concreta.

Um phrónimos, de acordo com esta interpretação, seria um indivíduo que, ainda sem estar em possessão da sabedoria (sophía) necessária para conhecer-se a si próprio e conseguir a enkratéia pelo mero recurso à autognose, sim teria ao menos o suficiente discernimento prático-concreto como para re-conhecer sua própria debilidade e ignorância e buscar-se um amarre externo e guarnecer-se conscientemente ao abrigo da tradição. Essa é a maneira como a filosofia moderna e a teoria do direito tendem a interpretar a phrónesis aristotélica: como mera prudentia mundana.

Mas resulta inverossímil que essa reconstrução conceitual faça justiça a linhagem socrático do Estagirita: na versão aristotélica, somente o enkratés , a  pessoa que logra impor-se a si própria suas metapreferências , a pessoa que, sendo amiga de si mesma, não se contradiz no silogismo prático e que é capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores , possui phrónesis,  prudência, sabedoria moral prática, conhecimento concreto de si e de sua circunstância.

Por outro lado, para Aristóteles – e isto marca outra diferença com relação ao pensamento platônico da felicidade do homem virtuoso em qualquer circunstância -, ser enkratés  é uma condição necessária para ser livre , feliz e prudente , mas não suficiente. O bom controle sobre si mesmo, o ser sábio e senhor de si mesmo (precisamente para satisfazer o imperativo do oráculo, por se conhecer a si próprio), a “força interior” (uma possível tradução de  enkratéia) ou a liberdade respeito dos próprios impulsos, em uma palavra : a capacidade de superar os obstáculos internos, é imprescindível para ser prudente, feliz e livre (no sentido de que nenhum obstáculo interno frusta sua vontade) , mas também o é um entorno que não levante diques externos à realização da firme vontade do enkratés (palavra que designava em grego coloquial a quem tinha poder ou capacidade de uma firme e virtuosa disposição sobre algo).

 Assim que se é certo que na doutrina da “phrónesis” se dá a coordenação de um geral e de um particular (tal como na hermenêutica, e daí o papel central da “applicatio” e o “caráter exemplar” da hermenêutica jurídica, onde se coordena norma  situação) , não menos correta e fundamental é a constatação de que a prudência, por ser uma virtude – uma disposição ou capacidade, acompanhada da razão, de atuar na esfera do que é bom ou mal para o ser humano –, pressupõe  a  enkratéia.  

 E entendida assim, a prudência no ato de julgar exige, antes de tudo, um juiz enkrático que, por dizê-lo com o apóstolo dos gentiles, conhece-se muito bem a si mesmo, que entende o que faz e faz o que verdadeiramente lhe parece virtuoso e justo; isto é, de um juiz que, afrontando de forma virtuosa os adversos retos racionais, os problemas emocionais, os fatores ou resíduos de irracionalidade e as eventuais constrições informativas exteriores desenhadas para perturbar a realização de suas firmes convicções, desejos e juízos,  não ceda ante nenhuma outra coisa senão somente ante a força da virtude moral e da sensatez.

Em outras palavras, mais  simples,  de um juiz cuja atividade deve estar permeada pela virtuosa pretensão de que suas decisões sejam moralmente corretas e justas[3]; a ela (atividade) corresponde a intenção e o dever moral e jurídico de decidir corretamente , de que embora necessário, não é suficiente para resolver um problema jurídico a simples amostra ou demostração de uma  prudentia mundada ou o acomodado recurso à determinados artifícios legais e/ou metodológicos. A prudência do juiz não é outra coisa que a manifestação de sua dignidade e de seu caráter virtuoso , comprometido que deve estar, eticamente, com o desenho de um modelo sócio-institucional livre, justo e solidário que permita a cada cidadão, frente a qualquer interesse espúrio do Estado ou de qualquer outro agente social, viver com o outro na busca de uma humanidade comum.

Depois, talvez seja útil  recordar que no processo de realização do direito se apresenta ainda ao operador do direito um importante problema de responsabilidade ao garantir ou, melhor dito, ao estabelecer, a coerência intrínseca do sistema jurídico. Ao magistrado se lhe confia a tarefa específica de combater ou ao menos minimizar a contraditoriedade intrínsica  do sistema jurídico, particularmente a de reconstruir e contextualizar a hierarquia dos valores e princípios constitucionais, que não se pode considerar como dada e adquirida de uma vez por todas. O sentido de uma norma jurídica se converte, por meio do sujeito-intérprete, em expressão de relações mantidas  com a prática, de uma capacidade de relação com os dados extralinguísticos e com o contexto de experiência[4], que em cada novo caso tem que ser renovada e dinâmicamente reconstruída , mas sempre com o fim de compor em um todo coerente normas, princípios e valores diferentes e, portanto, de detectar, de forma prudente e responsável, na pluralidade de hipóteses interpretativas e soluções alternativas possíveis, a solução legítima, mais satisfatória e com  maior capacidade de consenso.

Daí que, por onde se vê, porque julgar exige um transitar em um espaço de jogo entre vínculo (limites) e liberdade (discricionaridade) , um singular entendimento dos indivíduos (do conjunto de suas crenças, desejos e ações) e das coisas do mundo, bom senso e, acima de tudo, caráter virtuoso, não resulta, definitivamente,  nada fácil “ser prudente” na tarefa de interpretar e aplicar o direito de forma racional e razoável,  enfim, justa.

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Notas:

 

 

[2] Neste âmbito pode situar-se, na linha de Ricoeur, a relação, dentro do direito, entre a argumentação, na qual predomina fundamentalmente a lógica do provável, da capacidade  organizadora da razão, e a interpretação, na qual prevalece a força inovadora  da imaginação na produção mesma dos argumentos. Quando o juiz, concluindo o procedimento judicial, toma uma decisão, a “correção” e a “responsabilidade” de seu comportamento resultam de uma mediação incessante entre os dois polos: o da argumentação lógica e o da invenção interpretativa. O primeiro assume de maneira predominante a função da justificação racional; o segundo, a da busca do significado. A  identidade mesma do sujeito-intérprete se encontra então no cruzamento entre “trama lógica e trama inventiva”.Em resumo, argumentar significa  invocar razões para justificar enfoques de interpretação  e decisões jurídicas: argumentação e interpretação configuram operações e dimensões diferentes, mas que se entrelaçam e se conectam reciprocamente, demonstrando  sua fundamental finitude, e estão portanto “condenadas” a ser complementárias, a estar incorporadas uma na outra.

[3] A dimensão jurídica remete à dimensão moral, que por sua vez remete a uma dimensão antropológica: do  sujeito de direito que se caracteriza por sua relação dialógica com os demais, mais concretamente na idéia de um ser humano desenhado para a cooperação, o diálogo e a argumentação e que, em seu "existir com" e situado em um determinado horizonte histórico-existencial,  reclama continuamente aos outros, cuja alteridade interioriza, que justifiquem a legitimidade de suas eleições  aportando as razões que as subjacem e as motivam. Nesse sentido, a instituição judicial com seus objetivos a longo prazo – contribuir para a paz social e fortalecer a sociedade como uma empresa comum de cooperação – e a curto prazo – por termo ao conflito com a decisão – institucionaliza, encarnando-a no juiz – que é a condição institucional da imparcialidade do juízo  e a quem cabe  pronunciar   “ a última palavra” respeito dessa estrutura fundamental da existência humana que é o conflito –, a relação com o outro e a dimensão dialógica da experiência ética em que se expressa a aspiração de viver sob o manto de instituições justas. 

[4] A norma não pode prescindir do caso concreto, que a enriquece e lhe dá maior determinação. Isto significa descentralizar o núcleo da análise  de um direito concebido como algo precedentemente constituído e já dado ao sujeito que deve redeterminar e descobrir o direito, quer dizer, o sujeito que através de seus argumentos há de convencer a um auditório. A norma não pode conhecer-se senão em situações particulares, desenvolvida e precisada pela riqueza inesgotável dos fatos: por isso as teses  de Alexy sobre a formalidade e a índole processual do procedimento de justificação, que formaliza e submete a normas  o discurso prático, sem dúvida perseguem o intento, em si louvável e digno de mérito, de garantir a correção da argumentação jurídica, mas ao mesmo tempo correm o risco de resultar incompletas e abstratas por não ter em conta a concretiização aplicativa das normas.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly..Prudência e interpretação jurídica. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 164. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/etica-e-filosofia/1034/prudencia-interpretacao-juridica. Acesso em 7 fev. 2006.

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