Um trabalho realmente satisfatório sobre a natureza humana somente poderia ser escrito dentro de alguns (talvez cem) anos, quando aprendamos a conhecer muito melhor que agora as funções de nossos genes e o funcionamento de nosso cérebro. Mas  o autor, e suponho que a grande maioria dos leitores, não podem esperar tanto -  ademais, trata-se de um tema com o qual o tempo me tem consubstanciado[1].

Sem embargo, o desenho da natureza humana que está aparecendo aponta já algumas pistas dignas de menção, convertendo em viável a proposta (e inclusive a exigência) de novos critérios para que os setores do conhecimento no direito sejam revisados à luz dos estudos e investigações provenientes da ciência cognitiva, da neurociência cognitiva, da genética do comportamento , da primatologia , da psicologia evolucionista, entre outras que buscam entender em que consiste  nossa natureza. Esse conjunto de ciências “ponte” nos ensinam que o comportamento humano (individual, moral e social) se origina a partir da intercessão de nosso sofisticado programa ontogenético cognitivo com o entorno sócio-cultural em que movemos nossa existência.

Ensinam também que determinadas representações culturais devem ser  vistas  como algo que se sustenta em mecanismos próprios de nossa arquitetura cognitiva inata  e que a programação e o funcionamento desses mecanismos regulam de que modo as representações específicas se transmitem de um indivíduo a outro, distribuindo-se  elas mesmas  na  comunidade  em  resposta  a  condições  sociais  e  ecológicas distintas. Em uma palavra: de que é a mente humana (as bases neuronais) a que impõe restrições cognitivas significativas para a percepção , transmissão e armazenamento discriminatório de representações culturais.

A um nível mais profundo, a existência de mecanismos domínio-específicos também significa que há  uma considerável carga de conteúdo  mental humano universal, isto é, que para certas coisas há uma só  “cultura” universal . Assim : a gramática universal, a lógica do câmbio social, os (quatro) modelos elementares de vínculos sociais relacionais, o altruísmo, a cooperação , a empatia ante o sofrimento dos outros , a capacidade  e necessidade inatas para inferir o conteúdo mental  e  predizer o comportamento dos demais,  a teoria da mente, entre tantos outros.

Isso tem grande importância para a filosofia e a ciência do direito, pois, de não ser assim, de  não se encontrar restringido cognitivo-causalmente o domínio das preferências humanas ( que conforma o repertório de padrões de atividade de nosso cérebro dos quais emerge nossa conduta), se pode perfeitamente admitir a alteração da natureza humana  em qualquer sentido que se deseje e, em igual medida, negar a primeira e básica premissa da contribuição científica  de que o Homo sapiens  é uma espécie biológica cuja evolução foi  forjada pelas contingências da seleção natural  em um ambiente bioticamente rico e em condições ecológicas que levaram ao relaxamento das limitações operantes sobre as demais espécies . De que estamos dotados de  um cérebro herdado por vía do processo evolutivo, gerado para enfrentar-se a realidades tangíveis e equipado com as ferramentas  necessárias para, como um verdadeiro motor semântico, manipular os significados e  processar  as informações relevantes para resolver  os problemas adaptativos de nosso existir.

Apesar dos antecedentes institucionais e das histórias instituídas no sentido contrário,  o direito , a antropologia, a sociologia, a biologia  evolutiva , as ciências cognitivas, a psicologia evolucionista, a primatologia e a neurociência não podem  ser vistas  como disciplinas  completamente  independentes. O ponto central  para  a teoria  jurídica  é o mesmo que  para  a  teoria  psicológica :  uma descrição e compreensão do fiável desenvolvimento  da  complexa arquitetura  da  mente humana, uma coleção de  adaptações  cognitivas e emocionais .

E uma  vez que estes dispositivos para a solução  de  problemas, originados na  evolução,  são o  motor  que vincula  a mente, a linguagem , a cultura  (portanto, o direito ) e o mundo ( e os desempenhos domínio-específicos são o selo destes mecanismos), “a filosofia da linguagem não é nada mais que uma filosofia da mente : de que nenhuma teoria da linguagem pode considerar-se completa se não admite e recolhe as relações  que esta mantêm com a mente e o modo com que o significado [...] se fundamenta sobre a intencionalidade intrínseca [...] própria da mente/cérebro”(Searle,1996). Em última instância, de que os problemas que nos devem preocupar são os mesmos que tem preocupado aos filósofos através dos séculos – conhecimento, experiência, consciência e mente -, todos eles consequência do funcionamento cerebral e, por conseguinte, somente entendíveis quando o cérebro seja propriamente compreendido. Somente através do conhecimento da mente, do cérebro e da natureza humana que os filósofos e cientistas sociais  do futuro podem ter  a esperança de fazer uma contribuição significativa à compreensão do ser humano e da cultura por ele produzida. (Zeki, 1993)[2].

Daí a extrema relevância de se atentar ao fato de  que a cultura surgiu da natureza humana e leva sempre seu selo. E embora com a invenção da metáfora e do novo significado, a cultura tenha adquirido, ao mesmo tempo, uma “vida própria”, não é possível compreendê-la sem compreender a complexidade de nossa mente : neste particular, de que o cérebro não é uma estrutura unificada; de que se compõe de vários módulos ou domínios específicos que fazem seus cálculos por separado, nas chamadas redes neuronais que enlaçam zonas diversas do cérebro.

Para entender a condição humana – e o direito é parte dessa condição e a sua idéia (idéia de direito) é o resultado da idéia do homem – há de compreender ao mesmo tempo  genes,  mente, cérebro e cultura, e não por separado a maneira tradicional da ciência e as humanidades. E se o direito, enquanto artefato cultural, é originalmente constituído pela polaridade natureza /cultura, parece razoável supor que à medida em que a psicologia evolucionista, a biologia evolutiva, a ciência cognitiva, a genética do comportamento, a primatologia e a neurociência cognitiva permitem um entendimento cada vez mais sofisticado do cérebro e da mente humana , as possíveis implicações  morais , jurídicas e sociais destes avanços no conhecimento da natureza humana e de nosso sofisticado programa ontogenético cognitivo deveriam começar  a  ser seriamente  considerados pelos estudiosos do direito sob uma ótica muito mais empírica e respeitosa com os métodos científicos.

Com efeito, ao reconhecermos que o direito não é mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa – cada vez mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente  - empregada para articular argumentativamente  -  de fato, nem sempre com justiça - , por meio de atos que são qualificados como “valiosos” , os vínculos sociais relacionais  elementares através dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e estrutura social,  nos situamos no elenco de autores segundo os quais qualquer teoria social normativa (ou jurídica) que pretenda ser digna de crédito na atualidade deve sustentar-se em um modelo darwiniano sensato acerca da natureza humana.

Essa a razão pela qual sustentamos não ser mais lícito e possível  adquirir uma perspectiva equilibrada do direito estudando as disciplinas a retalhos, senão através da busca de uma  “concilience” (literalmente, “juntar-se de um salto”) verticalmente integrada – ainda que tentada -  entre elas[3]. Por certo que isso é algo que não tende a despertar muitas simpatias intelectuais entre os dogmáticos, os pós-modernos e os construtivistas . Apesar das  abrumadoras provas acerca da existência de uma natureza humana e de uma realidade independente de causas sociais, seguem em suas crenças defendendo seus postulados auto-refutatórios.

O relativismo cultural ( cuja expansão tem sido tão formidável nos últimos anos que inclusive ocupa já um lugar inquietante no mundo acadêmico),  o construtivismo social ( que vem povoando  tantas mentes precisamente quiçá por sua inconsistência lógica e sua demonstrada falsidade) e, enfim , o dogmatismo jurídico e o isolamento endêmico das ciências sociais normativas deveriam fazer-nos reflexionar vivamente sobre o ponto de corrupção ao que estas chegaram[4].

Parece haver chegado o momento de aceitar que o direito não só não teve consciência de sua autarquia intelectual, senão que teve um êxito relativo como ciência e até mesmo enquanto “arte”. De fato, até hoje o direito segue à deriva, com sua enorme massa de observações e construções  mal digeridas, com um considerável corpo de generalizações normativas e com um mais que considerável número de  teorias de nível médio entrelaçadas  que se expressam  em léxicos (técnicos ou não) abstratos, imensuráveis  e  babélicos.

A desconexão com o resto da ciência  deixou um ( e continua agravando o) imenso abismo no pensamento organizado sobre o mundo, fomentando, ademais, teorias e concepções  jurídicas  construídas  a partir  do mais  displicente  descaso  pelos estímulos (cognitivos, neuronais, morais e emocionais)  que procedem da  admirável e ainda desconhecida natureza humana.

 Como tenho insistido ao longo dos trabalhos que escrevo sobre este tema ( e não se trata tanto de me repetir, mas sobretudo de permanecer na minha identidade), a concepção  desagregadora  da  Ciência  é  desatinada,  já que  os  valores, os princípios, as normas - enfim, as fontes jurídicas - e os acontecimentos do social – os vínculos sociais relacionais-  descansam  no, ou são constringidos  e condicionados  pelo, natural.

 E  em que pese o fato de que a tendência para a separação entre a cultura e a natureza  tem levado, todavia,  a que se absolutizem alguns desses valores ( desligando-os das suas origens e das razões específicas que os viram nascer e apresentando-os  como  de  essência espiritual, como uma transcendência que ultrapassa o próprio homem ),   a ética e o direito parecem ter uma base mais segura quando relacionados a uma visão biologicamente vinculada à nossa arquitetura cognitiva, isto é, à natureza humana unificada e fundamentada na herança. O sentido da moral e da justiça não é antitético da natureza humana, senão que forma uma parte integrada da mesma[5].

Uma compreensão mais comprometida com as causas últimas, radicadas em nossa natureza, do comportamento moral e jurídico humano, pode ser muito importante para reconstruir os melhores e mais profundos pensamentos humanos sobre o direito, potencialmente unificada do lugar que ocupamos na natureza. Afinal, estabelecer  princípios e preceitos normativos que não têm nada que ver com a natureza humana é o mesmo que condená-los ao fracasso. É possível, por que não dizer, que a maior parte das propostas de fundamentação teórica e metodológica do direito que já se formularam  ao longo da história pequem por sua inviabilidade em função dessa desatenção com relação a realidade biológica que nos constitui , ou seja, pela falta de precisão de sua adesão à natureza humana.

Há que se considerar a circunstância de que os próprios enunciados normativos – dos valores éticos aos direitos humanos – surgiram graças a natureza de nossa complicada arquitetura cognitiva e a inerente sociabilidade que caracteriza nossa espécie, submetidas que estão, por sua vez, às leis da evolução através da seleção natural e a inevitável interferência da cultura. Esses valores pertencem aos códigos da espécie humana  como um todo, uma consequência peculiar de nossa própria  humanidade que, por sua vez, “constitui o fundamento de toda a unidade cultural”.

Assim entendido, dir-se-á que os limites entre  “o direito que é”  e  “o direito que deve ser” - distinção de que se alimentava ( e se alimenta)o positivismo jurídico e o jusnaturalismo, e que estava ( e ainda está) na base da tradicional teoria da interpretação jurídica – diluem-se, pois que é em um  “dever ser” assumido como resultado de uma estratégia sócio-adaptativa e como produto de um processo material de mentes  funcionalmente integradas, que o direito positivo acaba por ter o critério decisivo da sua realização prático-concreta. Isto é, do conjunto de mecanismos necessários (fundamentantes, conformadores e constituintes)  a partir dos quais os operadores jurídicos podem  articular e combinar, de forma adequada , historicamente contextualizada e com vistas à efetiva proteção do indivíduo, os (quatro) modelos elementares por meio dos quais os homens constroem estilos aprovados de interação e de estrutura social [6].

É que ao contrário do que ainda pretendem ou sustentam alguns doutrinadores, o direito estatal, a pesar de seu envoltório teórico e dogmático, não é nada mais que o resultado de uma atividade humana tão antiga como o próprio homem. O que ocorre é que, quanto menos capaz de satisfazer as necessidades adaptativas humano-comunitárias, tanto mais sofisticado se apresenta o direito positivo “parido” e manipulado pelo poder estatal. À normatividade jurídica espúria e/ou abusiva corresponde sempre a parafernália barroca que intenta, em vão, obscurecer sua iniludível dimensão de  constructo humano-cultural, institucional e procedimental em benefício exclusivo da dimensão dogmática e normativa (de autoridade e de poder).

Decerto que tal perspectiva, nomeadamente no âmbito do jurídico e muito especialmente da atividade hermenêutica, pode parecer odiosa e detestável ao mais empedernido dos dogmáticos. Mas como nenhum dogma é derrubado sem resistência, estamos firmemente convencidos de que a iniludível dificuldade inicial poderá ser superada  pelo papel que nesse drama dialético , circular , problemático, humano e dialógico venha a assumir o operador jurídico como mediador  na , e  para  a,  comunidade da idéia do direito – isto é, da idéia da personalidade do homem, da natureza humana , e que constitui a própria essência do direito.

Contudo, será igualmente importante que esses operadores tenham cuidado à hora de expressar tal idéia, evitando a assunção de que os genes prescrevem o comportamento humano de uma maneira simples, de um sobre o outro[7]. Oxalá fossem as coisas tão simples. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também quem pensa que a natureza é tudo esquece que, a esta altura da história, o conceito de natureza resulta muito complicado, porque os humanos somos não somente o resultado de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada realidade sócio-cultural. Depois, não é definitivamente certo que um maior e melhor conhecimento da natureza humana, por si só, nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna.

O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. A ciência cognitiva, a neurociência cognitiva, a primatologia, a genética do comportamento e a psicologia evolucionista  nos ajudarão a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo. Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, estas ciências talvez possam levar-nos a entender melhor que a busca de um adequado critério ontológico e metodológico para a compreensão e a realização do direito pode considerar-se, antes de tudo, como a arqueologia de uma ponte entre  natureza e  cultura, em forma de uma explicação científica da mente , do cérebro e da natureza humana.

 Estamos longe ainda de contar com uma definição precisa acerca da “natureza humana”, mas parece que vamos trilhando um bom caminho para começar e fazê-lo e a compreendê-la. E embora ainda não saibamos grande coisa acerca de nossa natureza, do  funcionamento de nosso cérebro, e muito particularmente dos correlatos cerebrais que ditam o sentido da moral e da justiça, converter esse mar de especulações em certeza é decerto a tarefa que se espera da ciência , no preciso sentido de que uma compreensão mais profunda das causas últimas (radicadas em nossa natureza) do comportamento moral e jurídico humano poderá vir a ser de grande utilidade  para averiguar quais são os limites e as condições de possibilidade  do direito e da justiça no contexto das sociedades contemporâneas.

Essa a ventura que correrá qualquer um que aspire a entender  melhor  o fenômeno jurídico  e que se atreva a rastrear caminhos ainda pouco trilhados , em todo o momento sem  perder de vista a necessidade e o compromisso ético de desenhar um ambiente normativo e  institucional o mais amigável possível para com os direitos ( e os deveres ) que habilitam publicamente a  existência do indivíduo como cidadão em um mundo desinteressado, já não mais visto como criado por Deus e no qual o direito está destinado a servir a natureza humana e não o contrário. Afinal, como já  disse em outro lugar, a inumanidade do direito é infinitamente mais indesejável que a ausência de todo direito.

Notas:

 

 

[1] Nas palavras de Pinker (2002), todo mundo tem uma teoria sobre a natureza humana. Todos temos de prever o comportamento dos demais, o qual significa que todos necessitamos umas teorias sobre o que é o que move às pessoas a adotar determinadas condutas. Uma teoria tácita da natureza humana –  segundo a qual o comportamento é causado por pensamentos e emoções dos causantes da conduta- é ínsita ao modo como concebemos a pessoa. Damos corpo a esta teoria analisando nossa mente e supondo que nossos semelhantes são como nós, assim como observando o comportamento das pessoas e formulando generalizações. Ademais, também absorvemos outras idéias de nosso ambiente intelectual: da experiência dos expertos e da sabedoria  convencional do momento. Nossa teoria sobre a natureza humana é a fonte de grande parte do que ocorre em nossa vida. A ela nos remitimos quando queremos convencer ou ameaçar, informar ou enganar. Aconselha-nos sobre como manter vivo nosso matrimônio, educar aos filhos e controlar nossa própria conduta. Seus supostos sobre a aprendizagem condicionam nossa política educativa; seus supostos sobre a motivação dirigem as políticas sobre economia, justiça e delinquência. E dado que delimita aquilo que as pessoas podem alcançar facilmente , aquilo que podem conseguir somente com sacrifício ou sofrimento, e aquilo que não podem obter de modo algum, afeta a nossos valores: aquilo pelo que pensamos  que podemos lutar razoavelmente como indivíduos e como sociedade. As teorias opostas da natureza humana se entrelaçam em diferentes maneiras de viver e em diferentes sistemas políticos, e tem sido causa de grandes conflitos ao longo da história. Para uma introdução histórica acerca das concepções da natureza humana, a importância da idéia de natureza humana para o indivíduo e a forma como afeta de maneira profunda o tipo de sociedade  em que vivemos e em que nos gostaria viver, cfr.: Trigg, 2001 , Stevenson e Haberman, 1998.

[2] Entender melhor o funcionamento de nosso cérebro é uma assinatura pendente no caminho até a compreensão da natureza humana. Por isso, como dizia Cajal,  enquanto o cérebro seja um mistério, o Universo inteiro seguirá sendo um mistério.

[3] Trato de defender, ao longo de meus trabalhos, um modelo vertical de integração conceitual entre as ciências do comportamento, como justificativa  para o emprego da ciência cognitiva, da neurociência cognitiva, da genética do comportamento, da primatologia e da psicologia evolucionista no contexto de uma teoria acerca das bases ontológicas ( e metodológicas) do fenômeno jurídico. A idéia básica consiste em  propor que várias disciplinas contidas nas ciências sociais e do comportamento tornem-se mutuamente coerentes e compatíveis com o que é conhecido nas ciências naturais, ou seja, uma explicação verticalmente integrada dos fenômenos. Nas palavras de Jerome Barkow , essas explicações (“verticalmente integradas”) que, em ciências humanas, são simultaneamente cruciais e raras, querem significar que o que é exigido é sempre um leque de explicações que se complementem nos diversos níveis de análise  e que sejam todas mutuamente compatíveis. Nesse sentido, coloca-se como exigência que qualquer explicação sociológica ou filosófica da ética seja compatível com as teorias  psicológicas da ética, e que estas sejam compatíveis tanto com a ciência cognitiva,  a neurociência cognitiva , a psicologia evolucionista como com a biologia da evolução. A regra da compatibilidade é geralmente aceita nas ciências naturais, mas, por ser quase desconhecida nas disciplinas sócio comportamentais, nunca é inútil insistir no seu uso. Isto se verifica sobretudo na doutrina jurídica, onde cada autor , quase que completamente alheio aos estudos que se efetuam em outros campos distintos do direito, aborda um tema comum a partir de um ponto de vista disciplinar e teórico específico, ademais de exclusivamente jurídico. A integração vertical não exige que digam todos as mesmas coisas, mas que digam coisas compatíveis entre si e com outras áreas de conhecimento, ou que, pelo menos, tornem explícitas as incompatibilidades. Depois, da mesma forma como em filosofia não se trata de estabelecer uma orientação analítica e uma orientação hermenêutica opostas entre si senão de um “ir e vir” de uma a outra mutuamente enriquecedora, o mesmo sucede na epistemologia, na qual o conhecimento hermenêutico não “se opõe ao” senão que “se compõe do” conhecimento metodológico-científico – quer dizer, é parte dele – segundo uma relação complexa (de continuidade-descontinuidade) entre ciências  humanas e ciências naturais. Assim que, sem lugar a dúvidas,  somente através de um diálogo com as chamadas ciências “duras” como a filosofia, e também as ciências humanas, lograrão elaborar uma reflexão mais fecunda sobre a verdade, a natureza humana e a ética. Registre-se, por fim, que essa postura  ou diálogo interdisciplinar pressupõe simultaneamente uma reforma das estruturas do pensamento –para usar a expressão de Edgar Morin : o verdadeiramente importante não é justapor os aportes das diversas ciências, senão o de enlaçá-los, de saber mover-se entre saberes compartimentados e uma vontade de integrá-los, de contextualizá-los ou globalizá-los. Somente outra estrutura de pensamento (porque –como alguma vez se disse - o principal órgão da visão é o pensamento, isto é, de que vemos o mundo com nossas idéias) pode permitir-nos conceber as ciências como conjunção, como implicação mútua, o que se costuma ver como disjuntiva: o ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social.

[4] Uma dilatada linha intelectual que, arrancando dos sofistas e passando por Hobbes e Nietzsche, desemboca em certa pós-modernidade pretendidamente radical sustenta que as sociedades humanas vivem permanentemente em situações extremas, e que não há possibilidade de deliberação racional de modo algum. Agora bem: aparte do presumível caráter auto-refutatório deste tipo de tese, há de dizer que argumentações dessa natureza estão, ademais, infundadas historicamente. E dito seja de passo: os inauguradores da linha de pensamento que rechaça por impossível a institucionalização da deliberação pública racional – os sofistas –  foram precisamente inimigos encarniçados do regime democrático ateniense (cfr. Ste. Croix , 1981). Depois, o relativismo cultural, histórico e jurídico parecem não resistir à idéia de que existe uma natureza humana cujo núcleo invariável constitui o fundamento de toda a unidade ético-cultural. Nas precisas palavras de Arnhart (1998) ao defender um novo direito natural darwiniano: “Eu rejeito o relativismo cultural, que afirma que a ética é uma invenção puramente cultural que varia arbitrariamente de uma cultura para outra, porque enquanto eu reconheço a importância do aprendizado social e os costumes no desenvolvimento moral, eu acredito que os desejos humanos naturais são universais e desta forma limitam a variabilidade das práticas culturais. Eu rejeito o relativismo historicista, que afirma que a ética é puramente uma invenção histórica que varia radicalmente de uma época histórica para outra, porque enquanto eu reconheço a importância das tradições históricas, eu acredito que os desejos humanos naturais constituem uma base imutável através da história humana. Eu rejeito o relativismo cético e solipsista, que afirma que não há padrões de julgamento ético, além dos impulsos de indivíduos únicos, porque enquanto eu reconheço a importância da diversidade individual, eu acredito que haja regularidade nos desejos humanos que manifestam uma natureza humana típica da espécie humana. Eu também rejeito o dogmatismo racionalista, que afirma que a ética repousa em imperativos lógicos da pura razão, porque enquanto eu reconheço a importância da razão humana em julgar quão melhor satisfazer seus desejos, eu acredito que o fundamento dos motivos da ética não é a lógica da razão abstrata, mas a satisfação de desejos naturais. E eu rejeito o dogmatismo religioso, que afirma que a ética somente pode ser fundada em leis transcendentes de um poder divino, porque enquanto eu reconheço que a ética religiosa pode reforçar a ética natural, eu acredito que a ética como fundada nos desejos naturais existe independentemente de qualquer poder divino”. Para uma análise crítica acerca da tese central do relativismo de que toda a verdade (a moral e/ou a justiça) é relativa e serviçal ( uma ilusão destinada a cobrir uma mera  “vontade de poder” , isto é , versões prevalecentes do mundo que os grupos sociais dominantes disseminam), assim como da postura adotada pelo chamado “imoralismo” – desde o debate travado entre Platão e os sofistas e muito particularmente ao imoralismo de Nietzche-, ver Foot (2001), que recupera a idéia da existência de uma estreita relação entre a felicidade e a virtude nos seres humanos e a fundamenta em uma interpretação da bondade humana como algo dependente da natureza de nossa espécie. Também contra o relativismo e o imoralismo cfr.: Atahualpa Fernandez, 2002 e 2005.

[5] E a  investigação da natureza humana é uma questão tão fática como a medida do perihélio de Mercúrio. Resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma natureza humana de um certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre esta e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da igual “dignidade” humana. Neste particular, parece oportuno observar que a própria idéia de dignidade é um conceito relativo, a qualidade de ser digno de algo. Ser digno de algo é merecer algo. Uma ação digna de aplauso é uma ação que merece o aplauso. Um amigo digno de confiança é um amigo que merece nossa confiança. Se alguém é mais alto ou gordo ou rico (ou o que seja) que outro, então merece que se registre seu record, quer dizer, é digno de figurar no Guinness World Records. O que não significa nada é a tão popular dignidade genérica, sem especificação alguma. Dizer que alguém é digno, sem mais, é deixar a frase incompleta e, em definitiva, equivale a não dizer nada. De todos modos, palavras como “dignidade”, ainda que privada de conteúdo semântico, provocam secreção de adrenalina em determinados juristas acadêmicos e proclives à retórica. De fato, resulta inclusive  muito difícil aceitar a própria noção kantiana da dignidade humana. E a razão, como se verá, consiste em que tal noção obriga a aceitar uma forma de dualismo de duvidosa cientificidade: que há um reino da liberdade humana paralelo ao reino da natureza e não determinado por ele. Depois, Kant mesmo não oferece prova alguma de que o livre arbítrio existe; se limita a dizer simplesmente que é um postulado necessário da razão prática pura sobre a natureza da moralidade. Ora, o fundamento da moral e do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Daí  que nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana , sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal. Para uma apreciação acerca do possível conteúdo da “dignidade humana”, ver Atahualpa Fernandez, 2002, 2005 e2006).

[6] Sobre a natureza e a importância desses modelos elementares para o direito (tanto em seu aspecto ontológico como metodológico) cfr. Atahualpa Fernandez, 2006.

[7] Recorde-se que a afirmação de que alguns traços da personalidade tem um componente hereditário significa que os genes influem no desenvolvimento do cérebro e dos circuitos implicados nos sistemas cerebrais, como os que regulam o temperamento e configuram as características da conduta humana complexa. Estudos recentes sobre representação cerebral põe de manifesto que um 94% do volume do cérebro é herdável. Algumas zonas do cérebro – incluídas a frontal, a sensorial motora e a temporal anterior – estão baixo controle genético, com uma região frontal média que mostra uma hereditariedade de estrutura genética sumamente determinada, de entre um 90 e um 95%. Os estudos mostram também que os padrões das circunvoluções que dão ao cérebro uma sorte de “marca dactilar” não estão tão influídos pelos genes. De modo similar, o hipocampo ( a estrutura cerebral que participa na conversão da memória a curto prazo em memória a largo prazo) está mais influído pelo entorno que pelos genes (Thompson et alii, 2002 ). Neste particular, parece que geneticistas e neurocientistas coincidem em que as zonas do cérebro que aparentemente estão mais influídas pelos genes são as mesmas que participam na inteligência e na capacidade cognitiva. Resumindo: um conjunto de  neuronas que se interconectam na vasta rede cerebral, que soltam suas descargas segundo determinados parâmetros modulados por certas substâncias químicas, controlados por uma quantidade inumerável de redes de retroalimentação: isto é um ser humano. E para que seja um ser humano completo, é preciso que todos estes sistemas funcionem adequadamente (Gazzaniga, 2005).

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa..Direito e natureza humana : para além de toda dúvida razoável. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 187. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/etica-e-filosofia/1393/direito-natureza-humana-alem-toda-duvida-razoavel. Acesso em 19 jul. 2006.

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