1 Introdução

 

Na análise dos Estados na filosofia política, é possível separar, mesmo que de forma precária, ao menos duas abordagens principais, quais sejam, a abordagem descritiva e a abordagem fundacionista do Estado. Enquanto na abordagem descritiva a teoria pretende esmiuçar a forma como que se dá o Estado histórico e concreto, a abordagem fundacionista analisa principalmente os fundamentos últimos do Estado.

Em geral, pode-se dizer que, por exemplo, Maquiavel é um pensador político que prima pela descrição do Estado concreto, enquanto que pensadores como Hobbes e Rousseau primam pela análise dos fundamentos do Estado.

A questão da soberania é crucial à filosofia política e em particular quando da análise do fundamento dos Estados, já que não é possível pensar em um Estado sem, ao mesmo tempo, pressupor um soberano que lhe faça movimentar.

O objetivo deste artigo é expor as concepções de soberania desses pensadores a partir da reconstrução sumária do caminho percorrido por eles até a formulação da ideia do Leviatã, em Hobbes, e da vontade geral, em Rousseau.

2 O Leviatã

O estado de natureza é uma construção teórica útil para pensar na sociedade sem um poder vigente sobre os homens. Ou seja, o estado de natureza não se refere ao momento histórico pré-sociedade onde os indivíduos viveriam separados e sozinhos com medo de outros homens que pudessem ameaçar suas posses e sua vida sem qualquer estrutura de poder.

Tal aparato teórico é essencial na filosofia hobbesiana, pois com ele se tornam claras a necessidade do poder e estruturação hierárquica de uma sociedade.

A natureza dispõe os homens de maneira que todos são iguais. Cada um tem alguma característica especifica que lhe diferencia, uns são mais fortes, outros ágeis ou astutos... enfim, cada um tem algo que lhe dá o mesmo poder de subjugar o outro; seja através da força ou da astúcia. Daí que todos são iguais, mas no sentido de que todos são igualmente uma ameaça para todos: qualquer um com vontade o bastante pode assassinar o mais forte dos homens.

É dessa semelhança que nasce a desconfiança que um homem tem do outro, sem lei nem instituição que proporcione segurança às pessoas estes não podem viver despreocupados, pelo contrário, vivem em uma ameaça constante de guerra. “Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são duas virtudes cardeais” (HOBBES, 2008, p.77).

Assim, se todos querem o poder e todos têm os meios para consegui-lo, é impossível viver tranquilamente, já que há uma eterna e sucessiva guerra pelo poder, donde não sai nenhum vencedor. Tal estado impede que qualquer outro aspecto da vida humana se desenvolva. Se todos só têm garantia de segurança quando sozinhos, não há como haver troca de conhecimento, ou uma cultura comum. Todas as vantagens de uma vida em sociedade são impossíveis de efetivação.

Hobbes faz uma clara distinção entre direito de natureza e a lei de natureza. O direito natural é algo que todos têm, ao nascer o homem possui o direito de se preservar; assim qualquer ato em vista da auto-preservação está de acordo com o direito natural. Já a lei natural é um preceito descoberto pela razão. Essa lei é resultado da reflexão dos homens, que percebem que a guerra de todos contra todos é algo insustentável, isso se se que viver em paz e tranquilamente, sem se preocupar em se defender constantemente de atentados contra a própria vida.

Nos capítulos XIV e XV do Livro I do Leviatã, Hobbes irá explicitar as duas primeiras leis na XIV e as outras no XV. Aqui só nos interessa as mais importantes, a primeira e segunda lei, das quais é possível derivar todas as outras. Elas são:

1- “Que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não consiga pode procurar e usar todas as ajudas e as vantagens da guerra.

2- Que todo homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo” (HOBBES, 2008, p.78).

A primeira leva todo homem a procurar a paz, dessa lei se deriva todas as outras, pois se devemos buscar a paz então há certas atitudes que temos que tomar. Aí vem a segunda lei natural, essa diz que todo homem que procura a paz, quando no meio de outros com o mesmo objetivo, deve limitar seu direito natural de fazer tudo quanto for necessário para a sua sobrevivência. Isso é preciso pois é esse direito de se preservar que autoriza alguém a matar, por exemplo.

Assim, só se os homens concordam em viver em paz e limitar seus direitos inerentes é possível haver uma vida efetivamente humana, plena de cultura. Essa limitação mútua é o contrato.

Porém há sempre alguém que quebra este acordo, e se uma só parte vai contra o contrato então ele se torna nulo, pois imediatamente os outros, para se protegerem, irão utilizar de seu direito natural. Hobbes afirma que a simples palavra não pode deter a má vontade de certas pessoas e que somente quando coagidos por um poder vigente, no caso o Estado Civil, o contrato pode ser mantido em vigor.

O homem é livre naturalmente, ou seja, não há nenhuma limitação para o seu querer e fazer. Sendo o homem seu próprio juiz, mesmo as leis naturais, que somente sugerem o que se deve fazer, não podem nos obrigar a segui-las, não há coação da parte delas e podemos violá-las sem nenhuma consequência. “Porque as leis naturais por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias as nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém” (HOBBES, 2008, p. 103).

Assim não há alternativa senão instituir esse poder coercitivo. Com as palavras de Hobbes: “A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade” (HOBBES, 2008, p. 105).

O poder soberano então é a união autorizada pelos súditos onde os integrantes do Pacto são representados por um grupo ou individuo que pode punir aqueles que desrespeitarem o contrato.

O soberano tem total autorização dos súditos para fazer o que ele julga ser necessário para manter o Pacto. Os súditos são co-autores das decisões do soberano pois eles o colocaram como representante, o autorizaram a decidir por todos, assim quem está sob a supervisão do soberano não pode desobedecê-lo. Isso se dá pois o súdito tendo autorizado e transferido seu direito de se governar a outro não é mais ator político, lugar do soberano.

 

3 A Vontade geral

Segundo Rousseau, a ordem social é um direito sagrado, mas não advém da natureza. É, pois, convencional. A família é o primeiro modelo de sociedades políticas, já que em família não se aliena a liberdade senão em troca de utilidade.

Salienta ainda que a força não produz direito algum, fazendo necessária a adesão ao contrato pela vontade e não pela necessidade. A força não faz direito. Nesse sentido, é possível afirmar que nenhum homem possui autoridade natural sobre outro homem, ou seja, são as convenções o fundamento de toda autoridade legítima (ROUSSEAU, 2006, p. 15-17).

Não é possível supor, por isso, que um homem aliene a sua liberdade em troca de nada. Tratar-se-ia de convenção contraditória estipular um contrato entre, de um lado, a obediência absoluta e, de outra, a autoridade absoluta. Nesses termos, Rousseau refuta a argumentação de Grotius quando ele procura fundamentar a escravidão no direito de guerra, explicando que o estado de guerra somente existe em função de relações reais, não sendo possível, portanto, o estado de guerra no Estado de Natureza, já que nesta não há propriedade constante e nem mesmo no estado social, já que a propriedade nesta é regida por leis. Além disso, o direito de guerra é concerne a relação entre Estados e não entre Estado e particulares. A escravidão é ilegítima representando verdadeira contradição com o direito (ROUSSEAU, 2006, p. 17-21).

Anteriormente à questão sobre a submissão do povo a um governante é mister analisar, segundo Rousseau, a questão sobre a constituição desse mesmo povo. Seria necessário, anteriormente à submissão do povo ao governante, um acordo de constituição do povo, ao menos em relação à pluralidade do sufrágio.

A questão principal que o contrato social visa solucionar é: como é possível uma união pela qual seja garantida a força e a liberdade de cada membro que, unido a todos, não obedeça senão a si mesmo, sendo tão livre como anteriormente. As cláusulas desse contrato são implícitas em todas as associações e só desaparecem quando da violação do pacto social, na qual ocorrerá o retorna à liberdade natural que fora substituída pela liberdade convencional durante o pacto (ROUSSEAU, 2006, p. 23-26).

Entende Rousseau que cada indivíduo no estado civil está implicado sob duas relações diversas, quais sejam, dele como parte do soberano para com os particulares (cidadãos) e como membro do Estado para com o soberano.

Todavia, é impossível que o soberano imponha obrigações dais quais ele mesmo não possa infringir. O soberano também não pode se obrigar de qualquer forma para derrogar o ato primitivo de constituição do estado civil.

O homem, na medida em que passa do estado natural para o estado civil, perde e ganha. Perde o direito de conseguir o que quer na medida das suas forças e a sua liberdade natural e ganha a liberdade civil, limitada pela liberdade geral, e a propriedade das suas posses. Em suma, o homem ganha a verdadeira liberdade, que é a liberdade moral, em detrimento da prisão que consubstancia no apetite (ROUSSEAU, 2006, p. 31).

Apesar do corpo político, através do contrato social, gozar de poderes absolutos sobre os seus cidadãos é mister atentar para os direitos de vida e de liberdade das pessoas privadas que naturalmente independe do poder público. Assim, os indivíduos apenas alienam no pacto social apenas a parte da sua liberdade, bens e poder cujo uso interesse à sociedade. O soberano não tem o direito de exigir dos cidadãos ônus que não representem ganhos à sociedade. A vontade geral perde a sua retidão natural quando tende a um objeto individual e determinado.

O pacto social coloca os cidadãos em pé de igualdade e todos usufruem dos mesmos direitos. É falsa a pretensão de retorno ao estado natural pelo indivíduo, vez o estado civil se mostra mais vantajoso. Além disso, o contrato civil possui uma cláusula implícita que obriga os particulares que não coadunem com a vontade geral a agir em conformidade com ela. Obriga-o a ser livre.

Segundo Wayne Morrison, a vontade de todos

só se converte em vontade geral quando estiver em conformidade com os objetivos do bem comum; em geral, é simplesmente a vontade de uma maioria, ou de uma minoria que tem voto. Uma sociedade pode não ter uma vontade geral; ao contrario, sua ‘vontade de todos’ pode ser aquela de uma facção política, e seu objetivo tão-somente a expressão de grupos de interesse dominantes (MORRISON, 2006, p. 190).

A vontade geral, portanto, é a única vontade que, pela sua própria natureza, visa sempre ao bem comum, vez que é constituída das vontades dos particulares, enquanto tendentes ao mesmo interesse. Assim, não é possível a alienação da soberania, pois é constituída da vontade geral, a qual possuía as características de tender sempre ao bem comum. A vontade geral tende à igualdade, enquanto as vontades particulares tendem às preferências (ROUSSEAU, 2006, p. 36-37).

Sendo assim, explica Rousseau que apenas o povo é titular da vontade geral e propõe as próprias leis que irá seguir. Nessa medida, goza da liberdade civil, que se constitui da efetiva autonormatização (ROUSSEAU, 2006, p. 30-31).

Agir conforme a vontade geral, portanto, é entendida como expressão da liberdade, já que o cidadão, com vistas ao bem comum, age segundo regras elaboradas por sua própria vontade, na medida dos seus interesses que coadunam com vontade dos demais (ROUSSEAU, 2006, p. 40-42).

Nesse sentido também conclui Cezar Augusto Ramos quando expõe que

O conhecido princípio rousseauísta de que “o impulso do puro apetite é escravidão, e a obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade”1, dispõe que o homem permanece livre na civitas, mesmo quando ele cria obrigações que são deliberadas por sua própria vontade. Este princípio retrata, também, a tese de que obedecer significa predispor o querer a acatar uma lei voluntariamente auto-imposta, tornando-a obrigação que coage o sujeito a aceitá-la. Seguir uma lei assim preceituada dissipa a aparente antinomia entre liberdade e obediência, pois ela não se opõe à ação livre do sujeito e nem restringe a sua liberdade na obediência ao mandamento legal (RAMOS, 2008, pág. 1-2).

4 Conclusão

A soberania em Hobbes e Rousseau, apesar de advirem de uma formulação similar, na medida em que usam do aparato teórico do estado de natureza, são essencialmente diversas, devido às concepções diferentes desse mesmo estado natural, ao mesmo tempo em que pressupõem uma antropologia filosófica muito diferente entre si.

De outro lado, até mesmo a finalidade do contrato social é diferente para cada autor. Em Hobbes, o contrato tem por fim principalmente garantir a segurança do indivíduo, em Rousseau, ao contrário, visa garantir principalmente a igualdade civil e a liberdade.

Importante notar, ainda, a diferença entre as perspectiva essenciais de estudo do Estado para cada filósofo. A teoria política de Hobbes se funda em uma perspectiva determinista, conforme descreve assim as relações dos indivíduos em estado de natureza. Por um cálculo racional, impõe-se a passagem para o estado civil, que só pode se dar mediante a outorga da soberania a um estranho aos contratantes. Assim, evidencia-se a uma perspectiva heterônoma, vez que é um sujeito exterior ao pacto horizontal que ditará as regras, sem participação dos contratantes.

Por sua vez, o contratualismo rousseauísta enfoca a autonomia dos indivíduos. Pelo contrato social, o indivíduo aliena apenas parte da sua liberdade para ganhar a verdadeira liberdade, qual seja a liberdade moral. O povo, através da vontade geral, é soberano para fazer valer os seus interesses, os quais tendem naturalmente para o bem-comum.

5 Referências Bibliográficas

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 620p.

MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 676p.

RAMOS, Cezar Augusto. Coação e autonomia em Kant: as duas faces da faculdade de volição. Ethic@ (UFSC), v. 7, p. 45-68, 2008.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 186 p.

 

Data de elaboração: fevereiro/2012

 

Como citar o texto:

MADRADO, Vitor Amaral..Quem é o soberano? Do Leviatã hobbesiano à vontade geral rousseauísta. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 986. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/etica-e-filosofia/2509/quem-soberano-leviata-hobbesiano-vontade-geral-rousseauista. Acesso em 2 jun. 2012.

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