Resumo:

            Este artigo estuda analiticamente a noção de aplicação de Gadamer levando em conta a lógica e a consistência de seu pensamento e visa colocar as suas proposições principais no âmbito da teoria e da prática jurídica nos casos concretos.

Palavras-chaves: aplicação, hermenêutica, método, compreensão, processo.

Abstract:

This paper studies analytically the notion of the Gadamer application taking into account the logic and consistency of his thought and aims to put its main propositions in the theory and practice of law in specific cases.

Key-words: application, hermeneutics, method, understanding, process.

       (I)

INTRODUÇÃO

O TEXTO NO CONTEXTO, A LÓGICA, A CONSISTÊNCIA E O ‘MÉTODO’

            Do ponto de vista da tradição hermenêutica, precisamos re-situar, mesmo que brevemente, o lugar do tópico sob análise. “A reconquista do problema fundamental da hermenêutica” se encontra no centro da argumentação de “Verdade e método” e é o lugar de passagem para o ápice da contribuição de Gadamer à hermenêutica: “A virada ontológica da hermenêutica no fio condutor da linguagem”.

            Esta “reconquista”, à qual Gadamer se refere, é a aplicação. Esta é uma categoria típica das hermenêuticas teológica e jurídica. Quando o exegeta bíblico desvela o sentido do texto filologicamente, o faz visando uma ação do seu ouvinte ou leitor no plano cognitivo, moral e anagógico. Isso corresponde, na hermenêutica teológica patrística e na primeira parte da hermenêutica medieval oficial, à quadriga agostiniana (literal, alegórico, moral e anagógico). Já na interpretação jurídica, a aplicação é a sentença do juiz.

            A questão em jogo aqui é, segundo Gadamer, que a tradição romântica da hermenêutica, que tem o mérito de ter fundado a hermenêutica filosófica se concentrou na psicologia do autor (Schleiermacher) e na crença da reconstrução da história (Dilthey), mas se esqueceu da aplicação, como se esta fosse o adendo derradeiro da tarefa hermenêutica. Isso ocorreu pela pressão objetivante das ciências da natureza e do desdobramento disso sobre a hermenêutica romântica, especialmente sobre Dilhey, que queria dar status de ciência natural às ciências do espírito.

            Para Gadamer, a limitação da hermenêutica romântica era exatamente a sua ruptura com o uso da aplicação feito pelas hermenêuticas regionais (hermenêutica teológica e jurídica). Diante dessa constatação histórica, ele pretende recolocar a aplicação no escopo do todo da tarefa hermenêutica.

            A sua tese poderia ser explicitada como segue: a aplicação é parte integrante da hermenêutica das ciências do espírito. A demonstração lógica da tese é tríplice: (1) Gadamer retoma Schleiermacher e Dilthey reconhecendo as suas contribuições, mas protestando-lhes a ausência da aplicação, afirma a tarefa hermenêutica como teoria e ação. (2) Para encorpar ainda mais a sua tese, evoca a ética aristotélica para lembrar que esta enquanto ciência do comportamento engloba a reflexão teórica e a ação em uma unidade necessária, porém, levando em conta a particularidade de cada situação porque o objeto próprio da ética, o comportamento humano, é peculiar e isso exige uma forma específica de sua abordagem. Esta aproximação, portanto, não é objetiva naquele sentido afirmado pelas ciências da natureza. (3) Por último, Gadamer completa a sua lógica argumentativa voltando-se para a hermenêutica jurídica e teológica que, segundo ele, não podem separar, com justiça teórica, a compreensão da aplicação nos casos concretos.

            O nosso método de abordagem de Gadamer será evocar as teses principais da seção de uma maneira articulada com a nossa compreensão hermenêutica, isto é, fazer hermenêutica na hermenêutica de Gadamer para, ao final, avaliar a sua intenção do ponto de vista da confirmação de sua tese no todo ou em parte ou de sua rejeição no todo em parte.

(I)

HERMENÊUTICA

DA LÓGICA E DA CONSISTÊNCIA DA SEÇÃO

            A premissa principal de Gadamer é que a hermenêutica regional  (dos clássicos, jurídica e teológica) deve ser entendida como uma unidade compreensiva composta de três fases: as subtilitas intelligendi, explicandi e applicandi. Consequentemente, entender, explicar e aplicar exige finura, perspicácia e exatidão do espírito[1]. Por isso, pode-se afirmar de imediato que “a interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente complementar à compreensão. Antes, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão.”[2]

            PRIMEIRO ARGUMENTO DE SUSTENTAÇÃO DA TESE

            Posta a tese e a sua conclusão antecipada, Gadamer volta-se para a hermenêutica filosófica romântica. Com certa justiça, afirma que esta rompe com a aplicação, na medida em que se volta para a intelligere e o explicare. A sua repreensão a Schleiermacher e a Dilthey focaliza a ausência da aplicação nos seus sistemas. Quando pensamos na justiça destas reprimendas e nos voltamos para Dilthey, ela nos parece apropriada em função de sua concentração inflacionária na história por meio de um ad fontes utópico. Porém, quando focalizamos a Schleiermacher, a crítica gadameriana encontra um obstáculo porque a hermenêutica de Schleiermacher, além de querer entender o autor melhor do que ele mesmo, o que é a sua face histórica e psicológica, quer também entender a gramática do texto e o seu contexto. Portanto, no que concerne a Schleiermacher, o argumento de Gadamer carece de um melhor ajustamento.

            O passo seguinte da lógica argumentativa de Gadamer nos leva à sua conceituação da hermenêutica filosófica. Não a conceitua como “a arte da compreensão” como Schleiermacher o fez, mas, querendo deste se distanciar,  diz que “a interpretação não é ato posterior e ocasionalmente complementar à compreensão. Antes, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão.” É louvável o esforço de Gadamer de romper com a suposta distância entre compreender e interpretar, mas aqui, mais do que em qualquer outro lugar de sua lógica, convém destacar que ele parece desfazer o nexo entre teoria, a hermenêutica,  e a prática, a eixegese, que não aparece explícito nem em Schleiermacher e nem em Dilthey porque, mesmo para este, a história é o lugar de acolhimento da vida e só existe em função desta. Por isso, Dilthey diz que, diferentemente dos entes que são mudos, o homem fala e, mediante o eu transcendental, o homem conhece o homem melhor do que qualquer outra coisa. Então quando Gadamer arremata a sua tese da ruptura entre entendimento, explicação e aplicação afirmando que “o desenvolvimento da consciência histórica (séc. XVIII e XIX), que levou à desvinculação da hermenêutica filológica e da historiografia de seu vínculo com as outras disciplinas hermenêuticas, estabelecendo-se como a teoria metodológica da investigação das ciências do espírito” esta deve ser vista com reservas porque a teoria hermenêutica na hermenêutica romântica não é só teoria pela simples razão de que é o “eu transcendental” kantiano que promove, na lógica da hermenêutica romântica, o entendimento e, portanto, o círculo hermenêutico todo-parte-parte-todo, já se constitui uma realidade que leva a integração da teoria com a prática e vice-versa. Por isso, sem negar as suas contribuições, pode-se concluir pelo exagero da sua tese na medida em que ele parece reduzir a amplitude da hermenêutica de Schleiermacher e de Dilthey para poder ultrapassá-la  meio que forçadamente.

                Isso posto, parece que poderíamos parar por aqui, já que o que Gadamer fará em seguida é tentar mostrar que há um vínculo estreito entre a hermenêutica jurídica e a filológica e que esta relação mostra que a aplicação sempre foi parte integrante da compreensão. Esta tese pode ser questionada por outro ângulo, a saber, a noção de uma consciência crítica antes da virada antropocêntrica da modernidade está reduzida a algumas mentes brilhantes. O normal, para a maioria das pessoas, era entender o que era dado na tradição como a verdade porque ancorava-se na autoridade pessoal e divinatória. Portanto, não parece adequado falar de compreensão e aplicação na perspectiva de Gadamer porque a compreensão tal qual ele vê é posta por ele naquele contexto: o sentido que ele, que alcançou a consciência crítica, põe lá onde este sentido é sem sentido para a consciência ingênua. Porém, o fato histórico mais contundente é que, para as pessoas envolvidas na hermenêutica regional e que estão presas ao saber da tradição, o sentido já está posto por esta. Um exemplo disso, é o advento das solas da hermenêutica protestante de Lutero, que indicava um esforço para pensar à margem do que estava instituído. Da mesma forma pode-se falar da hermenêutica liberal fundada por Selem em 1774, e isto, já bem depois da emergência da razão científico-técnica. 

            Portanto, afirmar a noção de aplicação no vínculo com a compreensão e a explicação tem um alcance limitado porque a consciência ingênua nessa fase do desenvolvimento do pensamento ocidental só compreende, explica e aplica segundo o princípio hermenêutico da repetição. Portanto, não se nega que esses três elementos estão unidos na hermenêutica regional, nisso Gadamer contribui para o saber  hermenêutico, mas não se pode ultrapassar esse limite como constantemente ele pareceu fazer, porque isso se constitui em um anacronismo grave. Isto é, levar para o passado um sentido que só pode ser aplicado em outra época. Vejamos um anacronismo exemplar. Gadamer afirma que se quisermos entender um texto,  seja na hermenêutica jurídica ou na hermenêutica teológica, devemos “ [...] compreendê-lo a cada instante, ou seja, compreendê-lo em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta.” E arremata: “Aqui compreender é sempre aplicar.[3]” Isso é verdadeiro quanto à hermenêutica filosófica, isto é, Gadamer está colocando o alcance crítico desta hermenêutica na hermenêutica regional que de fato, seja na hermenêutica teológica, a judaica, a judaico-cristã, a da escola de Antioquia, e a da quadriga medieval, seja na hermenêutica jurídica não admite esta tese porque havia, como ainda há, a prevalência do literalismo do texto por se considerar a origem divinatória de suas palavras. Nesse caso aplicar é repetir.

            A lógica textual de Gadamer voltada para justificar a categoria da aplicação como parte integrante da hermenêutica desde a sua origem, leva-o a inquirir a compreensão nas ciências do espírito.  A sua sub-tese é que a compreensão é histórica, por isso, “ [...] um texto só pode ser compreendido se em cada caso for compreendido de uma maneira diferente[4].” Fica clara aqui a sua dependência de Heidegger, e, mesmo quando ele parece evocar a Schleiermacher e Dilthey, ainda assim, Heidegger permanece presente: “[...] refletir sobre a tensão que existe na relação entre a identidade da coisa comum e a situação mutável na qual a coisa dever ser compreendida[5].” Por isso, pode-se afirmar que a mobilidade histórica da compreensão decorre da descoberta, primeiramente heideggeriana de que a consciência é histórica. Disso decorrem conseqüências libertadoras para a compreensão em todas as áreas do saber. Porque se a consciência é histórica já não há nenhum saber absoluto. Mas, todo saber está a caminho do seu saber mais. Por isso, com Hegel, pode-se afirmar que o absoluto do saber é força de seu contínuo refazimento. Nesse ponto, Gadamer mostra com justiça o seu ultrapassamento de Schleiermacher e Dilthey, já que estes, em razão do limite da consciência histórica, parecem ver a história como o lugar do resgate do saber objetivo que lá está. Por isso, Gadamer, muito acertadamente conclui, que “ [...]a compreensão não é um método através do qual a consciência se aproxima do objeto eleito para alcançar seu conhecimento objetivo. Ora, a compreensão é um processo cujo pressuposto é estar dentro de um acontecer da tradição[6].”

            Diante da condição inseparável entre compreensão, explicação e aplicação e da historicidade da consciência, a tarefa da hermenêutica é “ [...] perguntar pelo tipo de compreensão e de que ciência é esta que é movida em si mesma pela própria mudança da história[7].” Não é aquela da hermenêutica romântica, que procurava isolar a compreensão ao conhecimento do autor e ao contexto histórico. Trata-se então da compreensão ao mesmo tempo reprodutiva, normativa, e cognitiva. Para Gadamer, esta tríade compreensiva exemplifica-se na partitura onde o sentido reprodutivo é a execução da música, o normativo seria a melodia, e o cognitivo é a ação mental frente a partitura. Por isso, diz Gadamer:

[...] não existem de fato fronteiras nítidas entre um e outro, então já não podemos evitar a conclusão de que a distinção entre a interpretação cognitiva, normativa, e reprodutiva não pode pretender uma validez de princípio, uma vez que circunscreve um fenômeno unitário[8].

            Parece claro que a conclusão de Gadamer não pode ser extraída de seu exemplo da música porque mesmo que haja ação cognitiva, normativa e reprodutiva isto a aproxima muito mais de uma mecanização objetivante do que da novidade interpretativa que ele quis enfatizar. Por isso, mesmo que a idéia seja boa, o exemplo não a confirma, antes a desautoriza. E mesmo que seja assim, pode-se acolher a sua proposição quando diz que a hermenêutica deve “voltar a determinar a hermenêutica das ciências do espírito a partir da hermenêutica jurídica e da hermenêutica teológica[9]”, isto é, integrando em uma unidade compreensão, explicação e aplicação. Mas, deve-se cuidar para que esta tese de Gadamer não seja entendida como se até então não houvesse aplicação por parte daqueles que acolheram as teses da hermenêutica filosófica, especialmente na hermenêutica teológica onde a hermenêutica existencial de Bultmann e o método histórico-crítico são exemplos. Talvez, devêssemos apontar o problema visto por Gadamer mais apropriadamente no âmbito exclusivo dos filósofos, isto é, da hermenêutica filosófica. Para concluir, parece que a lógica do argumento de Gadamer é como segue: a aplicação compõe a unidade hermenêutica regional, a hermenêutica regional pertence, de certo modo, às ciências do espírito, logo, a aplicação é parte integrante da hermenêutica  das ciências do espírito na medida em que se junta à compreensão e à explicação. Este argumento tem um problema na premissa menor quando afirma que a hermenêutica regional pertence à hermenêutica do espírito. É provável que Schleiermacher e Dilthey, se concordassem com esta proposição, seria apenas naquele ponto onde ela destaca implicitamente a compreensão já que a tarefa de ambos foi construir o estatuto da hermenêutica como teoria do saber em geral.

            Neste ponto, Gadamer termina o primeiro argumento sustentador de sua tese. Como enfatizamos, a sustentação, ao mesmo tempo que é louvável, é também reprovável. É louvável retomar a importância da aplicação na hermenêutica, mas reprovável reduzir excessivamente a Schleiermacher e Dilthey. É louvável destacar a dinâmica do dito, do fato, do tempo e da consciência, mas é reprovável dizer isso da hermenêutica como um todo.

            SEGUNDO ARGUMENTO DE SUSTENTAÇÃO DA TESE

            Ao sustentar a sua tese a partir do conceito de aplicação na hermenêutica regional, Gadamer, notando a sua limitação, ampliou a sustentação de sua tese para a “hermenêutica de Aristóteles”. Parece que o que ele afirma implicitamente é que se o Ocidente aceita a “Ética a Nicômaco” como a fundação da ética como ciência, e esta ultrapassa a mera objetivação, então é preciso aceitar que:

O exemplo da ética aristotélica foi citado para desmascarar e evitar essa objetivação. O saber ético, como descrito por Aristótelis, não é evidentemente um saber objetivo. Aquele saber não está frente a uma constelação de fatos,      que basta constatar, mas é atingido diretamente por aquilo que ele conhece. É algo que ele deve fazer[10].

Com isso, Gadamer está ampliando a base de sustentação de sua tese para o campo da ciência ética já que aqui, mais do que em qualquer outro, a aplicação aparece muito explicitamente.

            Então, e tese de Gadamer de que a aplicação é parte integrante da hermenêutica das ciências do espírito recebeu a sua primeira razão: é assim porque isso já fazia parte da estrutura global da hermenêutica regional. Agora ele quer incluir uma segunda a razão: a ciência ética que, como a hermenêutica regional, aponta na mesma direção: a aplicação.

            Para Gadamer, o papel da razão na apreciação ética é articular o saber e o ser no horizonte de uma ética inseparável. Mas, ao fazer assim, Aristóteles não retoma a contraposição entre o real do mundo das idéias e as sombras aqui representadas, mas liga-se à dinâmica do caso concreto nas diferentes medianias exigidas em cada situação. Ser-razão-saber, na ética, ocorrem na medida mesmo em que se pratica. Isso significa que não há uma essência ética a ser alcançada contemplativamente porque tornamo-nos éticos sendo-o. 

            Mas, como fazer da ética uma ciência? Como encontrar no comportamento humano aquela regularidade e universalidade próprias da physis, isto é, da natureza? Até então a ética encontrava-se no âmbito da doxa, da opinião, contudo, seria possível encontrar na ética uma regularidade, que pudesse elevá-la ao plano de uma lei universal como a da physis? Para Gadamer, a resposta de Aristóteles a esse problema foi apontar a especificidade do objeto da ética, isto é, a sua diferença em relação aos objetos da ciência da natureza. Por isso, a ética não tem exatidão matemática “aqui se trata tão somente de tornar visível o perfil das coisas e ajudar, de certo modo, a consciência moral com este esboço do mero perfil[11]. Isto põe decididamente a questão da liberdade de decisão. Por isso, segundo Gadamer, este princípio vincula-se à autonomia e assim as pesquisas históricas e teóricas estão a serviço da lucidez da consciência ética para a tomada de decisão, isto é, “[...] que esclareça os contornos dos fenômenos ajudando assim a consciência ética a ganhar clareza sobre si mesma[12].” Por isso, o saber ético é um momento essencial do ser ético. Isto o distingue e rompe com a suposta distância entre o sujeito e o objeto da ciência moderna. Por isso, agora já se pode dizer que “o enorme alheamento que caracteriza a hermenêutica e a historiografia do século XIX, fruto do método objetivador da ciência moderna, mostrou ser a conseqüência de uma falsa objetivação[13].” É isso que aproxima decididamente as ciências do espírito do saber ético porque “este, porém, se sabe a si mesmo como ser que atua, e o saber que assim atua está às voltas com as coisas que nem sempre são como são, pois podem ser diferentes[14].” Por isso, à techne do artesão comparar-se-á o homem na efetivação de seu eidos, isto é, tornar ato o seu potencial de realização. É exatamente nesse ponto que aparece a aplicação, isto é, concretizar o saber na situação concreta.

            Contudo, não se deve olvidar as diferenças entre techne e a ética: (1) Se a techne se aprende e se esquece, o saber ético não pode ser esquecido nem aprendido segundo os meios tradicionais de ensino. Assim, “independentemente da situação que a justiça me exige, não é possível determinar, por ex., o que é justo, enquanto que o eidos daquilo que um artesão quer fabricar está inteiramente determinado, e quiçá determinado pelo uso para o qual está destinado[15].” Por isso mesmo, a aplicação da lei não é uma techne, embora este também tenha que fazer ajustes durante a execução e a finalização de sua obra. Por isso mesmo, quando o juiz abranda o rigor da lei o faz para alcançar a justiça o faz porque toda lei é geral e exige ponderação e equidade na sua aplicação. Com isso,

Fica claro que o problema da hermenêutica jurídica encontra aqui seu verdadeiro lugar. A lei é sempre deficiente, não em si mesma, mas porque, frente ao ordenamento a que se destinam as leis, a realidade humana é sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das mesmas[16].

            Isto leva-nos à relação entre direito positivo e natural em Aristóteles. O primeiro representa o verdadeiro direito, porém, volta-se contra o convencionalismo extremado. E assim distingue o que é justo por natureza e o que justo pela lei. Porém, isto também não contrapõe direito natural, imutável, e o direito positivo, alterável porque em ambos os casos a inalterabilidade só é apropriada aos deuses. “Entre os homens tanto é alterável o direito positivo quanto o direito natural. Segundo Aristóteles, essa alterabilidade é perfeitamente compatível com o caráter ‘natural’ desse direito[17].” Nesse contexto, a felicidade social ocorre quando cada cidadão (ã) “[...] deseje o que é justo, que se encontre, portanto, ligado ao outro nesse tipo de comunidade[18].”

            Agora colocando esse conhecimento no âmbito da hermenêutica entende-se que a aplicação aristotélica do fenômeno ético servirá de modelo dos problemas inerentes à tarefa hermenêutica. Isso significa que a aplicação não é meramente o final da compreensão, mas o determina desde o princípio e no seu todo. Há um círculo hermenêutico entre a tradição e o intérprete, que ultrapassa a compreensão e se torna experiência, interação, participação no texto e deste com a situação.

            A minha crítica ao pensamento de Gadamer aqui é a inadvertida aproximação entre ciência ética e as ciências do espírito. Porque a palavra ciência, que supostamente quer dizer a mesma coisa nos dois casos não diz. A palavra ciência antes da viragem antropocêntrica tem sentido geral de saber com razões, mas, contudo, sem sê-lo no âmbito da experimentação controlada. É exatamente isso, que caracteriza as ciência do espírito e também as ciências da natureza. Por isso mesmo, parece vetada a relação e, consequentemente, as conclusões decorrentes dessa suposta relação como alegadas por Gadamer. Parece que a questão da aplicação tão necessária a hermenêutica advém muito mais do contexto da linguagem e clareira do ser de Heidegger do que propriamente da questão ética.

            Resumindo, deve-se retomar a tese principal da seção: a aplicação compõe a unidade hermenêutica regional, a hermenêutica regional pertence, de certo modo, às ciências do espírito, e também, a ética aristotélica pode ser posta como complemento de sustentação desse pensamento, logo, a aplicação é parte integrante da hermenêutica  das ciências do espírito na medida em que se junta à compreensão e à explicação a aplicação.

            TERCEIRO ARGUMENTO DE SUSTENTAÇÃO DA TESE

            Segue-se agora para o terceiro eixo sustentador da tese: “ O significado paradigmático da hermenêutica jurídica.” Pergunto-me pela razão de Gadamer em colocar este tópico aqui outra vez já essa abordagem, pelo menos em parte, foi feita quando da exposição do primeiro argumento. Isso parece metodologicamente reprovável, mas é preciso aguardar para ver se há alguma razão que ainda não percebemos. Talvez, a sua razão para retomar o tema da hermenêutica jurídica está na abertura do tópico: “Se é assim, a distância entre a hermenêutica das ciências do espírito e a hermenêutica jurídica não é tão grande como se costuma supor[19].” Essa frase parece indicar que Gadamer está retomando o tema da hermenêutica jurídica em razão de sua exposição sobre a ética de Aristóteles.

            Hermenêutica jurídica

            Começa o seu terceiro argumento fazendo uma crítica ao esforço de Schleiermacher e Dilthey de criar uma hermenêutica geral[20] e diz que a hermenêutica jurídica “ [...] não pertenceria a este contexto, pois não buscaria compreender textos dados, já que é um recurso auxiliar da práxis jurídica destinado a sanar certas deficiências e casos excepcionais no sistema da dogmática jurídica[21].” Daí ele conclui que nem a hermenêutica das ciências do espírito e nem a hermenêutica teológica “[...] poderia ainda reivindicar um significado sistemático e autônomo[22].” O que fez a hermenêutica jurídica quando “[...] apartou-se de uma teoria geral da compreensão por ter um objetivo dogmático [...][23]”.

            Por causa dessa constatação, Gadamer estudará neste tópico, a partir de Emílio Betti,  a

[...] divergência entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica histórica, estudando os casos em que uma e outra se ocupam do mesmo objeto, isto é, casos em que textos jurídicos devem ser interpretados juridicamente ou compreendidos historicamente. Trata-se de investigar o comportamento do historiador jurídico e do jurista, comportamento que assumem com respeito a um mesmo texto jurídico, dado e vigente[24].

O que Gadamer procura aqui? Ele diz que quer ver “[...] se a diferença entre o interesse dogmático e o interesse histórico é uma diferença unívoca[25].” Nesse caso, o historiador do direito busca na história o sentido da lei para vislumbrar o seu sentido na aplicação atual. Já “o jurista toma o sentido da lei a partir de e em virtude de um determinado caso dado[26].” Afirmado esta posição, Gadamer se afasta dela imediatamente, sustentando que o jurista, para encontrar o sentido da lei, deve ser também historiador. Porém, a questão que Gadamer levanta agora é que a compreensão histórica seria apenas um meio para um fim. Isto não ocorre com o historiador jurídico porque este busca “[...] a objetividade histórica para compreendê-la em seu valor posicional na história [...][27]”.

            Será que Betti descreveu o comportamento do historiador jurídico o suficientemente? Na hermenêutica jurídica orientada pela hermenêutica romântica de Shleiermacher e Dilthey, parece que basta resgatar o sentido original da lei para em seguida operar a sua aplicação. Parece então que, nesse ponto, a tarefa do historiador e do jurista se equivalem: “Também o jurista não teria outra tarefa hermenêutica senão a de constatar o sentido original da lei e aplicá-lo como correto[28].” Foi o que fez Savigny ao descrever a tarefa hermenêutica. Mas, o tempo demonstrou que isto é uma ficção insustentável[29] porque, não obstante, o jurista tenha sempre a lei mente,

[...] o seu conteúdo normativo deve ser determinado em relação ao caso em que deve ser aplicado. E para se determinar com exatidão esse conteúdo não se pode prescindir de um conhecimento histórico do sentido originário, e é só por isso que o intérprete jurídico leva em conta o valor posicional histórico atribuído a uma lei em virtude do ato legislador[30].

                Qual é a função do historiador nesse mesmo contexto? Para Gadamer, o historiador da lei se aproxima do jurista porque aquele para compreender o sentido original da lei deverá levar em conta a sua situação no momento presente. Isto é assim porque

Só existe conhecimento histórico quando em cada caso o passado é entendido na sua continuidade com o presente, e isto é o que realiza o jurista na sua  tarefa prático-normativa, quando procura ‘assegurar a sobrevivência do direito como um continuum e salvaguardar a tradição de pensamento jurídico[31].

                Porém, Gadamer põe o limite desse exemplo em um direito que seja objetivo, porém, não valido. Será que nesse caso, a comparação das tarefas do historiador e do jurista não perde a sua consistência? Nesse dir-se-á que “ [...] a hermenêutica jurídica possui uma tarefa dogmática especial que é completamente alheia ao contexto da hermenêutica histórica[32].” Porém, Gadamer pensa que isso não é assim porque na aplicação da lei a um caso concreto “o juiz procura corresponder à ‘idéia jurídica’ da lei, intermediando-a com o presente [...] assim, não se comporta como historiador, mas se ocupa de sua própria história, que é seu próprio presente[33].”

            Ora, de igual modo, o historiador do direito não pode ignorar que o que ele focaliza requer ‘uma compreensão jurídica’. Isso nos leva tanto na tarefa do jurista quanto a do historiador  ao conceito de mediação. Isto significa que “[...] em toda compreensão histórica já está sempre implícito que a tradição que nos alcança dirige sua palavra ao presente e deve ser compreendida nessa mediação- mais ainda: como essa mediação[34].” A partir dessa aproximação, Gadamer considera possível falar então de uma “[...] unidade do problema hermenêutico, na qual o jurista e o teólogo se encontram com o filólogo[35].” Para Gadamer, esses dados afirmam a conexão inviolável entre as subtilitas intelligendi, explicandi e applicandi. E conclui: “a tarefa de compreender e de interpretar subsiste onde uma regra estabelecida tem valor vinculante e irrevogável[36].” Assim, interpretação e aplicação têm nexo comum no ordenamento jurídico que a todos submete. Isso leva ao caráter de previsibilidade das decisões e à segurança jurídica em um estado de direito. Mas, isso não elimina a hermenêutica, antes a reafirma como absolutamente necessária:

Entre a hermenêutica jurídica e a dogmática jurídica existe pois uma relação essencial, na qual a hermenêutica detém a primazia. A idéia de uma dogmática jurídica perfeita, sob a qual se pudesse baixar qualquer sentença como um simples ato de subsunção, não tem sustentação[37].

Hermenêutica teológica

            Na hermenêutica teológica protestante a dogmática não pretende ter a primazia porque é na pregação que a o anúncio do evangelho se concretiza. Por isso, o anúncio não pode separar-se de sua efetivação cúltica e evangélica. A sua base fundamental são as Sagradas Escrituras tidas como testemunho que apontam para o Cristo e que, por isso mesmo, não são um manual de dogmática. Nesse sentido, pode-se falar da pré-compreensão bultmanniana que afirma que a compreensão mora na tradição e, por isso, pressupõe uma relação vital com o texto mediada pela história daquele texto. Isto é pré-compreensão. Gadamer segue para uma crítica ao conceito de pré-compreensão pondo-a, exclusivamente, no horizonte de Deus ou da fé para concluir por sua limitação. Porém, Gadamer aqui não faz jus a Bultmann porque esta categoria significa decididamente o conteúdo cultural que a pessoa acumulou na história de sua vida. Trata-se de um conceito que Bultmann herdou da Heidegger, isto é, do mundo da vida. Um exemplo disso, seria a leitura bíblica do Marxista. Ao afirmar isso, Gadamer diz que a pré-compreensão bultmanniana é teológica de antemão. Isso óbvio, desde Heidegger. O perigo é que estando desavisado disso, nunca se vá além na interpretação posta. Mas, parece que isso é mitigado pela dinâmica da realidade no qual se vive e exige sempre um ir além. E nesse caso, mais uma vez somos levados à aplicação, mesmo que esta esteja limitada pelo intérprete, pelo texto e pelo limite da consciência histórica. Portanto, a tarefa de interpretar não se faz mediante a uma liberdade plena frente ao texto.

            A aplicação nas ciências do espírito

            Mesmo nas ciências do espírito não há uma neutralidade frente aos textos porque para compreender um texto filosófico ou similar, precisamos nos ligar a ele e isso implica que “[...] não temos a liberdade de reservar para nós certo distanciamento histórico[38].” Porém, do ponto de vista da ciência moderna, a aplicação não pertence necessariamente à compreensão. Porque estas visam antes construir uma teoria mediante o princípio da neutralidade. É um questão de método: “somente compreende aquele que sabe manter-se fora do jogo. Tal é o requisito da ciência[39].”

            Mas, será que está é melhor maneira de abordamos a questão?

Talvez não apenas o filólogo mas também o próprio historiador deva orientar seu comportamento muito mais pelo modelo oferecido pela hermenêutica jurídica e pela hermenêutica teológica do que pelo ideal metodológico das ciências da natureza[40].

            Por isso, pode-se falar que a compreensão de um texto como aplicação e o próprio sentido que deu ao texto não é final, mas reconhecê-lo aberto às outras interpretações, isto é, manter “[...] o conjunto da tradição aberto para o futuro[41].” Por isso mesmo, tanto o filólogo como o historiador situam-se em um grande texto. O primeiro em âmbito menor, isto é, as páginas de um livro; o segundo, no grande livro da história. Para dizer com Gadamer: “é na consciência da história efeitual onde ambos se encontram como em seu verdadeiro fundamento[42].”

(II)

CONCLUSÃO

            A tese de Gadamer, a aplicação é parte integrante da hermenêutica  das ciências do espírito. Nesta seção, a tese recebeu suas razões da hermenêutica regional, da ética aristotélica e da hermenêutica jurídica e teológica contraposta à hermenêutica geral. Parece que podemos concluir com Gadamer de que a aplicação é uma realidade de toda ação compreensiva e de que, mesmo quando se imagina que se está neutro, eis que a história efeitual, isto é, as transformações compreensivas que o tempo se incumbe de promover sobre as ideias em geral, é a força da razão histórica para, querendo ou não, ir adiante na compreensão o que já é uma forma de aplicação

Referências bibliográficas

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REALE, Giovanni e ANTISTERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1998

[1] Subtilitas, Oxford Latin Dictionary, 1982 [OLD)

[2] GADAMER, H-G. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5ª ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Universidade São Francisco, 2003. p. 406.

[3] GADAMER, H.G. op. cit. p. 408.

[4] Idem, p. 408.

[5] Ibidem, p. 408.

[6] Op. cit. p. 408.

[7] Op. cit. p. 408.

[8] Op. cit. p. 410.

[9] Op. cit. p. 410.

[10] Op. cit. p. 414.

[11] Op. cit. p. 413.

[12] Op. cit. p. 413.

[13] Op. cit. p. 414.

[14] Op. cit. p. 414.

[15] Op. cit. p. 418.

[16] Op. cit. p. 419.

[17] Op. cit. p. 420.

[18] Op. cit. p. 425.

[19] Op. cit. p. 426.

[20] Op. cit. p. 426, passim.

[21] Op. cit. p. 426.

[22] Op. cit. p. 427.

[23] Op. cit. p. 427.

[24] Op. cit. p. 427.

[25] Op. cit. p. 427.

[26] Op. cit. p. 428.

[27] Op. cit. p. 428.

[28] Op. cit. p. 428.

[29] Cf. Recht und sprache, abhandlung der Königsberger Gelehrter Gesellschaft, 1940.

[30] Op. cit. p. 429.

[31] Op. cit. p. 430.

[32] Op. cit. p. 430.

[33] Op. cit. p. 431.

[34] Op. cit. p. 431.

[35] Op. cit. p. 431.

[36] Op. cit. p. 432.

[37] Op. cit. p. 433.

[38] Op. cit. p. 436.

[39] Op. cit. p. 439.

[40] Op. cit. p. 443.

[41] Op. cit. p. 446.

[42] Op. cit. p. 446.

Data da conclusão/última revisão: 3/4/2019

 

Como citar o texto:

RIBAS, Carolline Leal; SILVA, Juscelino..A noção de aplicação em "verdade e método" de Gadamer. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1612. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/etica-e-filosofia/4360/a-nocao-aplicacao-verdade-metodo-gadamer. Acesso em 9 abr. 2019.

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