Versam os autos sobre consulta que formula a empresa X, por meio do seu Diretor Administrativo-Financeiro, visando a obter fundamentação técnico-jurídica que respalde, sua tomada de decisão quanto a adotar o salário básico mensal de cada empregado que utiliza o instituto do vale-transporte, fazendo sobre ele incidir o percentual de 6% (seis por cento) a que tem direito, no ato de se reembolsar das despesas mensais havidas, em conformidade com a legislação vigente. A presente consulta se justifica pelo fato de a consulente, em mais de uma opinião, da lavra de sua assessoria jurídica, haver sido comunicada da impossibilidade de proceder a modificação desejada em relação ao empregados que, de há muito, vêm sofrendo o desconto a menor, por iniciativa que se imputa, com exclusividade, à empregadora, posto que, na douta opinião daqueles juristas, tanto os princípios quanto a legislação brasileira afeta ao Direito do trabalho, assim como sua Jurisprudência atualizada adotam o princípio da impossibilidade de alteração contratual unilateral que direta ou indiretamente cause prejuízo ao empregado - ainda que este consinta - consubstanciado no art. 468 da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, modo como conceituam a pretensão da empresa, ao que se adiciona o prevalecimento da regra que impõe a incorporação, ao salário de cada empregado identificado neste quadro fático, do valor mensal cobrado a menor, como conseqüência de aquele quantum, se ter aderido ao orçamento do trabalhador, gerando-lhe, caso se concretize a modificação desejada, prejuízo, conduta que seria, inevitavelmente, acoimada de ilegal pelo poder judiciário brasileiro, posto que lesiva e constitutiva, portanto, de passivo trabalhista para a consulente.

DOS FATOS

A consulente, ao dar cumprimento às regras referentes à utilização do vale-transporte, tanto na concessão do benefício aos seus empregados, quanto na forma de se reembolsar em face desses mesmos empregados, buscou fazê-lo nos exatos limites em que estão aquelas estabelecidas, ou seja, no parágrafo único do art. 4° da lei n° 7.418-85, alterada pela lei n° 7.619-87,   in verbis:

Art. 4º - (...)

Parágrafo único - O empregador participará dos gastos de deslocamento do trabalhador com a ajuda de custo equivalente à parcela que exceder a 6% (seis por cento) de seu salário básico.

E, no parágrafo único e inciso I do art. 9° do Decreto n° 95.247/87, verbis:

Art. 9° O Vale-Transporte será custeado:

I - pelo beneficiário, na parcela equivalente a 6% (seis por cento) de seu salário básico ou vencimento, excluídos quaisquer adicionais ou vantagens;

(...)                

Parágrafo único. A concessão do Vale-Transporte autorizará o empregador a descontar, mensalmente, do beneficiário que exercer o respectivo direito, o valor da parcela de que trata o item I deste artigo.

Meridianamente clara a regra que estabelece a base sobre a qual deve o empregador fazer incidir o percentual de 6% (seis por cento), no ato de se reembolsar: o salário mensal básico, sem adicionais.

A despeito de declarar, contratualmente, que assim pretende agir, ou seja, se reembolsar pelo máximo permitido em lei, entendeu o preposto do empregador, ao interpretar e aplicar a lei, que a maior base salarial passível de receber a incidência dos 6%, a serem descontados de cada empregado, seria equivalente ao número de dias no mês nos quais, efetivamente, cada trabalhador utilizaria, os vales-transporte para seu deslocamento.

Assim, exemplificativamente, num mês de 30 (trinta) dias em que haja 26 (vinte e seis) dias de trabalho e 04 (quatro) dias de repouso semanal, se afigurou ao preposto que o salário mensal básico, dividido por 30 e multiplicado por 26, seria, nos limites exatos da lei, o valor sobre que se faria a retenção de 6%, de direito do empregador.

Pensando estar atuando em consonância com o que declarou que deseja fazer, e respeitando o teto estabelecido pela lei quanto a se ressarcir pelo máximo possível, diminuía, indevidamente, a base salarial de cada empregado, para sobre essa base reduzida calcular os 6% a que tem direito, gerando, para o empregado, um ganho indevido, pelo desconto a menor (no valor retido, e não no percentual aplicado), e para si, um desembolso desnecessário, ou, para ficar mais claramente configurado o quadro, o reembolso com valor menor do que o que a lei autoriza.

Para que se perceba a diferença, procedemos aos cálculos com bases distintas:

- Salário básico mensal: R$ 500,00 (quinhentos reais).

Reembolso do empregador, corretamente aplicado:

R$ 500,00 x 6% = R$ 30,00

Reembolso do empregador, incorretamente aplicado:

((R$ 500,00 / 30) x 26) x 6% =

(R$ 16,6667 x 26) x 6%=

R$ 433,33 x 6% = R$ 26,00

Ao efetuar os cálculos dessa maneira, no exemplo, o preposto reembolsou a empregadora com defasagem de, aproximadamente, 15% (quinze por cento) se cotejada com o que autoriza a lei, ou seja, em vez de se reembolsar no valor de R$ 30,00 (trinta) reais, a empregadora se ressarciu de R$ 26,00 (vinte e seis) reais, gerando e transferindo o, indevido, valor líquido de R$ 4,00 em favor do empregado, e a menor, para si.

Tal anomalia, segundo a própria empregadora, se manteve em relação ao desconto efetivado de cada um de seus empregados que utilizam vale-transporte, pelo período aproximado de 120 (cento e vinte) meses.

Apenas e tão-somente para que se apresente como subsídio à formulação de raciocínio futuro, a embasar o entendimento acerca da questão posta, qual seja, da legalidade, ou não, do que pretende a empregadora-consulente, calculamos aqui, o montante nominal recebido, a mais, em 10 anos, pelo empregado que aufira o salário de R$ 500,00, utilizado no exemplo:

(R$ 4,00 x 12) x 10 =

R$ 48,00 x 10 =

R$ 480,00

-           Poder-se-ia argumentar que: alguém que hoje recebe R$ 500,00 (quinhentos reais) mensais, há dez anos e, provavelmente, até o ano passado, não recebia este salário, de modo que o cálculo acima não representaria o valor correto que este empregado teria recebido, a mais, nestes 10 anos. Contudo:

-           Não procedemos a correção monetária que incidiria, mês a mês, sobre as parcelas retidas a menor, nesses dez anos, de modo que, uma coisa compensa a outra.

-           Conclusivamente, importa constatar aqui que, seja qual for o valor em R$ a que se chegue, houve recebimento, a maior, indevido pelo empregado, durante todo o tempo em que vigorou tal irregularidade, ao mesmo tempo em que a empresa se reembolsou em valores aquém do que se permite em lei.

DO CONTEXTO EM QUE SE DARÁ A ANÁLISE DA MATÉRIA

As regras relativas ao Direito do Trabalho e à sua Jurisprudência estão inexoravelmente vinculadas aos princípios que norteiam a formulação da ciência do Direito, de conteúdo milenar e universal, bem como ao Ordenamento Jurídico pátrio como um todo, de modo que, nega-se ao Direito do Trabalho, assim como a qualquer outro ramo, isoladamente, a possibilidade de formar um sistema estanque e independente, em relação aos ditames maiores do Direito, e do Ordenamento Jurídico vigente.

Por isso, a dúvida suscitada na consulta não pode nem deve ser analisada tomando-se por base e parâmetros apenas os princípios e regras do ramo jurídico trabalhista. Devem-se analisar todos os princípios, ramos e institutos  de, e do, Direito que tenham sido ou que sejam invocados tanto para fundar a resposta negativa, quanto a positiva, a fim de que o consulente, ainda que não versado na ciência do Direito, possa compreender o alcance da questão e o escopo  da resposta.

Assim procuraremos enfrentar as questões, de modo técnico, entretanto, inteligível para todos.

DOS PRINCÍPIOS E REGRAS DE DIREITO

-           Princípio, em Direito, pode ser definido como: um ponto de partida, um pressuposto, que se apresenta, via de regra, de forma sintética.

-           O ordenamento jurídico, ou dogmática jurídica, é a parte do Direito de caráter analítico. Vários são os instrumentos que compõem o ordenamento jurídico. O mais comum e familiar deles é a lei, entretanto, também o são os decretos, as medidas provisórias, as portarias etc.

-           O que importa compreender é que a máxima contida no princípio, se adotado na formulação de um código, deve ser respeitada e seus contornos atendidos pelo legislador, no momento de redigi-lo, de modo que a parte analítica do Direito, a lei, esteja sempre em absoluta harmonia com a parte sintética do Direito, o princípio.

-           Como exemplo, temos que o Direito brasileiro consagrou, constitucionalmente, o princípio da proteção incondicional da vida, ao afirmar que, com uma única exceção, não haverá pena de morte (CF, inciso XLVII, alínea “a”).

-           Ora, se a Constituição consagra tal pressuposto, se impõe a toda e qualquer lei, medida-provisória, decreto, portaria etc., como condição para compor validamente o ordenamento jurídico, o respeito ao princípio de que não haverá pena de morte.

Caso o Congresso Nacional aprove lei prevendo, para determinado crime, a condenação do agente à morte, esta será declarada inconstitucional. No caso, haverá inconstitucionalidade material, pois, a regra nova que estabeleça a pena de morte está inserindo para cumprimento da sociedade, regra sobre matéria que aquele princípio constitucional (não haverá pena de morte) veda. Este o papel dos princípios na elaboração da lei.

Todo ramo do Direito seja Trabalhista, Constitucional, Tributário, Penal, Civil etc., possui seus próprios princípios que devem ser observados e respeitados pelo legislador quando edita novas regras acerca daquela matéria.

Muitos dos princípios de Direito são aplicáveis a todos os ramos do Direito, não sendo exigíveis, portanto, somente a um ou alguns, deles, mas, à totalidade dos ramos de Direito.

Então, existem princípios de direito que são aplicáveis, com exclusividade, a determinado ou a determinados ramos do Direito, bem como existem princípios de direito que se prestam como ponto de partida, ou pressuposto, concomitantemente, a todos os ramos do Direito.

ANÁLISE DA QUESTÃO, À LUZ DOS PRINCÍPIOS E REGRAS APLICÁVEIS AO DIREITO DO TRABALHO QUE FUNDAMENTAM A RESPOSTA AFIRMATIVA:

A oferecer respaldo jurídico à resposta de que: É direito da consulente, portanto, absolutamente legal modificar a base de cálculo sobre que faz incidir 6%, nos limites da lei, no ato de se reembolsar, sem que tal ato se constitua alteração contratual unilateral lesiva; causadora de prejuízo para o empregado; fira direito por ele adquirido; que se constitua causa criadora de passivo trabalhista; ou que revele qualquer outro caráter de ilegalidade, passível de reparo, ainda que por via judicial, temos:

O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

O princípio da boa-fé, durante muito tempo compôs o ordenamento jurídico brasileiro apenas por via da doutrina, já que não se encontrava em nenhuma lei brasileira a obrigação de respeito ao seu conteúdo, na celebração e durante o cumprimento dos contratos.

O Código Civil de 2.002, contempla matéria acerca da obrigação de que as partes contratantes ajam ininterruptamente imbuídas do espírito de boa-fé em todas as etapas, desde às que antecedem a formulação, até às que  exaurem o contrato por via de seu cumprimento, e mesmo nas que, eventualmente, o rompam antes do termo ajustado.

Ao tratar dos negócios jurídicos, estatui nos arts. 112 e 113 o Código Civil de 2.002, verbis:

CC – art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

CC – art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

Mais adiante, ao estabelecer regras relativas aos contratos em geral, encontramos no art. 422 do mesmo Código Civil de 2.002, in verbis:

CC – art. 421. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé.

No que respeita à aplicação do princípio da boa-fé aos contratos oriundos do Direito do Trabalho, encontramos excelente excerto, da lavra do notável Arnaldo Sussekind, em sua obra Instituições de Direito do Trabalho, 21ª edição, página 253 e seguintes, vazada nos termos a seguir:

“Princípio da execução de boa-fé. O contrato de trabalho, como qualquer outro, deve ser executado de boa-fé. O princípio da execução de boa-fé, como salienta De Page, é um daqueles que constituem a base da sistemática jurídica em matéria de contrato. Sua origem remonta à distinção do Direito Romano entre contratos de direito estrito e contratos de boa-fé”.

Os primeiros eram de interpretação rigorosa, enquanto, em relação aos segundos, permitia-se ao juiz indagar livremente a intenção das partes, sem ficar preso à sua expressão literal. Hoje – diz De Page – “todos os contratos são de boa-fé”. “Nas declarações de vontade” – era a regra geral do então vigente art. 85 do Código Civil – “se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem”.

Apesar de repetir, no art. 112, as disposições do art. 85 do Código anterior, o Novo Código Civil inovou ao não privilegiar apenas a vontade dos contratantes. Acertadamente, deu maior amplitude à avenca, ao conformar o contrato a uma função social, o que avulta em importância o poder do intérprete, não mais restrito apenas à vontade dos contraentes”.

(...)

 

Ainda como decorrência da aplicação do mesmo princípio, todo contrato comporta, sem que as partes tenham necessidade de dize-lo expressamente, as conseqüências que, segundo sua natureza, advêm-lhe da equidade e dos usos. Como escreve De Page, “os usos se incorporam de pleno direito aos contratos, a menos que se tenha estipulado em sentido contrário, expressa ou tacitamente”.

Mas, o princípio da execução contratual de boa-fé tem, principalmente, um alto sentido moral. Daí o dever de colaboração do empregado. Mas esse dever, como diz Barassi, é bilateral. Cada contratante, escreve De Page, é obrigado, pelo fato mesmo do contrato, “a levar ao seu co-contratante toda a ajuda necessária para assegurar a execução de boa-fé do contrato. A solidariedade, estabelecida, em vista da utilidade social, pelo vínculo contratual, proíbe, a cada uma das partes, de se desinteressar pela outra. Ambas se devem, mútua e lealmente, fornecer todo o apoio necessário para conduzir o contrato a bom termo”.

Trazendo esta notável lição para a questão concreta que aqui analisamos, indaga-se: que ânimo moveu o empregador, consulente, ao se reembolsar, por longos anos, em quantias abaixo das que a lei o autoriza a realizar?

Inegável que a única resposta possível é: A boa-fé. A boa-fé de estar cumprindo a lei.

Até porque, ao se ressarcir de modo incompleto, pela inadequada aplicação da regra legal, o empregador gerou prejuízo financeiro exclusivamente para si.

Ninguém, em sã consciência, age de má-fé, se autoprejudicando financeiramente durante uma década, sem visar nada como contrapartida.

Nada mais justo, portanto, que, dando continuidade à execução dos contratos individuais que mantém com seus empregados, ainda se valendo da mesma boa-fé, possa o empregador parar de se autoprejudicar, passando a se ressarcir nos exatos limites estabelecidos na lei que regulamenta a concessão do vale-transporte, sem gerar NENHUM prejuízo para ninguém. Apenas deixará de gerar lucro indevido aos seus empregados.

DO EXERCÍCIO REGULAR DE UM DIREITO

Ainda no Código Civil, vamos colher o ensinamento que determina não haver ilicitude, no exercício regular de um direito reconhecido. Tal verdade, sobre a qual procederemos a análise mais profunda, está inserida em nosso ordenamento jurídico por via do inciso I, do art. 188 do Código Civil de 2.002, in verbis:

CC – art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido.

Ora, na análise dos fatos sobre que nos debruçamos, não há como negar que se reembolsar pela aplicação do percentual de 6% sobre o salário básico de cada um de seus empregados que utilizam o vale-transporte, a cada mês, é direito reconhecido do empregador, consubstanciado nos fundamentos já trazidos, mas que aqui se reproduzem para que não paire dúvida:

No parágrafo único do art. 4° da lei n° 7.418-85, alterada pela lei n° 7.619-87,   in verbis:

Art. 4º - (...)

Parágrafo único - O empregador participará dos gastos de deslocamento do trabalhador com a ajuda de custo equivalente à parcela que exceder a 6% (seis por cento) de seu salário básico.

E, no parágrafo único e inciso I do art. 9° do Decreto n° 95.247/87, verbis:

Art. 9° O Vale-Transporte será custeado:

I - pelo beneficiário, na parcela equivalente a 6% (seis por cento) de seu salário básico ou vencimento, excluídos quaisquer adicionais ou vantagens;

(...)                 

Parágrafo único. A concessão do Vale-Transporte autorizará o empregador a descontar, mensalmente, do beneficiário que exercer o respectivo direito, o valor da parcela de que trata o item I deste artigo.

O exercício, pelo empregador, do direito de se ressarcir no limite permitido em lei, a qualquer momento que assim deseje, não pode ser negado, nem se pode reputar de ilícita sua pretensão, pois que, a regra que garante não se constituir ilícito o exercício regular de um direito vem, como demonstrado, em seu socorro.

O máximo que se pode admitir como questionável é se isso pode acontecer sem que nenhuma obrigação ou nenhum ônus lhe seja legalmente imputado e, ainda assim, é inevitável concluir que não se sustenta, dita tese, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, conforme será demonstrado, a seu tempo, no desenvolvimento deste parecer.

DA CONTRAÇÃO DE UMA OBRIGAÇÃO

O artigo 5° da Constituição Federal, em seu inciso II, assegura, verbis:

CF – art. 5°. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Como visto, as obrigações, normalmente, surgem como decorrência da adequação do sujeito de direito à regra estabelecida em lei, ou como conseqüência de sua declaração de vontade, manifestando, validamente, o desejo de assumi-las espontaneamente, o que se torna lei entre as partes.

Conforme já visto, em tópico anterior, é necessário que a manifestação de vontade seja livre e sua execução se dê de boa-fé, vinculando, a partir de então, a pessoa obrigada, ou a que se obrigou, de modo que, sua eventual recusa no cumprimento daquilo a que se autocompromissou faz surgir para seu credor a faculdade de compeli-lo, por via do Poder Judiciário, ao cumprimento a que se negou espontaneamente.

No caso sob análise, constatamos que não existe lei que obrigue o empregador-consulente a se ressarcir de modo incompleto na concessão de vale-transporte aos seus empregados. Pelo contrário. Conforme acima demonstrado, a lei lhe confere direito ao reembolso completo. Assim, concluímos que inexiste obrigação decorrente da lei, como resultado da análise de nossa primeira hipótese.

Quanto à segunda hipótese, qual seja, a de que haveria, para a empresa consulente, obrigação de se ressarcir a menor como resultado de sua inequívoca manifestação de vontade, fato que transformaria tal declaração em lei entre as partes, ou seja, entre ela e seus empregados, temos a ponderar:

01    – A empresa consulente desenvolve política de Gestão de Pessoas da qual faz parte a concessão de benefícios vários, cerca de 10 (dez), a seus empregados, todos eles, benefícios, delineados em seus contornos, definidos em seus conteúdos e expressamente assumidos por inequívoca e manifesta declaração de vontade, como se verifica, por exemplo, com o serviço de assistência médica.

Não consta, do manual que reúne os benefícios assumidos pela empresa, nenhuma menção à assunção de parcela de custo sobre os tickets de vale-transporte, por menor que seja, acima do que estabelecem as leis que regulamentam aquele instituto. Quando quis assumir determinadas obrigações, cujos custos se revelam, até, muito acima do valor descontado a menor pelo vale-transporte, a consulente o fez. Se assim não agiu relativamente ao vale-transporte, para incluí-lo no rol de benefícios acima descritos, conclui-se que não foi, nem é sua intenção fazê-lo.

02    - O mesmo se pode afirmar quanto ao contrato individual de trabalho celebrado entre a empresa e cada um de seus empregados, ou seja, não se encontra em seu corpo nenhuma cláusula que se afigure declaração de vontade direcionada para a redução, ou do percentual de 6%, ou da base salarial mensal com que devem contribuir para a composição de custos do vale-transporte.

A empresa não declarou vontade expressa no sentido de fazer qualquer tipo de concessão ou alteração, para menor, nos parâmetros estabelecidos na legislação para a utilização do vale-transporte. Então, pode-se afirmar que a consulente, a contrario sensu, declarou vontade tácita no sentido de fazer prevalecer, quanto à composição de custos e utilização do vale-transporte, estritamente o que prevê a lei.

Não se pode confundir o direito ou obrigação contida na vontade declarada com o modo concebido para exercita-lo ou cumpri-la.

Resta claro, conclusivamente, que a vontade declarada tacitamente e a obrigação assumida pela consulente quanto à concessão de vale-transporte aos seus empregados vão ao limite do que estabelece a lei, de modo que aos empregados restou a obrigação de reembolsar o empregador, também no limite da lei, no percentual, tantas vezes já mencionado, de 6% sobre seus salários básicos. Ainda que concedido de modo inconsciente, o valor descontado a menor de cada empregado revela feição de liberalidade, conceito que de forma nenhuma pode ser confundido com o de obrigação.

Aliás, é de memória relativamente recente, de forma especial para o segmento de supermercados e o comércio de forma geral, os fatos havidos em 1.986, por ocasião do implemento do Cruzado como moeda de curso forçado, quando houve congelamento dos preços de todos os produtos por quase um ano.

Experimentados, os comerciantes, após a revogação da medida, mas, temerosos de que pudesse voltar a qualquer momento, passaram a vender seus produtos com preços acima do normal. Na prática, as notas apresentavam o preço “oficial”, mas concediam DESCONTOS a seus clientes, de modo tal que, caso houvesse novo congelamento de preços, poderiam, pela supressão dos descontos, praticar o “verdadeiro” preço de suas mercadorias, o que se constituiu uma forma legal de “driblar” a proibição de aumentar os preços.

Por mais que perdurasse a prática comercial de concessão de descontos, por se tratar de liberalidade, e não obrigação, poderia ser abandonada a qualquer momento, sem que tal prática pudesse ser tachada de ilegal ou gerasse qualquer direito a indenização para aqueles que se beneficiaram enquanto ela vigeu.

 

Como citar o texto:

NASCIMENTO FILHO, Luiz Tomaz do..A alteração contratual unilateral lesiva e a teoria da incorporação no Direito do Trabalho brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 133. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-do-trabalho/670/a-alteracao-contratual-unilateral-lesiva-teoria-incorporacao-direito-trabalho-brasileiro. Acesso em 7 jul. 2005.

Importante:

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