Resumo

 

Esta é a história de dois irmãos, acusados de latrocínio por roubar e matar o primo que viajava com eles enquanto transportavam cargas. O delegado da cidade de Araguari pegou o caso e, sem provas, chegou à conclusão de que os irmãos eram culpados. A partir daí, ele e seus agentes fizeram todo o possível para comprovar sua culpabilidade, e não encontrando provas, obtiveram deles a confissão através de torturas contra eles e também contra sua família.

Os julgamentos deram aos Naves a sentença condenatória. Os irmãos permanecem presos por vários anos antes de receber liberdade condicional e, 2 anos depois, Joaquim falece devido ao trauma deixado pelas torturas. Benedito descobre que seu primo está vivo e entra com uma ação contra o estado para reparar o dano causado a toda sua família. O estado paga um grande indenização pelo erro cometido, e limpa o nome da família Naves.

O grande erro de todo o processo criminal foi a não observância aos princípios e normas da justiça da época. A não averiguação dos fatos e irrelevância da falta de provas, imaterialidade do caso, em nenhum momento freou as torturas - contra os irmãos e toda a família - e a tentativa de culpar os acusados, colocando-os atrás das grades.

Se analisado de acordo com os pilares do direito penal atual o caso não teria tomado este rumo. O código vigente prevê vários princípios a serem respeitados, que defendem a humanidade, integridade, garantias e direitos dos acusados. Por mais que as lacunas da lei da época deixassem o processo um pouco menos exigente, é certo que a justiça deveria proteger ao menos estas garantias dos indiciados.

No final do processo os verdadeiros culpados seriam os oficiais, que praticaram crimes mantendo os Naves em cativeiro e torturando-os, ofendendo vários princípios do Código Penal, e várias garantias impostas pela Constituição Federal de 1988. Outro culpado que deveria ser responsabilizados por todos os danos causados à família foi o primo, Joaquim, o verdadeiro ladrão da história, que se encontrava vivo e escondido, enquanto seus primos eram perseguidos e acusados de sua morte.

 

 

 

 

Abstract

This is a story about two brothers (surname Naves), charged and prosecuted of rob and murder of their cousin, whom they used to travel with transporting cereals. Araguari’s police chief, without any proof, assumed the brothers to be guilty. Then, he and his agents, did the best they could to prove Naves’ guilt. Finding no proof, the officials managed to get the statements they wanted by torturing the Naves, their mother and wives.

The brothers were convicted of the crimes. They were kept in prison for many years, before receiving conditional freedom. Two years later, Joaquim died because of traumas from his prisoner days. Benedito finds out that his cousin was still alive and sued the State because of the psychological damage he and his family had received. They earn a large amount of money, as well as having their names cleared from any previous criminal responsibility.

The biggest mistake of the whole process was that none of the fundamental criminal principles were taken into account. The poor investigations, along with the lack of proof could not save the brothers and their families from tortures – as well as the try to guilt and convict the Naves.

Taking into account the basis of Criminal Law, the case would not have had such a terrible outcome. The current Law guarantees a lot of principles to be respected in a prosecution, guarding humanity, integrity, and rights of the charged. Although the former Law was clearly soft in the process, it’s undoubtfull right to say that it should have stated another measures regarding the basic Criminal principles.

At the end of the process, the real guilty were the officials, who used to keep and torture the brothers, offending the already cited Criminal, and extending lines, Constitutional basis. Another one who should have been punished was the cousin, the actual robber, who remained alive with all the money while the Naves were suffering the convicted-of-rob-and-murder duties in prison.

 

 

 

 

 

Sumário

1-Introdução

2- O Caso dos Irmãos Naves

2.1 A Fuga de Benedito e Seus Desdobramentos Iniciais

2.2 As Ações do Novo Delegado

2.3 O Advogado dos Naves

2.4 Mais Medidas Repressivas e Julgamento

2.5 Desfecho do Caso

3- Os Princípios do Direito Penal Contemporâneo

3.1 Lesividade

3.2 Culpabilidade

3.3 Aplicação dos Princípios no Caso

3.3.1 Lesividade

3.3.2 Culpabilidade

4- Provas de Afirmação da Culpabilidade

4.1 Vestígios

4.2 Corpo de delito

4.3 Perícia

4.4 Exame de Corpo de Delito

4.5 Confissão e Corpo de Delito

4.6 O caso dos irmãos Naves e a exclusão da culpabilidade

5- Considerações Finais

6- Referências Bibliográficas

 

 

 

 

 

 

1 Introdução

O trabalho tem como meta o estudo das garantias e direitos dos acusados no caso dos irmãos Naves de acordo com o Direito Penal atual. Procura tratar do caso com as normas e princípios vigentes no nosso ordenamento jurídico, em especial no Direito Penal, abrangendo todos os princípios que se encaixam no caso, e a maneira como foram desrespeitados.

Procuramos estudar toda a omissão dos oficias para com o caso e acusados, assim como a falta de prudência em seu processo. Mesmo com tantas lacunas na lei da época, esta não permitia o total desrespeito à humanidade, integridade física e moral dos acusados. A confissão, obtida através da tortura, não provaria sua culpa, seria necessária a materialidade, vestígios do crime cometido, e que, evidentemente, não foram encontrados.

É apresentada a história dos irmãos Naves, juntamente com os elementos da perícia que deveria ser realizada, os princípios e normas desrespeitados, e o parecer do grupo sobre quem seriam os verdadeiros culpados da trama de acordo com o Direito penal vigente.

 

 

 

 

 

 

 

 

2 O Caso dos Irmãos Naves

2.1 A Fuga de Benedito e Seus Desdobramentos Iniciais

No interior de Minas Gerais, em Araguari, em 1937 , com a implantação do Estado Novo, a economia estava em uma queda constante, principalmente no setor agrícola.

Em meio a esse caos se encontram os irmãos Joaquim Naves Rosa e Sebastião José Naves, 27 e 32 anos, respectivamente, casados, junto com seu primo Benedito Pereira Caetano (solteiro). Os irmãos eram comerciantes de cereais, sendo que Joaquim e

Benedito eram sócios em um caminhão, que usavam para transportar cereais e vendê-los em outras cidades.

Benedito, com ajuda de seu pai, comprou uma quantia enorme de cereal apostando no mercado; Entretanto, com o mercado irregular, teve que vender sua safra por uma quantia muito abaixo do preço, aumentando assim sua dívida. Com as últimas vendas, Benedito tinha ainda cerca de 90 contos de réis – dinheiro insuficiente para abater sua dívida total. Com tudo isso, Benedito pega a soma de dinheiro e foge da casa de Joaquim, onde estava hospedado.

Não sabendo de sua fuga, após procurar Benedito por todas as partes, seus primos acionam a polícia para que esta tome alguma medida. Ismael Nascimento, um civil que exercia a função de delegado, abre um inquérito para investigar o desaparecimento de Benedito. O inquérito correu, como era esperado, com muitas dificuldades sobre os pontos acerca do paradeiro de Caetano. No final do ano, o governo nomeou um novo delegado para o caso, trocando o civil por um militar - apresentando marcas do regime ditatorial de Getúlio Vargas - o tenente da Força Pública Francisco Vieira dos Santos (Chico Vieira).

2.2 As Ações do Novo Delegado

Alguns dias depois, surge Zé Prontidão, primo dos Naves, afirmando ter visto Benedito em Uberlândia. A família Naves logo conta o fato ao delegado, que pede para Zé Prontidão ir à delegacia dar seu depoimento. Porém, o delegado acaba por prendê-lo.

Chico Vieira, então, formula a hipótese de que os irmãos Naves tenham matado Benedito para ficar com os 90 contos de réis. Levando em conta a hipótese, o delegado determina a prisão de Sebastião e Joaquim para interrogá-los sobre o desaparecimento de seu primo, a partir desta nova suposição levantada.

Após um tempo detido, Zé Prontidão é chamado para prestar novo depoimento. Estranhamente com aparência bastante ruim, Prontidão concorda com tudo o que o delegado afirma, sendo manipulado.

Com os Naves presos, e a idéia de que foram eles mesmo os responsáveis pelo sumiço de Benedito, os irmãos foram obrigados a sofrer torturas de formas físicas e psíquicas. Como estas torturas incrivelmente não foram o bastante, Chico Viera prende a mãe, Ana Rosa Naves, 66, suas esposas e seus filhos. Submetendo-os ao constrangimento de ficarem todos nus, mãe e filhos têm que agüentar o espancamento dos irmãos, a ameaça de matá-los, a tortura de suas mulheres, os dias sem comida e água, ficar dependurado de cabeça pra baixo, morres simuladas... Era de se esperar, então, que o delegado conseguisse que dona Ana acusasse os seus filhos, para o término das torturas.

2.3 O Advogado dos Naves

Livre da prisão, dona Ana procura pelo advogado João Alamy Filho. Devido à repercussão do caso, Alamy acreditava na culpa dos irmãos, assim como acreditava a opinião pública. Contudo, depois de escutar os relatos e ver a situação de dona Ana, ele muda de opinião, aceitando ser o advogado da parte de Ana..

Segundo o advogado, a Constituição da época dizia: “Dar-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal..” (João Alamy Filho). Assim, foi em busca do habeas-corpus. Sebastião e Joaquim continuavam sendo torturados sem piedade. Todavia, já bem mais fragilizados, começam a fazer tudo o que o tenente manda. Esta era a deixa que Chico Viera precisava para montar os depoimentos de forma a confirmar a sua hipótese.

Dessa forma, o depoimento ficou

Que no dia vinte e nove de novembro do ano passado às duas horas da madrugada mais ou menos, estava em companhia de seu irmão Sebastião José Naves em sua casa, esperando a chegada de Benedito Pereira Caetano a fim de convidá-lo para um passeio a Uberlândia; que poucos momentos depois, chegava Benedito Pereira Caetano, na casa do declarante, sendo então convidado pelo declarante e o seu irmão Sebastião, para o dito passeio a Uberlândia; que Benedito Pereira aceitou o convite para o passeio referido, entrando no mesmo momento todos os três para dentro do caminhão, pondo-o em marcha, tomando a direção da ponte do Pau Furado, isto às três horas da madrugada; que, depois de atravessarem a referida ponte, isto pelas quatro horas da madrugada, mais ou menos, apearam do dito caminhão, o declarante, seu irmão Sebastião e Benedito, com o fim de tomarem água; que desceram o paredão até a margem do rio, estando seu irmão na frente, Benedito no centro e o declarante atrás, o qual levava oculta uma corda de bacalhau de um metro e tanto; que chegados na beira do rio, Sebastião agarrou Benedito pelas costas e o declarante fez um nó na dita corda, introduzindo-a pela cabeça de Benedito até o pescoço, apertando-a logo em seguida, e Sebastião em um movimento brusco largou os braços de Benedito auxiliando o declarante a apertar a corda; que, Benedito nesse momento desfaleceu, caindo de joelhos, até ficar sem vida, e que foi verificado pelo declarante e seu irmão Sebastião; que este logo em seguida procedeu a uma busca em Benedito, sacando da cintura deste um pano que o mesmo trazia amarrado à cintura, por dentro da cueca e onde o declarante e o seu irmão sabiam que existia a importância mais ou menos de noventa contos de réis em dinheiro, cuja importância o seu irmão Sebastião depositou em uma latinha de soda adrede preparada pelo declarante para esse mesmo fim que transportou-a de sua casa; que em seguida seu irmão Sebastião pegou o cadáver de Benedito pela cabeça e o declarante pelos pés, atirando-o na cachoeira do Rio das Velhas, do lado de baixo da ponte; tendo deixado na beira do dito rio a corda com que se utilizaram para a execução do crime e o pano onde continha o dinheiro que a vítima conduzia; que, em seguida tomaram o caminhão de volta para esta cidade; que, em certa altura, nas proximidades da fazenda de Olímpio de Tal, o declarante que guiava o caminhão, fez uma parada por ordem de seu irmão Sebastião; que conduzia o dinheiro, deixando em seguida o caminhão na estrada entrando para o mato, beirando uma cerca de arame, numa distância de uns quinhentos metros ou talvez um quilômetro, pararam ambos em uma moita de capim gordura onde Sebastião começou a cavar um buraco com as unhas, sempre de posse da lata onde se continha o dinheiro e, auxiliado pelo declarante que ainda ajudou a acabar de furar o dito buraco, onde enterraram a lata que continha o dinheiro. Diz o declarante que fizeram de balisa duas árvores das proximidades a fim de que em ocasião oportuna fossem retirar o fruto do saque.(apud BARBALHO,2007)

Diante desse depoimento, o delegado-tenente faz a reconstituição do crime, que nada mais era que suposição de Chico Viera sobre o caso. Na reconstituição, Chico Viera faz Joaquim cavar em todos os lugares na dita fazenda onde falou que tinha escondido o dinheiro, em busca do mesmo. Essa seria a prova material que daria certeza à sua hipótese. Não achando nada, o delegado muito irrita-se e formula outra idéia: a de que Sebastião já havia pego o dinheiro e colocado em outro lugar, na fazenda de seu cunhado, Inhozinho..

Com habeas-corpus conseguido em Uberlândia, João Alamy Filho dirige-se ao juiz local, que era apenas juiz de paz. Este diz já ter ordenado a soltura dos irmãos, mostrando papel confirmando sua palavra. Entretanto, o advogado nega o fato, falando que o tenente jamais tinha soltado os irmãos.

2.4 Mais Medidas Repressivas e Julgamento

Na fazenda de Inhozinho, os policias agridem todos os presentes e perguntam sobre o tal dinheiro, que ninguém sabia coisa alguma. Mesmo completamente ignorante sobre o assunto, Inhozinho é levado preso.

O delegado continua pressionando Joaquim com perguntas-afimartivas, além de envolver sua mãe, sua esposa e a esposa de Sebastião. As mulheres sofrem ameaças e torturas para que dissessem tudo como Vieira desejava.

No julgamento

a primeira testemunha foi Miguel Camarano, que esteve presente na reconstituição do crime e na busca do dinheiro que o tenente dizia estar ali enterrado. Camarano recitou seu script, como queria o tenente, mas como o advogado dos réus, João Alamy Filho, reclamou ao juiz pela presença do tenente no tribunal, o que constrangia as testemunhas, ele o ameaçou com frases como “não posso responder pela segurança desse advogado” e “ele que se cuide”. A segunda testemunha foi o motorista que conduzia o tenente nas diligências e que se não via, ouvia os gritos dos acusados nas sessões externas de tortura e, também ele, recitou o script determinado pelo tenente. Após, Inhozinho testemunhou com medo e pelo medo acabou dizendo que era homem de bem e que não merecia as surras que havia levado, mas negou ter conhecimento de qualquer ato mal feito dos irmãos Naves. Testemunhou Antônia Rita, apavorada, que nem esperou perguntas, foi logo recitando tudo que o tenente a havia obrigado. Falou do passeio a Uberlândia, do marido ter desenterrado o dinheiro e entregue à mãe. Quando o advogado Alamy lhe pergunta sobre o que aconteceu antes de ela contar essa história ao tenente, ela fica mais amedrontada e começa a repetir mecanicamente tudo que já havia dito. Depôs Salvina, que disse a verdade, sem medo falou que seu marido não tinha saído na noite do sumiço de Benedito e, apesar de toda a sua segurança nas respostas, o advogado do pai de Benedito fez registrar que ela vacilou em algumas respostas.

Chega a vez dos acusados. A pergunta “têm algo a alegar a bem de sua defesa?”, Sebastião diz “Não” e Joaquim diz “Meu irmão é que quis matar Benedito”. Os dois dizem o que o tenente mandou. Donana, porém, na sua vez, diz que é inocente e que seus filhos também são inocentes. Que os dois e Antônia Rita estão doidos, que ela não recebeu dinheiro nenhum, que isso é doidice ou pancada, que todos apanharam muito. (apud BARBALHO,2007)

No dia 17 de março de 1938, toma posse um juiz de fato. Imediatamente, João Alamy Filho entrega novo habeas-corpus devido ao não cumprimento do primeiro. Tão logo o habeas-corpus é recebido, é ordenada a soltura dos acusados. Apesar da ordem, um oficial afirma que o delegado não poderá soltar os acusados devido à pendência de determinados assuntos. O advogado alerta o novo juiz de que o delegado só está o ludibriando, como fez com o juiz de paz, e assim continua mantendo os presos em condições sub-humanas.

Depois de analisados materialidade e indícios, o novo juiz profere a sentença de pronúncia (trechos):

O crime de que se ocupa este processo é da espécie daqueles que exigem do julgador inteligência aguda... pois, no Juízo Penal, onde estão em perigo a honra e a liberdade alheias, deve o julgador preocupar-se com a possibilidade tremenda de um erro judiciário... É certo que não há notícia do paradeiro da vultosa soma... Informa o patrono dos acusados que tais confissões são produto de maus tratos e desumanidade... Compulsadas as páginas do processo com a maior cautela, não se divisa, porém, a prova de extorsão das declarações dos inculpados... As informações de Antônia Rita são impressionantes, pois desvendam a conversa íntima havida entre marido e mulher, revelam o bárbaro crime nos mínimos detalhes... E não se diga que tais declarações foram extorquidas pela Justiça... A confissão do réu prestada na polícia constitui meia prova, como adverte Edgar Costa... até mesmo a confissão alcançada por meio de torturas, uma vez que coincida com as demais circunstâncias do crime... Se de um lado se levanta a acusação forrada de monstruosidades, do outro se ergue a voz da justiça, imparcial e humana, por isso mesmo sujeita às contingências da fatalidade... Julgo procedente a denúncia para pronunciar, como pronuncio, os indivíduos Joaquim Naves Rosa e Sebastião José Naves. (apud BARBALHO,2007)

No dia 17 de junho do mesmo ano, vão a julgamento os irmãos Naves, que relatam o seguinte em

julgamento, pergunta o juiz ao primeiro réu:

- O réu Sebastião José Naves tem algo a alegar a bem de sua defesa?

- Tudo que disse foi de medo e pancada, seu juiz... Sofri até não poder mais, para soltar as mentiras desse processo... Me davam purgante... me amarravam, me surravam tanto, tanto que depois não podia mais... Meu corpo se encheu de sangue... até minha mãe apanhou... deixaram ela nua... aguentei 38 dias... Aí tive que falar mentira... qualquer um falava daquele jeito... Juro por Deus e meus filhos... sou inocente.

O juiz pergunta ao segundo réu:

- O réu Joaquim Naves Rosa tem algo a alegar a bem de sua defesa?

- Não matei... não fiz nada, seu juiz... sou inocente... Falei por causa dos espancamentos, das ameaças, falei por causa de seu delegado... Tudo que eu disse foi para não sofrer mais. O delegado me forçou... Falou até que tinha matado meu irmão... Ele vai me bater ainda mais, seu juiz... Pelo amor de Deus... Não me manda mais para o seu delegado... Ele vai me bater de novo, seu juiz. (apud BARBALHO,2007)

2.5 Desfecho do Caso

A decisão proferida na sentença foi a de absolvição dos réus Joaquim Naves Rosa e Sebastião José Naves por maioria absoluta de votos, julgando não procedente as acusações feitas pela Justiça publica. Entretanto, a promotoria recorre sobre a sentença dada.

Em 21 de março de 1939, os irmãos Naves são julgados e absolvidos novamente, mas o Ministério Público recorre outra vez. No dia 4 de julho do mesmo ano, são julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e são condenados a 25 anos e meio de pena privativa de liberdade. Em 1940 houve revisão penal, reduzindo a pena para 16 anos de reclusão.

Após 8 anos de detenção, os irmãos são soltos em liberdade condicional, por bom comportamento. Todavia, 2 anos depois Joaquim Naves Rosa vem a falecer devido a traumas que as torturas deixaram.

Tempos depois, Sebastião fica sabendo da volta de Benedito à casa de seu pai, depois de 15 anos do acontecido, não sabendo de nada que a sua fuga havia provocado aos irmãos Naves.

Apesar de não poder formalizar nada contra Benedito, Sebastião e seu advogado embarcam em ações judiciais contra o Estado, para provar a inocência da família Naves e pedir indenização para sua família e descendentes pelos danos que sofreram por esse grande erro judiciário.

Após anos envolvidos em ações judiciais, Sebastião consegue indenização pelo erro (assim como limpar o nome da família). Infelizmente, ele morre apenas 2 anos depois, mas de certa forma tranquilo pelo desfecho do caso.

3 Os Princípios do Direito Penal Contemporâneo

A teoria Penal brasileira contemporânea apresenta complexas ramificações acerca da teoria do crime, tendo como diretriz alguns princípios básicos para a análise das questões criminais. Esta considera, por exemplo, o crime, composto por três elementos: conduta típica, ilícita e culpável. Há diversas considerações a serem feitas em cada caso delitivo, e essas serão feitas aqui com base no caso dos irmãos Naves.

3.1 Lesividade

“Não existe crime que não ofenda bem jurídico ou que não represente efetivo perigo a bem jurídico de terceiros”.

De acordo com o princípio da lesividade, não há crime se não houver perigo para uma pessoa, objeto, ou qualquer bem jurídico, uma vez que se não há perigo lesivo a algo, não há o que se punir.

3.2 Culpabilidade

O primeiro princípio se complementa com o da culpabilidade. Este afirma que no processo criminal é necessário comprovar a possível responsabilidade do autor e o acontecimento do crime.

Para que o acusado seja tido como culpado, é necessária a aplicação da responsabilidade subjetiva, na qual se deve sempre comprovar dolo ou, no mínimo, culpa. Afirma ainda que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5°, LVII, CF).

3.3 Aplicação dos Princípios no Caso

3.3.1 Lesividade

Pelo princípio da Lesividade: os irmãos não ofereceram lesão ou sequer perigo a bem jurídico. Por mais que houvesse dúvidas quanto a isso, deveria haver provas sobre a existência de eventual lesão ou mesmo tentativa, para que se pudesse ter alguma responsabilidade dos irmãos no caso. Estas provas, imprescindíveis, deveriam ser o grande alvo do trabalho dos agentes - que não as obtiveram - e é aí que recorremos ao princípio da culpabilidade.

3.3.2 Culpabilidade

Este apresenta a idéia de comprovação das hipóteses: é preciso ter provas para culpar o autor, e este “detalhe” não foi em momento algum observado pelos oficiais de justiça. Eles, à revelia da busca pelos fatos reais, com nada além de boatos, incerteza e vontade de obter respeito e agradecimento do povo daquela pequena cidade, decidiram que o processo com mente (e, posteriormente, sentença) condenatória era o meio mais rápido e prático de mostrar a todos o serviço prestado.

A partir do ponto em que os oficiais não se preocupavam se as acusações eram verdadeiras, querendo prová-las de qualquer maneira, a vida dos irmãos se tornou alvo de agressões - tanto contra eles, como contra mãe, esposas e filhos. Tentavam de forma brutal, mediante ameaças e os mais cruéis tipos de tortura, obter confissão de crime que não havia sido cometido. Os oficiais que cuidavam do caso já os consideravam culpados, ofendendo o princípio da culpabilidade e a Constituição Federal de 1988, que defendem que ninguém será considerado culpado até o dia de seu julgamento em que a sentença seja condenatória.

Todo este descuido e desatenção fizeram com que dois irmãos, que futuramente iriam ser descobertos inocentes, fossem condenados após longas seções de tortura em cativeiro, mantido pelos mesmos agentes da lei que deveriam cuidar da resolução do caso da melhor forma possível. O correto seria considerar seus depoimentos que afirmavam inocência, e não torturá-los para receber falsos depoimentos de que eram culpados.

4 Provas de Afirmação da Culpabilidade

Após a exposição de alguns dos conceitos norteadores do Direito Penal que fariam grande diferença se levados em consideração no caso dos irmãos Naves, devemos trabalhar de forma mais aprofundada outros pontos que são abarcados por tais direitos, para ficar mais explícito o efeito (e o processo de apreciação) dessas diretrizes no Direito contemporâneo.

No campo da culpabilidade, então, trabalharemos os conceitos de vestígio, corpo de delito, e exame de corpo de delito, os conceitos fundamentais em termos de prova, necessária para a afirmação da culpabilidade do sujeito.

4.1 Vestígios

É o rastro, pista ou indício verificável após a prática de determinado delito.

O vestígio é material quando pode ser averiguado sensorialmente, como nos casos de lesão corporal; É imaterial quando não pode ser detectado após a prática delitiva, como nos crimes de injúria verbal ou ameaça (por via oral, não documentada).

É interessante observar que, quando o crime é material, a lei se preocupa em exigir a constatação da materialidade, através do exame de corpo de delito, sendo que sem tal prova, a denúncia deverá ser anulada.

4.2 Corpo de delito

A prova da existência do crime, sua materialidade, é chamada corpo de delito. Este é direto quando provado através de laudos periciais, obtidos através do exame de corpo de delito, e indireto, quando há a aceitação da prova da prática criminosa por meios testemunhais, sem peritos.

É necessário afirmar que toda infração penal possui corpo de delito, materialidade, prova de sua existência, ainda que esta não seja mais observável após algum tempo.

4.3 Perícia

É um meio de prova obtido através do exame do(s) objeto(s) por especialistas ou técnicos, que podem afirmar ou extrair conclusões pertinentes ao processo. É expressamente exigido em infrações penais que deixam vestígios materiais – é a essência do exame de corpo de delito.

4.4 Exame de Corpo de Delito

É a verificação da prova da existência do crime, feita por peritos, diretamente, ou por intermédio, quando os vestígios, ainda que materiais, desapareceram, como ensina Guilherme de Souza Nucci (2007).

O exame de corpo de delito pode ser direto, quando o objeto está disponível nitidamente para o exame dos peritos, que na sua posse fazer a perícia e constituem seu laudo; e pode também ser indireto, quando através de provas (geralmente previamente regulamentadas pelo ordenamento jurídico), os peritos podem produzir afirmações certas sobre o caso.

Nota-se que não se deve confundir exame de corpo de delito indireto com corpo de delito indireto. Enquanto o primeiro é feito por peritos, com base em circunstâncias que deixam a certeza do fato praticado pelo autor, o segundo é formado por pessoas sem capacidade técnica diferenciada, que por ventura puderam verificar a ocorrência do delito.

4.5 Confissão e Corpo de Delito

No atual ordenamento jurídico brasileiro, a confissão do réu não pode suprir o exame de corpo de delito. A única forma de esta lacuna ser preenchida é a prova testemunhal.

Este dispositivo legal foi muito bem desenvolvido pelo legislador, uma vez que a segurança no processo penal, incluindo-se a observância a todos os princípios constituintes do devido processo legal, é essencial para a correta percepção da realidade por parte do juiz (ou do júri) para uma sentença realmente justa.

Há diversos motivos para uma pessoa confessar algo erroneamente, com detalhes diferentes dos que aconteceram de verdade, ou mesmo algo que não cometeu. Assim, nos parece acertado que a confissão não possa, sozinha, ser considerada como prova da prática delitiva, o que estimula um processo justo, imparcial e seguro para os acusados.

4.6 O caso dos irmãos Naves e a exclusão da culpabilidade

Como dito anteriormente, a confissão não é motivo para a afirmação da culpabilidade – sozinha, ela não é tida como prova de nada.

É interessante pensarmos que tal disposição legal foi observada justamente para que casos como os dos irmãos Naves, que foram obrigados a confessar um crime que não cometeram sob tortura, não acontecessem mais, uma clara evolução no sistema penal brasileiro.

Como no caso trabalhado a única prova obtida do crime foi a confissão dos acusados, a denúncia, hoje, seria anulada, e não haveria a prisão ou qualquer sentença condenatória contra os Naves.

O crime (homicídio) é material, deixa vestígios, e a constatação de sua consumação deveria ser dada ou pela observância do cadáver, ou por laudo pericial que, com base em certos dados, pudesse dizer que, de fato, a morte houvera ocorrido. Se nada disso pudesse ser feito, a prova testemunhal poderia ser levada em conta, mas entre os civis, nada passou de boataria, não houve quem de fato testemunhasse o ocorrido (até porque, como ficou sabido depois, a morte não ocorreu).

Sendo assim, levando em conta as disposições do Direito Penal contemporâneo, os irmãos Naves até poderiam ser indiciados, mas o processo incorreria em nulidade por falta de provas, excluindo a culpabilidade e o crime, já que este é considerado uma conduta típica, ilícita e culpável – e este último requisito nunca fora observado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

5 Considerações Finais

Estudando o caso dos Irmãos naves, trabalhamos com a aplicação de princípios, normas, acusações não avaliadas, responsabilidade não comprovada, exames que deveriam ser feitos e a conduta dos oficiais que guiaram o caso para o desfecho trágico e equivocado.

A não aplicação correta dos princípios deu ao caso a amplitude necessária para comover toda uma cidade, colocando-a contra os inocentes, e fazendo com que eles fossem condenados, não acreditando que suas confissões foram obtidas sob tortura, e que o dinheiro, fruto do latrocínio do qual era acusados, estava na verdade com seu primo. Este se mostrou o verdadeiro culpado da história, juntamente com os agentes e suas condutas ilícitas para obter uma falsa confissão que os incriminasse.

A conduta dos agentes nos leva a pensar quem seriam os verdadeiros culpados da trama - os que foram penalizados injustamente, ou os que mantiveram dois homens em cativeiro, maltratando-os das piores maneiras possíveis, física e psicologicamente? Não seriam eles os que cometeram uma conduta típica, ilícita e com certeza culpável, que ofenderam bem jurídico e representavam efetivo perigo a terceiros, que cometeram os crimes com dolo, premeditação, ofendendo o princípio da humanidade da pena e a Constituição Federal, que em seu artigo 5°, XLVII, “e”, defende que não haverá penas cruéis; e no mesmo artigo, inciso XLIX – “é assegurado aos presos a integridade física e moral”.

Ora, se estas garantias estão asseguradas a aqueles que foram penalizados após sentença condenatória, que há de se dizer daqueles que não passaram ao menos pelos julgamentos? Por estes equívocos recorrentes, este é considerado o maior erro judiciário da história.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Saraiva, 2007

NUCII, Guilherme Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6. Ed.. Revista dos Tribunais, 2007.

MOTA, Edilvo. O Caso dos Irmãos Naves. Portal de Araguari. Disponível em: http://portaldearaguari.blogspot.com/search?q=caso+dos+irmaos+naves Acesso em: 26 de Maio de 2009.

 

Data de elaboração: agosto/2010

 

Como citar o texto:

CAETANO, Luís Mário Leal Salvador ..O caso dos irmãos Naves sob a ótica do atual Direito Penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/2093/o-caso-irmaos-naves-sob-otica-atual-direito-penal. Acesso em 18 dez. 2010.

Importante:

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