As questões relativas ao desenho do primeiro mapa genético humano constituem, seguramente, uma das grandes discussões da história da ciência moderna. Mas o descobrimento, para além de sua extraordinária relevância científica, também carrega consigo importantes conotações filosóficas, jurídicas e morais.

 

Em 1859 Charles Darwin publicou sua teoria sobre a origem das espécies, que integrou ao homem no mundo animal e transformou para sempre o modo de pensar de todas as pessoas ilustradas do planeta. Um fato que seria qualificado por Freud como “a segunda maior ofensa da humanidade”. Cinco anos depois, o papa Pio IX editou um anatema contra a modernidade no qual se condenavam os horrores perpetrados pelo homem contra Deus, entre eles a teoria da evoluçao das espécies. Pois bem, a obra teve, como se sabe, uma repercussão enorme e ainda hoje se enfrenta a opositores viscerais. Por que? Porque existe certa concepção teológica da vida que defende um criacionismo plano, de muito escassa consistência para além dos limites da fé. Segundo essa concepção, posto que Deus é criador, as criaturas devem manter-se sujeitas em tudo a Sua vontade, de modo que qualquer manifestação de vontade própria, de automodelação virtuosa do caráter , já é sintoma de pecado.

A tacanhez desta concepção teve conseqüências nefastas em muitos campos: no terreno político serviu durante muito tempo para opôr-se a qualquer sistema democrático, porque parecia que a democracia limitava o poder de Deus sobre a sociedade; no terreno moral se usou para estrangular a consciência individual e para submetê-la à autoridade religiosa como expressão da vontade de Deus; e, no terreno da ciência, não é nada estranho que tenha sido utilizada para jugular - por perverso e manipulável receio - os descobrimentos ligados a um melhor conhecimento da própria natureza humana, posto que este autoconhecimento devia comportar um melhor autocontrole e, por conseguinte, uma maior capacidade de autonomia.

O certo é que os opositores do caminho percorrido a partir de Darwin são contrários, de fato, a uma idéia fundamental da época moderna: a da autonomia da pessoa frente a qualquer tipo de controle político, religioso e ideológico. Daí que a ciência, que tem ajudado de forma extraordinária a construir sociedades seculares e democráticas, tenha sofrido alguma oposição. Afortunadamente, esta visão teológica não é a única existente, ainda que em boa medida seja responsável por uma atitude medrosa, pusilânime e defensiva ante qualquer avanço científico ligado à biologia ou à genética.

Claro que em um terreno tão delicado como o do controle genético, a prudência parece ser sempre uma boa atitude. Mas não deveríamos ser prudentes por medo a mais autonomia senão mais bem pela vontade de assegurá-la a qualquer custo. Porque a ciência , que seguramente servirá para garantir mais conhecimento sobre a natureza humana, não poderá garantir, por si mesma, mais respeito à vida , à igualdade e à liberdade humanas. Neste ponto são legítimos os interrogantes e as dúvidas morais e jurídicas, ainda que alguns argumentos que se têm manipulado sobre o tema sejam excessivamente ingênuos ou excessivamente precipitados.

Por exemplo, resulta certamente ingênuo pensar que a fabulosa inversão econômica da investigação sobre o genoma humano – inversão que apenas há começado – não pretenda obter benefícios. E resulta igualmente ingênuo pensar que esses benefícios sejam somente econômicos. Se o poder político e social se baseia no controle, é evidente que o controle genético concede um poder de primeira ordem. Por agora, contudo, encontramo-nos em uma fase da investigação na qual parece recomendável, sem excessivo risco, a cooperação conjunta entre empresas privadas e públicas, simplesmente porque interpretar com exatidao, controlar e modificar o código genético não está ainda ao alcance de ninguém; e isso é, afinal, o que dará realmente algum poder.

Não obstante, parece igualmente razoável considerar, desde já, a necessidade de se desenhar um modelo normativo e institucional que, num futuro não tão distante, trate não somente de viabilizar o acesso de todos por igual aos benefícios provenientes da revolução genética em biología molecular, como, e muito especialmente, de evitar que alguns (ou muitos) possam sair enormemente prejudicados por um particular uso e aplicação da ciência genética. Isto é, de um modelo normativo e institucional que, assegurando a equidade da distribuição de benefícios e cargas como uma questão de justiça social, trate de disciplinar eticamente essas investigações na busca de encontrar pontos de equilíbro para acomodar as expectativas (culturais , biológicas, de validade jurídico-social e de legitimidade substancial) de uma comunidade de indivíduos diante da qual a qualidade de suas normas será medida por sua humanidade, pela precisão de sua adesão à natureza e às necessidades humanas.

Mas também resulta precipitado pensar que este primeiro mapa genético já nos abre a porta a uma humanidade melhor. Me temo que isso seria simplificar as coisas ao extremo. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também um naturalismo ingênuo pode fazer-nos conceber ilusões impróprias. Porque não é definitivamente certo que um melhor conhecimento dos condicionantes genéticos dos humanos nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples!

Quem pensa que a natureza é tudo esquece que, a esta altura da história, o conceito de natureza resulta muito complicado, porque os humanos somos não somente o resultado de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural. O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. A genética nos ajudará a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo.

Assim que, embora ainda não saibamos grande coisa sobre nossa misteriosa natureza, converter esse mar de especulações sobre o uso das intervenções genéticas em benefícios reais para o homem é decerto a tarefa que se espera da ciência , no preciso sentido de que uma compreensão mais profunda das causas últimas do comportamento humano poderá vir a ser de grande utilidade para saber quais são os limites e as condições de possibilidade da relação entre genes, cultura, justiça e natureza humana no contexto das sociedades contemporâneas.

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahulpa; FERNANDEZ, Athus..Genoma humano. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 175. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/1188/genoma-humano. Acesso em 23 abr. 2006.

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