UMA VERGONHA

 

A madrugada de 2 de dezembro de 1995 foi a última na vida de Joana Martins Couto. Ela contava apenas 16 anos quando entrou no carro do famoso jogador de futebol Edmundo de Souza Neto, conhecido pelo apelido de “Animal”. Nas primeiras horas daquela manhã, a mãe de Joana, Eliane Martins, seria avisada de que sua filha estava morta.

Na Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal da cidade maravilhosa, o Cherokee do atacante se chocou, em alta velocidade, com o Fiat Uno dirigido por Carlos Frederico Pontes de 24 anos. O carro de Edmundo capotou várias vezes até parar com as rodas para o ar. O Fiat foi jogado a uma distância de 30 metros e colidiu com um poste. Carlos morreu na hora. A namorada dele, Alessandra Perrota, de 20 anos de idade, morreu horas depois no hospital Miguel Couto. Houve mais 3 pessoas feridas, sendo que uma delas correu sério risco de ficar paralítica.

Em 26 de outubro de 1999, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou o “Animal” à pena de 4 anos e 6 meses de detenção. Edmundo interpôs recursos para os Tribunais superiores, que dispunham de 8 anos para julgá-los antes que ocorresse a prescrição. A Justiça demorou mais de 10 anos para cumprir o seu dever. Quando os autos foram remetidos para o Supremo Tribunal Federal já estava extinto o direito de punir o réu. Edmundo não vai responder pelos crimes que cometeu, pode gozar das delícias da impunidade.

É certo que a evolução da humanidade retirou do homem o poder de resolver seus conflitos através da imposição de sua vontade. O Estado assumiu este papel, via jurisdição, pela qual substitui os conflitantes, determinando a solução dos interesses em colisão. A atuação do Estado-Juiz não se faz arbitrariamente. Ela se desenvolve através de um método: o processo. Neste, aquele que sofrerá os efeitos da decisão tem o direito de apresentar a sua verdade, as suas provas, os seus recursos. Nada mais natural dentro do Estado Democrático de Direito.

No fundo, a essência da atuação estatal está em buscar a harmonia social. Os ensinamentos sagrados apontam que é preciso seguir sempre em frente, superando as dores que a vida nos traz. Sem isso, seria insuportável viver, pois resumiria a aventura humana em desperdiçar o futuro para cuidar de um passado que nunca se apaga. Nesta medida, a prescrição constitui instrumento jurídico de pacificação, já que se vale de dois remédios para curar o sofrimento de quem fora lesado: o tempo decorrido e a inércia do interessado. De fato, ao deixar de agir para responsabilizar quem lhe causou dano, perde o cidadão o direito à tutela judicial, pois não se deve eternizar o conflito pela negligência do interessado. Se não agiu, é porque o tempo curou a ferida.

O problema surge quando o sistema se torna uma mentira. A mãe de Joana não se mostrou inerte no que lhe competia fazer. Não postulou qualquer medida que retardasse a decisão definitiva. Pelo contrário, o réu, condenado no 1º e 2º graus, é quem interpôs os recursos que demoraram mais de 10 anos para serem julgados. Por sua vez, o Estado, que assumiu o dever de solucionar o delito, é quem deixou de exercer - no prazo legal - a indisponível função de julgar.

Após 16 anos de espera e de esperança, a mais alta Corte do país – na verdade - condenou as vítimas a morrerem sufocadas pela dor da impunidade. De fato, a prescrição só pacifica quando atinge aquele que se revelou displicente. Jamais poderia beneficiar quem a provocou. Da forma como vigora, o instituto é incompatível com o Estado Democrático de Direito; revela-se, na essência, desprezo.

Eliane Martins viu sua filha morrer aos 16 anos, sem nada poder fazer. Esperou por mais 16 anos uma resposta decente do Estado, sem nada poder fazer. Edmundo pode viver em paz.

 

Data de elaboração: setembro/2011

 

Como citar o texto:

ANDRADE, Cássio Roberto dos Santos ..Uma vergonha. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/2378/uma-vergonha. Acesso em 6 dez. 2011.

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