A evidência de que nos dias que correm siga imperando entre as altas instâncias da hierarquia dominante brasileira os esquemas que relacionam de maneira vinculante Estado e religião é a melodramática decisão do Plenário do STF que declarou constitucional o ensino religioso confessional na rede pública de ensino brasileira. Sem desmerecer a possível (e sempre invisível) intervenção do Espírito Santo no referido julgamento (não, evidentemente, com a mesma intenção e propósito com que seduziu a entregada Virgem porque aqui, sendo o caso, apenas violou a «Lei das leis»), venceu a sagrada superstição organizada, o «pensamento mágico», a «moral com Deus»[1] e todo um conjunto de misteriosas doutrinas e dogmas que só contam com um respaldo empírico direto anedótico. O obscurantismo chega às mais altas esferas com notórias vantagens à Santa Igreja Católica.

“Graças a Deus”, porque a partir de agora e com toda segurança constitucional ensinarão aos nossos “baixinhos” que para encontrar respostas às perguntas sobre a realidade é necessário que creiam “en la existencia de un Ser más, invisible, inefable, presente «en algún sitio por ahí arriba»[2], un creador omnipotente a quien nosotros, pobres criaturas limitadas, somos incapaces siquiera de percibir, y menos aún de comprender”(Salman Rushdie). Também aprenderão, entre outras sacrossantas fábulas, a crer em seres sobrenaturais, na graça e no pecado, no céu e no inferno, na transubstanciação, na reencarnação, na Santíssima Trindade, na virgindade da “Virgem Maria”, no paraíso e no fogo infernal (o castigo eterno no lugar mais horrível, para sempre), no poder das plegárias de intercessão... E o mais importante: que tudo o que existe foi criado do «nada» por Deus, que este foi movido por sua infinita bondade, que tudo existe para sua glorificação e que este mesmíssimo Deus protege e guia tudo o que criou.  Além desses benefícios, o que mais se pode pedir?       

Por desgraça, alguns indivíduos, em suas brumosas obscuridades mentais, esta baixada aos infernos que às vezes propõe nossos neurônios e sinapses, não deixam de questionar-se se, em tempos de autêntica hipertrofia religiosa, de um exibicionismo insano e obsessivo de crenças religiosas, símbolos e orações é sensato  imiscuir a superstição organizada na educação de menores; se acrescenta algo o ensino religioso em escolas públicas feitas uma calamidade, cada dia mais ruinosas, com má educação, falta de meios e recursos adequados, com professores despreparados e mal remunerados, alunos deprimidos e desorientados; se pais e mães preferem que seus filhos sejam capazes de crescer como adultos maduros e racionais, que saibam enfrentar-se ao mundo real com conhecimento fidedigno deste, ou que obedeçam as doutrinas de uma religião qualquer, com o latente perigo de provocar-lhes dano em sua educação e, portanto, em seu desenvolvimento como pessoa; se é útil ensinar a uma criança que um pássaro sedutor (Espírito Santo) foi capaz de fecundar e engravidar a uma fêmea humana virgem; se é possível confiar nas ensinanças de uma classe de indivíduos que creem firmemente que com o dom da palavra alguns sapiens detêm o singular e misterioso poder de converter um biscoito e vinho – literalmente – no corpo e o sangue de um carpinteiro palestino cuja execução representou nada menos que a redenção da humanidade. E já que estamos: se a doutrinação religiosa em uma idade mentalmente vulnerável não constitui uma forma de «abuso infantil» ou um atentado contra a liberdade individual (já que a religião é implantada no cérebro das crianças muito antes que possam ser capazes de decidir entre o que querem crer e o que não; melhor dito: que possam discernir criticamente entre o que é real e o que não é).

Em um mundo racional, a evidência, as provas e os melhores argumentos são os que convencem: a “educação” religiosa baseada em “mistérios” (este curioso mecanismo que permite, graças à ausência de resposta e de provas, que tenhamos resposta para tudo, para justificar o injustificável), especialmente a que estabelece evidentes privilégios para a Igreja Católica, escarniça a autonomia individual, amordaça a liberdade, viola e manipula cérebros indefesos, silencia aos cordeiros, alimenta a idolatria, fomenta a possibilidade de que os indivíduos não se reconheçam entre si como iguais, discrimina com base em ideias ou crenças infundadas, destroça a pulcritude e os benefícios da laicidade[3], além de jogar no lixo a natureza não confessional do Estado e de suas instituições... Um brutal insulto à dignidade humana[4]. Mas não vivemos neste tipo de mundo. Bendito é o fruto! 

Intentarei acomodar os neurônios do indulgente leitor (a) ao redor do que acabo de dizer para que ninguém incorra em enganos. Em uma sociedade em que certa cultura de docilidade, de resignação e de interferências arbitrárias parece ser a regra, a impostura do ensino religioso confessional não representa, depois de tudo, nenhuma grande ameaça à nossa desgastada condição de cidadão. Os hipercríticos, os acólitos de outras seitas religiosas e os indivíduos de pouca fé não deveriam temer as consequências desse tipo de educação que, em última instância, se destina a iluminar com luz vivíssima e certeira os fundamentos de nossa inexpugnável fé.

Ainda que todas as certezas predicadas pelas demais religiões não deixem de suscitar dúvidas em nosso espírito, que mais se pareçam a uma mitologia disparatada e que desafiem a inteligência de qualquer criança, o certo é que a grandeza da mensagem a que me estou referindo, de todas as supostas patranhas que nos ensinam, surge de uma verdade, a Verdade essencial, a VERDADE com maiúsculas: a (triunfante) religião católica, apostólica e romana, a boa, a única aceitável, a única digna de respeito e respeitada (prioritariamente) pelo Estado, no maior país católico do mundo.

A razão e a cautela rechaçam este tipo de argumento, essa forma de negação da relevância dos fatos? Pois dobremos nossa razão e nossa sensatez e aceitemos de uma vez por todas que tudo o que diga a religião, especialmente a ditada pela Igreja Católica, é certo. Abracemos de uma vez por todas o irracional, o transcendente, o inadmissível, o inverossímil e o indemonstrável, precisamente porque é indemonstrável. Adotemos de forma definitiva e incondicional a doutrina católica e pastemos alegremente nos prados que propõe a Igreja Católica como obedientes ovelhas do Senhor. É o fundamento da “incomparável” e legítima religião. Nada menos! Já sabem: com a Igreja Católica não se brinca… e nem se deve usar preservativos.

Apesar de que o assunto cobre sua verdadeira dimensão quando se percebe que a Santa Igreja se serve da religião – de muitas e diversas maneiras— para aumentar sua autoridade, supremacia e influência, ensinando dogmas e crenças como se fossem verdadeiras e com a intenção de que todos as aceitem independentemente da obrigação e da responsabilidade ético-jurídica do Estado de reconhecer e promover, em condições de igualdade, valores diferentes (religiosos e não religiosos), nada disso parece importar para os que elegeram fazer o terceiro dos sacrifícios que exigia Santo Ignacio de Loyola, aquele que mais regozija a Deus: o sacrifício do intelecto (o que não é fácil; não pode ser fácil). [5]

Que isso vulnera a Constituição? Pois rasguemos a Constituição! Por acaso não tem preferência a Bíblia sobre a Constituição? Vamos relegar a um segundo plano um texto ditado por Deus – nada menos! – em benefício do produto de um diletantismo mental de uns supostos constituintes postos a organizar uma democracia convencional como se não tivéssemos já suficientes sacerdotes e um Papa infalível, vicário de Deus na Terra, para guiar-nos e pastorear-nos? De toda evidência que não. Os hipercríticos, os hereges de outras facções ideológicas e as almas perdidas, guiados pela mão invisível de Lúcifer, afirmam que o ensino religioso viola uma Constituição em que o Brasil se declara um Estado laico e não confessional. Puro e duro proselitismo herético.

A Constituição não passa de uma norma de rango menor, quase um regulamento de torcida organizada, se a comparamos com a grandeza da Lei de Deus e de seus legítimos representantes na Terra. E a Lei de Deus e de seus vigários nos obriga abraçar e sustentar a verdadeira religião, a católica, a residir aqui abaixo segundo as leis e valores de outro mundo. Isto é obrar com estrita justiça. Se o Brasil é o país “abençoado por Deus” e se “Deus é brasileiro”, títulos que não possui nenhuma outra nação na cristandade, é lógico que nos empenhemos para que a verdadeira religião não decaia em nossas escolas e que nossas crianças, pastores e crédulos seguidores estejam devidamente alimentados e atendidos de acordo com a dignidade que lhes confere as Sagradas Escrituras. Ademais, e sem ir demasiado longe, não há que olvidar que a Constituição da República, conformadora do Estado Democrático brasileiro, foi promulgada “sob a proteção de Deus”.

Assim que pouca ou nenhuma importância devemos atribuir à ímpia advertência de Richard Dawkins quando diz que “as religiões dificultam o avanço das ciências porque ensinam às crianças a sentir-se satisfeitos com explicações sobrenaturais que não explicam nada e lhes cega às maravilhosas explicações naturais que a ciência põe a nosso alcance. Lhes ensina a aceitar mediante dogmas a revelação e a fé, em lugar de ensinar-lhes a buscar as provas das teorias”.

De mais a mais, se buscamos a realidade, sejamos realistas: Qual das duas histórias apresentadas por Ron Carlson e Ed Decker, dois predicadores muito populares e absolutamente partidários do “desenho inteligente”, prefere o sofrido leitor (a) que se ensine a seus filhos? A primeira diz assim: “En la historia secular tú eres un descendiente de una célula minúscula del protoplasma primordial depositado en una playa vacía hace 3.500 millones de años. Tú eres un mero saco de partículas atómicas, un conglomerado de sustancia genética. Existes en un insignificante planeta en un diminuto sistema solar… en un rincón vacío de un universo sin sentido. Vienes de nada e irás a ninguna parte.”

A segunda, ao contrário, diz assim: “En la visión cristiana tú eres la creación especial de un Dios bueno y todopoderoso. Tú eres el clímax de Su creación… No solamente en su única clase, sino que eres único entre tu clase…Tu Creador te quiere tanto y tan intensamente desea tu compañía y afecto que… Él dio la vida de Su único Hijo para que puedas pasar la eternidad con Él.”

Pouca dúvida pode haver sobre o gratificante, aliviadora e até estimulante psicologicamente que pode resultar a segunda história para aqueles cuja vida cotidiana está cheia de fatiga, angústia e fracasso; quer dizer, para os adeptos de uma ética escatológica (cristianismo[6]) segundo a qual a «vida é um vale de lágrimas», que viemos ao mundo para sofrer e passar misérias, e que esse é o preço da «caída», a dívida que devemos satisfazer por causa do pecado original.[7]

Portanto, da mesma maneira que uma gota de água proporciona indícios sobre sua composição química, nada melhor que ensinar às nossas crianças algumas trivialidades: (i) que são as criaturas mais especiais da criação do Pai Celestial; (ii) que a verdade, o bem e o mal são relativos, dependentes da ocasião e da conveniência de um particular conjunto de crenças em que cada fé remete a seus próprios deuses e textos sagrados; (iii) que o homem virtuoso não se modela a si mesmo de forma livre e autônoma, senão, e tão somente, por assistência divina; (iv) que os “bem-aventurados” são os humildes de espírito, os que choram, os que sofrem, os mansos e os pacíficos, porque deles é o Reino dos Céus; e  (v) que devem “amar sobre todas as coisas” a um «amigo invisível» (ou vários) com superpoderes que lhes protegerá, que não lhes castigará e que atenderá diligentemente suas súplicas, sempre e quando cumpram, com cega adesão, seus mandamentos ou se comprometam incondicionalmente com as leis e valores de outro mundo que seus vicários deste mundo decidiram impor em seu nome. Dessa forma, a educação religiosa conduz nossos pequenos (mansos, sofredores, alienados e pacíficos) cordeirinhos a bom porto, ao abandono absoluto nas mãos de Deus, por intermédio e à sombra, sempre astuta e perigosa, de seus clérigos.

Surpresos? Não é para tanto, porque não se trata de nada distinto do que o judeu helenizado Paulo (o “décimo terceiro apóstolo histérico e masoquista” - para usar as palavras de Michel Onfray - e o verdadeiro fundador do cristianismo), com sua apologia da dominação e renúncia ao mundo, fixou claramente desde o começo na sua doutrina da natureza humana pecadora e, a partir dela, sua dura (e misógina) postura acerca dos poderes terrenal e celestial: o elogio do gozo da submissão, a obediência, a passividade, a escravidão baixo os poderosos com o pretexto falaz de que o poder vem de Deus e que a situação social do pobre, do que sofre, do modesto e do humilde emerge da vontade celestial ou da decisão divina. [8]

Claro que pode parecer, desde a falível e miserável perspectiva humana, extraordinariamente injusto que nossas crianças, vítimas das escolas públicas, aprendam (ainda que “facultativamente”), com gesto bovino, a desfrutar da submissão, da obediência, do sofrimento, da resignação e da passividade. Mas a Bíblia, cuja validade e força vinculante parecem ser maior que a própria Constituição, é taxativa nesse sentido. Não há nenhuma razão que justifique tentar penetrar com a limitada inteligência humana, apenas maior que a de uma ameba, na incomensurável inteligência divina. E nem o intentemos, pois seria um pecado de soberbia, cega e alucinante arrogância.

Quando uma determinada ideologia religiosa transpõe a esfera do privado e do pessoal e converte-se, com o beneplácito do Estado e como manancial de graça santificante, em posturas normativamente «corretas» ou anelos de unanimidade coletiva que superam toda motivação para apreciar com realismo maneiras de pensar alternativas, entrar em polêmicas é pura blasfêmia, perda de tempo e até um absurdo de raiz. Nada importa ante os inescrutáveis desígnios do Vastíssimo e a decisão de um mundano Supremo Tribunal.

Descuidemos, pois, do princípio segundo o qual em uma sociedade livre, decente e aberta às crenças fundamentais relativas a compromissos religiosos e axiológicos devem adotar-se de maneira autônoma e voluntária. Desconsideremos o princípio segundo o qual nem os pais, nem as comunidades religiosas têm direito a solicitar o auxílio do Estado para que os ajude a enraizar suas crenças religiosas particulares em pequenos cérebros vulneráveis e indefesos. Desdenhemos dos hipercríticos, dos incrédulos, dos oficiais das legiões de Satanás, que intentam censurar nossos cérebros teologicamente condicionados, daqueles que não param de indagar sobre a validade e a legitimidade do ensino religioso desde suas céticas posições alheia à fé e com os caprichos que lhes atribui nossa nefasta, demoníaca e demasiada humana razão.

Não olvidemos que os caminhos do Diabo, como os do Senhor, também são inescrutáveis, que quando comparecermos ante o tribunal divino se nos pedirá estrita conta de todos os nossos atos, estudos e leituras, e que o anjo da guarda tudo anota. Apaguemos, pois, o fulgor do discernimento e celebremos o mistério da «inescrutabilidade». Deixemos que o âmbito do público volte a ser um espaço dependente da religião, sempre capaz de impor a qualquer as obrigações opressivas que dimanam dos valores alheios, ferinamente coloridos com a promessa, moralmente repugnante, de alívio “ultratumba” do sofrimento, de resignada aceitação da miséria humana e de salvação eterna.

E desde a «loucura» da fé, talvez o mais inteligente e sensato seja reconhecer que todos somos medíocres em quase tudo e que um animal que pode aprender a pôr-se de joelhos ante alguma «imagem», chamar-lhe seu Deus e com os olhos cerrados buscar uma resposta, é capaz de aprender, crer e obedecer praticamente qualquer coisa com tal de que se deem as circunstâncias (ou decisões) adequadas.

  

Ó

[1] https://www.researchgate.net/publication/279775586_MORALIDADE_SEM_DEUS

[2] Não como Homer Simpson: “Oh, sabes que no soy aficionado a rezar, pero si estás ahí arriba, ¡sálvame, Superman!”.

[3]https://www.researchgate.net/publication/272488457_LAICIDADE_LIBERDADE_E_IDENTIDADE_RELIGIOSA_A_CRUZ. Nota bene: Como a gente culta compreende - e deixando de lado qualquer reflexão que possa ver-se obscurecida por uma complexidade filosófica desnecessária -, as religiões pertencem ao âmbito privado, são válidas para quem queira crer em seus tautológicos postulados, mas não são válidas para qualquer sujeito. Isso implica que não deve haver qualquer tipo de interferência do (ou desde o) privado sobre o público. O âmbito público deve estar protegido do privado: no âmbito público não valem as «razões» privadas, precisamente porque no âmbito público se busca o que é suscetível de universalidade e aceitação por qualquer sujeito, comum a todas as pessoas e válido para todos, enquanto que o privado, por definição, é o que vale para uns, mas não para todos. Em um Estado laico, todos os cidadãos e instituições são laicos no âmbito público, quer dizer, quando se trata do que a todos concerne, e logo cada cidadão tem suas próprias crenças e preferências em seu âmbito privado. O laicismo é precisamente a ordem político-jurídica que garante o anterior; e ao que se opõe é justamente a essa identificação do público com uma opção religiosa, protege a liberdade de pensamento no âmbito privado donde é inviolável, assim como sua livre expressão sem mais limite que a ordem pública: a liberdade dos demais. E não é isso tudo: em um Estado moderno, a decisão sobre o bem ou o mal e outras questões morais estão restritas, protegidas e garantidas, ao espaço privado da consciência individual. Desta forma se assegura a liberdade individual para pensar e viver de acordo à própria ética e se proíbe que o poder público possa impor uma religião ou moral particular ao conjunto da sociedade, respeitando assim a liberdade de pensamento, eleição, decisão, ação e crença de cada cidadão. Por isso se estabelece um «muro de separação» entre os dois âmbitos: o privado e o público. Ninguém pode vulnerar a liberdade de consciência nem de expressão, nem um particular, nem a maioria, nem o Estado com suas normas. Não por outra razão é que o limite de nossa liberdade é a liberdade dos outros, não suas crenças.

[4] A vida, a liberdade e a formação virtuosa do caráter é algo demasiado importante como para deixá-las à contingência de alguma sinistra, retorcida, manipuladodra e perniciosa educação eclesiástica de determinadas crenças, imperativos, mitos e símbolos religiosos. Ademais, dito seja incidentalmente e de passagem, a liberdade religiosa não há de significar dar validez ao fato religioso. A liberdade religiosa é uma consequência ou aplicação da dignidade individual. Não se justifica (a liberdade religiosa), em modo algum, como homenagem ou consideração às religiões ou aos grupos religiosos enquanto titulares de direitos ou interesses mais altos que os dos indivíduos. A liberdade religiosa se protege para que qualquer sujeito possa decidir se professa alguma religião ou não professa nenhuma, e para que possa viver em consequência e, em seu caso, concorrer aos ritos ou práticas correspondentes, no que não resultem incompatíveis com a liberdade de todos e cada um e com a ordem pública mais básica. Entre outras coisas, porque a liberdade, a autonomia e/ou a vontade individual nesta vida é assunto mais sério que a complacência dos deuses, o capricho dos sacerdotes de qualquer credo ou o legítimo desejo que alguém tenha por fazer-se um espaço na vida eterna ao lado do Grande Chefe, com anjos ou querubins.

[5] Ignacio de Loyola dizia que o sarifício que mais agradava a Deus de todos os sacrifícios possíveis era o sacrifício do intelecto, quer dizer, a disciplinada e cega subordinação da razão à fé; o “creo a pesar de que es absurdo” ou precisamente “porque es absurdo”, como dizia Tertuliano. É o «sacrificium intellectus», «el sacrifizio dell’inteletto como le gustaba decir al vasco universal». Mas isto não é uma característica ou prerrogativa da religião católica. Não existe nenhuma religião viva que não exija de algum modo o sacrifício do primogênito do homem, a «Razão».

[6]https://www.researchgate.net/publication/270450587_A_ETICA_CRISTA

[7] No cálculo cristão da utopia religiosa está a «aposta da eternidade»: prometer uma recompensa pelas misérias deste mundo, uma esperança de outra vida e retribuição de felicidade celestial no Paraíso, um lugar de delícias absolutas donde já não existem nem a fome nem a sede, nem a maldade nem o tempo, e o único modo de pôr fim ao escândalo da prosperidade do malvado e do infortúnio do justo. E dado que a felicidade cristã foi sempre um assunto «del más allá», para um cristão virtuoso e comprometido com a causa nada melhor que entregar-se ao sofrimento e amar, “como a própria mãe”, a pobreza. Daí a inevitável algofilia cristã (que vai acompanhada pela glutonaria da desdita: não basta com suportar o sofrimento, há que amá-lo), a idolatria e a glorificação demencial consagrada à miséria, à dor, à desgraça, à desdita e/ou ao infortúnio terrenal: “Dios es tan bueno que te manda un desastre porque eso les hace libre, los hace pobres” (Papa Francisco). Se Jesus (cujo Pai, que também é Ele mesmo, é o exemplo supremo e absoluto de “abandono afetivo”) representa a encarnação da vítima, “cuando uno se proclama apestado está manifestando que se es en sí mismo de origen divino”. O filho de Deus na cruz afirma o trágico da condição humana: cada desgraçado tem que carregar com sua própria cruz e encontrar em Jesus um guia, um guru espiritual e um amigo (invisível) que lhe ajude; e com esta condição, seu sofrimento e pobreza deixarão de ser um inimigo mortal para converter-se em um aliado com um grande poder de purificação, de salvação, de “renovação da energia espiritual”. “Dios cuida de mí”, diz uma sentença pintada em uma parede dos hospícios de Beaune, porque o sofrimento, a dor, a desgraça, o infortúnio, a miséria e/ou a pobreza constituem o equivalente de uma bendição celestial, enobrece a quem o padece e reivindicá-lo significa desgarrar-se da humanidade corrente, converter o desastre e a desdita em glória: “Sufro, luego valgo”. Louvemos ao Senhor!

[8] Esta é, em essência, a castiça mensagem que transmite hoje a Santa Igreja católica, apostólica e romana, comodamente instalada na avidez da riqueza e na imunidade fiscal, na usurpação espiritual e no sistemático abuso sexual de menores, na intolerância e na marginalização, na exclusão sexual e na pedofilia, no palavreado místico e na dessorada «retórica da atração», na ameaça com o fogo infernal, na restrição da liberdade de pensamento e expressão, na legitimidade de «dar socos como resposta» aos inimigos da fé (Papa Francisco) e em mistérios radicalmente inacessíveis ao entendimento humano.

Data da conclusão/última revisão: 2017-10-06

 

Como citar o texto:

FERNANDEZ, Atahualpa..Supremo Tribunal FÉ-deral, ensino religioso e o triunfo do obscurantismo:Onde está Deus, professor?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 28, nº 1483. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/cronicas/3753/supremo-tribunal-fe-deral-ensino-religioso-triunfo-obscurantismo-onde-esta-deus-professor. Acesso em 10 nov. 2017.

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