RESUMO

 

O Sistema de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos tem sido objeto de conflito aparente de atribuição, envolvendo a União Federal, por intermédio do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, e a Agência Nacional de Aviação Civil, autarquia federal. No intuito de resolver o conflito, tramita decreto regulamentar, que objetiva deferir a referida competência à agência reguladora. Este estudo irá demonstrar a crise de ilegalidade que incidirá tal decreto, pois o mesmo violará princípios constitucionais vitais da administração pública, como o princípio da legalidade e o da especialidade das competências das autarquias.

Palavras-chave:

Artigo científico; Direito Administrativo; Direito Aeronáutico.

 

A crise da legalidade no Sistema de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos

Marcelo Honorato

A partir do ano de 2005, abrupto aumento do número de acidentes aeronáuticos ocorreu no Brasil, visto que, até tal ano, a estatística oficial indicava contínua queda no número de tais sinistros. De 58 acidentes no ano de 2005, passou-se ao atual número de 126 ocorrências em 2011 (dados até 17 de outubro de 2011), com estimativa de encerrar o ano com 159 acidentes, ou seja, um acidente aéreo a cada dois dias, índice que se revela quase o triplo do excepcional nível de segurança atingido no ano de 2005.

Nesse mesmo ano de 2005, foi criada a Agência Nacional de Aviação Civil, através da Lei 11.182/2005, porém, somente em 2006 que a referida agência passou a operar, tendo em vista a necessidade de regulamentação da lei de criação, organização essa provida pelo Decreto nº 5.731/2006.

O ano de 2006 foi justamente aquele em que a curva estatística tomou novo rumo, invertendo a contínua queda do índice de acidentes aeronáuticos, passando então a desenvolver permanente aumento, incremento esse que ocorre até os dias de hoje. Com a efetiva operação da ANAC, um aparente conflito de atribuições entre tal agência e a União Federal igualmente passou a incidir, relativamente sobre o gerenciamento do sistema de prevenção de acidentes aeronáuticos.

Importante fazer constar que, com o advento da ANAC, foi também criada a Autoridade de Aviação Civil (art. 3º da Lei 11.182/2005), que passou a incorporar uma parcela das atribuições da Autoridade Aeronáutica, sem que essa última fosse extinta.

A Autoridade Aeronáutica encontra-se sob o manto da própria União Federal, por intermédio do Comandante da Aeronáutica, órgão pertencente à administração direta federal, a teor do que estabelece a Lei Complementar nº 97/1999 (art. 17, parágrafo único), sendo que, com a modificação realizada pela Lei Complementar nº 136/2010, alterou-se a sua denominação pela Autoridade Aeronáutica Militar, justamente no intuito de diferenciá-la da Autoridade de Aviação Civil, exercida pela Agência Nacional de Aviação Civil.

Para evitar divergências de denominações, este estudo manterá a denominação de Autoridade Aeronáutica, no que tange às competências previstas no Código Brasileiro de Aeronáutica, pois tal norma não foi alterada, de forma a evitar confusões, em decorrência de simples modificação de denominação.

1. DO CONFLITO APARENTE DE ATRIBUIÇÕES ENTRE A ANAC E A UNIÃO FEDERAL

Com a crise aérea, deflagrada a partir da ocorrência de grandes acidentes aeronáuticos no Brasil, o Tribunal de Contas da União foi destacado para proceder a uma auditoria operacional no sistema de aviação civil. Dentre vários aspectos, foi constatada uma “sobreposição” de atribuições entre a ANAC e a União Federal, no que tange ao sistema de prevenção de acidentes aeronáuticos.

A União Federal, como será melhor demonstrado nos tópicos abaixo, exerce o gerenciamento pleno do sistema de prevenção de acidentes aeronáuticos, por intermédio da Autoridade Aeronáutica, como determina o Código Brasileiro de Aeronáutica (art. 12 c/c art. 25).

A Autoridade Aeronáutica, por sua vez, atua no sistema de prevenção de acidentes através do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), consoante determina o Decreto 87.249/1982.

Em função de orientações técnicas, relativas às atividades de prevenção, provenientes da Organização Internacional da Aviação Civil, e diante de sobreposição de atividades acima relatadas, houve a edição da Portaria Conjunta nº 764/CG5, de 14.08.2009, que aprovou o Programa de Segurança Operacional Brasileiro (PSO-BR). Tal programa determinou que a ANAC e o COMAER confeccionassem os seus programas de segurança operacional, conforme as suas competências legais:

Art. 2º Este PSO-BR inclui os Programas de Segurança Operacional Específicos – PSOE desenvolvidos, implantados e controlados pela Agência Nacional de Aviação Civil - ANAC e pelo Comando da Aeronáutica – COMAER, segundo suas competências definidas em lei. (não há grifo no original)

Ocorre que a ANAC, interpretando a sua lei de criação (Lei 11.182/2005) e com base no ato administrativo acima, passou a compreender que detém uma competência implícita, no que tange à regulação e fiscalização do sistema de prevenção de acidentes aeronáuticos, de forma que passou também a legislar sobre a matéria. Nesse sentido aponta o Acórdão 1103/2010 – Plenário do TCU:

77. Segundo a ANAC, a supervisão da "Segurança Operacional da Aviação Civil Brasileira" deveria, portanto, estar dividida entre ela e o COMAER. Essa divisão de tarefas estaria evidente no art. 2º, §1º do PSO-BR, cabendo à ANAC a fiscalização e a regulação da aviação civil, exceto, nos assuntos acerca do controle do espaço aéreo e da investigação de acidentes e incidentes aeronáuticos e ao COMAER, a regulação tão somente dos serviços de navegação aérea.

Em outras palavras, compreende a ANAC que a sua competência, em matéria de atividades de prevenção de acidentes, decorre de concessão de tal atribuição por ato administrativo.

Ao editar o seu Programa de Segurança Operacional (PSOE-ANAC) e atos administrativos posteriores, a ANAC incorreu em duplicidade de regulação da atividade de prevenção com a União Federal. Normas administrativas do SIPAER (denominadas de Normas de Sistema do Comando da Aeronáutica – NSCA) e o próprio Programa de Segurança Operacional do Comando da Aeronáutica (PSOE-COMAER) passaram a voar em rota de colisão com normas administrativas da ANAC, como constatado pelo TCU, quando da realização da auditoria operacional, registrada no Acórdão 1103/2010 – Plenário do TCU :

71. Comparando-se o PSOE-ANAC com o PSOE-COMAER resta evidente que não há uma divisão clara e harmônica de tarefas entre estas duas autoridades, pois, ambos estão regulando os mesmos provedores de serviços para a implantação e a operacionalização de seus SGSO, porém, com entendimentos diferentes quanto à aplicação das recomendações da OACI.

Outro motivo para que a ANAC passasse a regular o sistema de prevenção de acidentes foi a alegação de rompimento de sua autonomia, prevista em lei, conforme também registra o Acórdão 1103/2010 – Plenário do TCU :

76. A ANAC, por outro lado, afirma que a ICA 3-2/2009 e o PSOE-COMAER cumprem finalidades distintas, ou seja, o COMAER ao vincular um instrumento ao outro, teria descumprido a divisão de tarefas estabelecidas pelo PSO-BR e invadido competência a ela legalmente atribuída, atentando, desta maneira, contra sua independência (...).

Outro não poderia ser o resultado, que não a ocorrência de conflitos e descaminhos, em sensível área do transporte, como concluiu o TCU , cenário que até pode responder ou indicar o incompreensível incremento do índice de acidentes aeronáuticos, como apresentado ao início deste artigo, ocorrido em 2006, mesmo ano que se iniciou a operação da referida agência, em decorrência da aprovação do decreto regulamentar da autarquia:

50. A prevenção de acidentes aeronáuticos depende essencialmente do fluxo organizado de informações relativas a condições latentes, perigos e riscos que podem impactar negativamente a segurança operacional e da análise criteriosa e centralizada desses dados, com vistas à geração de conhecimentos, normas e medidas mitigadoras de risco que permitam aprimorar a segurança operacional. Por isso, é basilar que todos os envolvidos com atividades aéreas saibam quem é o responsável pela orientação normativa do sistema, assim como pelo gerenciamento, obtenção e tratamento de dados.

79. As divergentes compreensões relatadas acima entre ANAC e COMAER acerca da implementação das recomendações da OACI, relativas ao gerenciamento da segurança operacional, levaram a uma superposição de ações desenvolvidas por aqueles entes, bem como a uma dupla demanda para os provedores de serviços da aviação civil, gerando, deste modo, conflitos e dificuldades de compreensão por parte destes.

90. Essa confusão normativa somada à necessidade de atualização da legislação aeronáutica para harmonizá-la com os novos conceitos adotados internacionalmente provocaram controvérsias entre a ANAC e o COMAER na elaboração e aplicação dos seus PSOE, assim como trouxeram insegurança ao sistema, tendo em vista que, os provedores de serviços da aviação civil não sabem exatamente quem é o responsável pela definição da segurança operacional, a qual demanda devem atender, a quem devem prestar contas e quais regras e parâmetros devem seguir. Registre-se que essa percepção foi corroborada em entrevistas com os responsáveis pela área de segurança operacional de empresas de transporte aéreo regular de passageiros.

A par de tal conflito aparente de atribuições, o Ministério da Defesa propôs a edição de um novo Decreto Regulador, a respeito do sistema de prevenção de acidentes aeronáuticos, concedendo a referida competência de regular e fiscalizar a prevenção de acidentes aeronáuticos à ANAC, no campo da aviação civil, conforme consta da Ata da 54ª Sessão Plenária do Comitê Nacional de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos , de 10 e 11 de novembro de 2010, oportunidade em que foi apresentada a minuta de tal norma, ainda em fase de análise pelos órgãos de assessoria jurídica da Casa Civil da Presidência da República.

O presente estudo visa a esclarecer tal conflito aparente de atribuições, bem como demonstrar a invalidade do emprego de Decreto Regulador, como forma de transferência de competência da União Federal a uma Autarquia, em função da crise de legalidade que incidirá tal solução.

2. DA CRIAÇÃO DAS AUTARQUIAS E SUA AUTONOMIA

De início, importante destacar a regra constitucional que define a formalística para a criação de Autarquias, prevista no art. 37, inciso XIX da Carta Magna de 1988:

XIX - somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação, cabendo à lei complementar, neste último caso, definir as áreas de sua atuação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

Ou seja, somente lei ordinária pode estabelecer as competências de uma autarquia, pois que a criação de tal ente concentra-se em especificar qual será a sua função, nesse processo de descentralização administrativa.

O Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, também assim dispõe:

Art. 5º Para os fins desta lei, considera-se:

I - Autarquia - o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada.

Assim, dúvidas não há de que as competências de uma autarquia devem estar devidamente previstas em lei ordinária, conforme determina a Carta Política de 1988

Segundo a doutrina moderna, sob a pena de José dos Santos Carvalho Filho , as autarquias estão submetidas ao Princípio da Reserva Legal, ou seja, só podem ser instituídas por lei:

De qualquer modo, porém, o mandamento significa que tais entidades só podem ingressar no mundo jurídico se houver manifestação dos Poderes Legislativo e Executivo no processo de formação da lei instituidora (...)

Mais do que isso, a doutrina ainda compreende que outro princípio jurídico sustenta a formalística em se criar uma autarquia: o Princípio da Especialidade. Segundo esse princípio, as autarquias, como a ANAC, possuem imprescindível necessidade de que a atividade a ser exercida esteja expressamente inserida em sua lei de criação :

O princípio da especialidade aponta para a absoluta necessidade de ser expressamente consignada na lei a atividade a ser exercida, descentralizadamente, pela entidade da Administração Indireta. Em outras palavras, nenhuma dessas entidades pode ser instituída com finalidades genéricas, vale dizer, sem que se defina na lei o objeto preciso de atuação.

Portanto, quando uma autarquia for exercer seu papel legal, não há espaço para finalidades genéricas ou competências implícitas. José dos Santos Carvalho Filho ainda cita outro doutrinador, Sérgio de Andréa Ferreira, que sintetiza, com maestria, o ensinamento:

(...) Estas só podem atuar, só podem despender seus recursos nos estritos limites determinados pelos fins específicos para os quais foram criadas.

A questão da autonomia decisória das Agências Reguladoras também deve ser analisada neste estudo, em função de graves equívocos que se vem incidindo.

Inicialmente, não custa registrar a inexistência do instituto da autonomia absoluta, além das fronteiras da competência destinada a determinado órgão, ou seja, qualquer autonomia administrativa de uma agência reguladora sempre estará circundada pelo exercício de suas competências, ultrapassar tal limite equivale a excesso de poder e não a autonomia administrativa.

Não há condição de existência de autonomia de um ente em área que o mesmo não possui competência outorgada, pois, como visto, a lei de criação de uma autarquia limita exatamente o que tal entidade pode exercer e aplicar os recursos públicos recebidos.

É nesse sentido que a autonomia que gozam as Autarquias Especiais, as Agências Reguladoras, deve ser compreendida; ou seja, considerando o escopo de suas competências legais, isso sem grandes manobras de interpretação. Em outras palavras, a autonomia decisória que é deferida às agências reguladoras limita-se às suas competências legais, por isso que não há de se falar em quebra da autonomia de uma agência reguladora, quando esta se submete a decisões ou regulamentações de outras entidades ou órgãos, que possuem competência adjacente.

Assim, não existe qualquer rompimento da autonomia da Agência Nacional de Aviação Civil, quando essa somente pode homologar a operação de uma empresa aérea que possua registro na Junta Comercial. Portanto, a concessão de registro e seus critérios, pela Junta Comercial, não produz quebra de autonomia à ANAC, justamente por essa agência ser destituída de poder regulamentar da atividade de registro de empresas, matéria afeta à Junta Comercial.

Relevante ainda considerar que o Decreto do Chefe do Poder Executivo, posterior à lei de criação da autarquia, apenas tem o condão de prover organização à autarquia, decreto esse que é editado com fundamento no art. 84, inciso VI da CF/88. Assim sendo, tal decreto é limitado à função de organizar a estrutura da autarquia criada, sem inovar, no que tange à competência então disposta na lei de criação.

Eventual dilatação da competência de uma autarquia, decorrente de decreto regulamentar, gera vertente crise de legalidade, nas sábias palavras do Eminente Ministro Celso de Melo , da Suprema Corte:

E M E N T A: ADIN - SISTEMA NACIONAL DE DEFESA DO CONSUMIDOR (SNDC) - DECRETO FEDERAL N. 861/93 - CONFLITO DE LEGALIDADE - LIMITES DO PODER REGULAMENTAR - AÇÃO DIRETA NÃO CONHECIDA. - Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizara, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em consequencia, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. - O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei. Mesmo que, a partir desse vício jurídico, se possa vislumbrar, num desdobramento ulterior, uma potencial violação da Carta Magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação de inconstitucionalidade reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede jurisdicional concentrada.

Segundo compreende a mais pacífica jurisprudência , eventual excesso de normatização, em que decreto regulamentar inove na base jurídica da lei que regula, ou mesmo contrarie outra lei, norma essa de status superior ao ato emanado do Poder Executivo, ocorrerá a mais clara crise de ilegalidade, cuja consequência vital é a invalidade do decreto regulamentar.

TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. AFASTADA. CONSELHO FEDERAL DE CONTABILIDADE - RESOLUÇÃO N.º853/99. IMPOSIÇÃO DE APROVAÇÃO EM EXAME NACIONAL DE CERTIFICAÇÃO PROFISSIONAL COMO CONDIÇÃO PARA INSCRIÇÃO E OBTENÇÃO DE REGISTRO PROFISSIONAL. ILEGALIDADE. REQUISITO NÃO-PREVISTO EM LEI (...) 2. A exigência de aprovação no Exame Nacional de Certificação Profissional, instituído pela Resolução 853/99 do Conselho Federal de Contabilidade, como requisito indispensável à obtenção do registro profissional junto ao referido Conselho, é ilegal, em afronta ao artigo 10, do Decreto-Lei n.° 9.295/46. 3. Isto porque a imposição do registro não pode ser inaugurada por Resolução, haja vista que o ato administrativo de caráter normativo subordina-se ao ordenamento jurídico hierarquicamente superior, in casu, à lei e à Constituição Federal, não sendo admissível que o poder regulamentar extrapole seus limites, ensejando a edição dos chamados "regulamentos autônomos", vedados em nosso ordenamento jurídico. 4. Apelação e remessa oficial improvidas.

Adverte ainda a Suprema Corte Brasileira, pela lavra novamente do Eminente Ministro Celso de Melo , que a crise de legalidade de determinado decreto permite a intervenção do Poder Legislativo, em sua missão de controle dos atos regulamentares do Poder Executivo:

A RESERVA DE LEI EM SENTIDO FORMAL QUALIFICA-SE COMO INSTRUMENTO CONSTITUCIONAL DE PRESERVAÇÀO DA INTEGRIDADE DE DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS.

(...)

O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua ‘contra legem’ ou ‘praeter legem’, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, inciso V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar (...)’.

3. DO ATUAL SISTEMA DE PREVENÇÃO DE ACIDENTES AERONÁUTICOS NO BRASIL.

As atividades de prevenção de acidentes aeronáuticos, no Brasil, estão inseridas no Sistema de Investigação e Prevenção de Acidente (SIPAER), sistema esse que concentra tanto as ações administrativas de investigação de um acidente aeronáutico, como as ações de prevenção de acidentes aeronáuticos; ou seja, é um sistema de dupla atribuição administrativa.

Nesse sentido, dispõe o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/86 - CBA):

Art. 25. Constitui infra-estrutura aeronáutica o conjunto de órgãos, instalações ou estruturas terrestres de apoio à navegação aérea, para promover-lhe a segurança, regularidade e eficiência, compreendendo:

I - o sistema aeroportuário (artigos 26 a 46);

II - o sistema de proteção ao vôo (artigos 47 a 65);

III - o sistema de segurança de vôo (artigos 66 a 71);

IV - o sistema de Registro Aeronáutico Brasileiro (artigos 72 a 85);

V - o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos (artigos 86 a 93);

(...)

(não há grifo no original)

 

Deve-se ainda observar que o sistema de segurança de voo (SEGVOO), segundo o Código Brasileiro de Aeronáutica, trata-se de um sistema que não contém, no elenco de suas atribuições, nenhuma atividade administrativa de prevenção de acidentes, como se pode observar da simples leitura dos artigos 66 a 71 do atual CBA, artigos esses que descrevem as tarefas impostas ao SEGVOO.

Apesar de o nome “sistema de segurança de voo” (SEGVOO) poder produzir confusão de tal denominação com as atribuições de prevenção do SIPAER, o CBA é bem claro em tornar a atividade de prevenção de acidentes aeronáuticos como insertas num outro sistema, que não o SEGVOO.

Nesse sentido que se encontram os artigos 86 a 93, que tratam tanto das atividades de investigação como de prevenção de acidentes aeronáuticos. Abaixo, destacam-se dois artigos do CBA, compreendidos no Capítulo VI, que trata do SIPAER, voltados às atividades de prevenção de acidentes:

Art. 86. Compete ao Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos planejar, orientar, coordenar, controlar e executar as atividades de investigação e de prevenção de acidentes Aeronáuticos.

(...)

Art. 87. A prevenção de acidentes aeronáuticos é da responsabilidade de todas as pessoas, naturais ou jurídicas, envolvidas com a fabricação, manutenção, operação e circulação de aeronaves, bem assim com as atividades de apoio da infra-estrutura aeronáutica no território brasileiro. (não há grifos no original)

Logicamente que o art. 87 acima não amplia a competência do gerenciamento do SIPAER (regular e fiscalizar) a qualquer pessoa ou ente público ou privado, pois as competências administrativas devem ser objeto de destinação específica, dentro dos parâmetros constitucionais e legais.

O que busca o art. 87 é justamente afirmar que todos os atores intervenientes da atividade aeronáutica têm o dever de contribuir para as tarefas de prevenção, cada um no âmbito de suas atribuições. A atribuição de regular, fiscalizar e coordenar a atividade de prevenção está inserta no art. 12 do CBA, que será analisado logo abaixo.

Já da leitura dos artigos 66 a 71 do CBA, relativos ao SEGVOO, em nenhuma oportunidade surge a palavra “prevenção”, mas tão somente no capítulo destinado ao SIPAER. Conclui-se, portanto, que o sistema de segurança de voo (SEGVOO) e o sistema de prevenção de acidentes aeronáuticos (SIPAER) são sistemas diferentes, com atribuições diferentes, por expressa determinação legal, o Código Brasileiro de Aeronáutica.

No campo fático, não há maior problema em realizar tal diferenciação, visto que as atribuições do sistema de segurança de voo se voltam à homologação de aeronaves, projetos, mão-de-obra, inspeções e empresas. Já as atividades de prevenção são focadas em tarefas específicas de detectar condições inseguras de operação aeronáutica, com vista a evitar a ocorrência de acidentes, como a realização de programas de prevenção, análise de reportes de condições inseguras e formação de pessoal especializado em prevenção de acidentes aeronáuticos.

Importante ressaltar que tal estrutura de prevenção de acidentes encontra-se inalterada, mesmo depois do advento da criação da ANAC, pois que a Lei 11.182/2005 apenas destacou algumas das competências, então exercidas pela União de forma direta, através da Autoridade Aeronáutica, para uma autarquia federal, a ANAC, passando então a serem exercidas pela União de forma indireta, com base na descentralização administrativa, devidamente fundada em lei ordinária, já acima referida.

A partir de então, a ANAC passou a exercer o papel de Autoridade de Aviação Civil, sem extinguir a Autoridade Aeronáutica, que permaneceu exercendo as competências remanescentes, ou seja, não distribuídas à ANAC. Como já destacado linhas atrás, a Autoridade Aeronáutica passou a denominar-se Autoridade Aeronáutica Militar, justamente para melhor diferenciá-la da autoridade de aviação civil (LC 136/2010).

Pois bem. Cabe então verificar de qual órgão é a competência administrativa em relação às atividades de prevenção de acidentes aeronáuticos. O art. 12 do CBA estabelece que a atribuição administrativa, em relação à “infra-estrutura aeronáutica”, é dirigida à Autoridade Aeronáutica:

Art. 12. Ressalvadas as atribuições específicas, fixadas em lei, submetem-se às normas (artigo 1º, § 3º), orientação, coordenação, controle e fiscalização do Ministério da Aeronáutica:

I - a navegação aérea;

II - o tráfego aéreo;

III - a infra-estrutura aeronáutica;

IV - a aeronave;

V - a tripulação;

VI - os serviços, direta ou indiretamente relacionados ao vôo. (não há grifo no original)

A “infra-estrutura aeronáutica”, por sua vez, contém vários sistemas. Dentre eles está o sistema que trata tanto das tarefas de investigação quanto as tarefas de prevenção de acidentes aeronáuticos, atribuições essas, como já visto, reunidas em um só sistema (art. 25 do CBA), o SIPAER.

Até a edição da Lei 11.182/2005, lei ordinária que cria a ANAC, todos os sistemas que compõe a infra-estrutura aeronáutica estavam sob a atribuição da Autoridade Aeronáutica, ou seja, o Ministério da Aeronáutica; portanto, a União Federal exercia a sua competência administrativa de forma direta, tanto no que tange à navegação aérea quanto ao transporte aéreo.

Em 2005, o sistema de aviação civil passou pelo processo de parcial descentralização administrativa, de forma que uma parcela das atribuições relativas à aviação civil, outrora exercidas de forma direta pela União Federal, passaram a ser exercidas por uma autarquia federal especial, a ANAC.

Como requer o sistema constitucional e legal de descentralização administrativa, foi aprovada a Lei Ordinária nº 11.182/2005, que estabelece as competências (rectius: atribuições) da ANAC.

No que tange à infra-estrutura aeronáutica, o inciso XXI do art. 8º da referida norma estabeleceu as competências específicas da referida agência reguladora, no campo da infra-estrutura aeronáutica:

Art. 8o Cabe à ANAC adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade, competindo-lhe:

(...)

XXI – regular e fiscalizar a infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária, com exceção das atividades e procedimentos relacionados com o sistema de controle do espaço aéreo e com o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos; (não há grifos no original)

Ou seja, a Lei 11.182/2005, norma essa que permitiu a descentralização administrativa de parcela das atribuições do sistema de aviação civil, expressamente excluiu das competências da ANAC o exercício de regulação e fiscalização das atividades de prevenção de acidentes aeronáuticos. Além da atividade de prevenção, também foram excluídas as atividades de controle do espaço aéreo e de investigação de acidentes aéreos.

Diante do exposto, pode-se concluir que, no Brasil, as atividades de prevenção de acidentes aeronáuticos ainda mantêm-se direcionadas à atribuição da Autoridade Aeronáutica (rectius: Autoridade Aeronáutica Militar), conforme determina o art. 12 c/c art. 25 do CBA, pois que a Lei 11.182/2005, expressamente excluiu tal atribuição da competência da ANAC e ainda inalterou o caráter híbrido de tal sistema, ou seja, o exercício de tarefas tanto de prevenção quanto de investigação de acidentes aeronáuticos.

Importante analisar tal distribuição de atribuições, no que tange à autonomia decisória da ANAC, prevista no art. 4º da Lei 11.182/2005, diploma esse que estabelece “independência administrativa” e “ausência de subordinação hierárquica” a tal autarquia.

Como já visto, a autonomia decisória de uma agência reguladora detém, como limite paradigmático, as suas próprias competências legais. Com efeito, o exercício de uma atribuição legal, a regulação e fiscalização das atividades de prevenção, atualmente a cargo da União Federal, através da Autoridade Aeronáutica (rectius: Comando da Aeronáutica), não pode ser causa de rompimento da autonomia administrativa da ANAC, justamente porque tal autarquia não detém competência específica em relação a tal matéria, por expressa disposição de sua própria lei de criação.

A inclusão das atividades de prevenção no SIPAER (art. 86 a 93) e não no SEGVOO (art. 66 a 71) também não vilipendia a autonomia administrativa da ANAC, exatamente porque essas atividades de prevenção estão insertas no SIPAER por expressa determinação legal, o CBA, e também em razão de que a Lei da ANAC não alterou tal distribuição de atividade, tanto que manteve íntegro o SIPAER, ou seja, contendo o exercício das duas atividades, prevenção e investigação.

Segundo ainda ficou consignado no Acórdão 1103/2010 – Plenário do TCU e destacado no tópico anterior, a ANAC considerou haver afronta a sua autonomia, quando a União Federal, através do CENIPA, passou a coordenar as ações de segurança operacional, que nada mais são que atividades de prevenção de acidentes. Tal conflito decorreu, no entendimento da agência, da invasão de sua competência, poder esse outorgado pelo Ato Administrativo que instituiu o Programa de Segurança Operacional Brasileiro, quando deferiu à ANAC o poder de confeccionar seu próprio PSOE (item 76 do Acórdão 1103/2010 – Plenário do TCU).

Porém, há que, de imediato, fazer constar que o ato administrativo citado (Portaria Conjunta nº 764/CG5, de 14.08.2009) não possui envergadura para conceder atribuição à autarquia, como demasiadamente demonstrado, pois muito distante de lei em sentido estrito. Além disso, o referido documento estabeleceu que tal poder de confecção do Programa de Segurança Operacional (PSOE) se desenvolverá: “segundo suas competências definidas em lei’ (art. 2º).

Ou seja, não houve espaço para dilatação de competência da ANAC, tanto por ineficácia do ato administrativo para tal finalidade (atribuir competência a uma autarquia), como porque tal ato, em seu teor, não concedeu qualquer alargamento de atribuição, ao contrário, limitou a ação administrativa de confeccionar os programas de prevenção às competências legais vigentes.

No plano da autonomia decisória da agência, igualmente inexiste qualquer abalo, quando tal autarquia necessita da aprovação do programa de segurança operacional, pelo órgão competente em atividades de prevenção (União Federal – Autoridade Aeronáutica – CENIPA), para que então possa proceder à homologação operacional de prestador de serviço por ela (ANAC) regulada, visto que tal atividade de prevenção não está inclusa em seu escopo de atribuições legais.

E não é somente isso, a própria lei de criação da ANAC, além de lhe excluir expressamente a competência de regular e fiscalizar as atividades de prevenção (art. 8º - XXI), determina que tal agência integre o SIPAER:

XXXIV – integrar o Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos – SIPAER;

Da análise conjunta do inciso XXI e do XXXIV, ambos do art. 8º da Lei 11.182/2005, pode-se concluir que a integração da ANAC ao SIPAER será tão somente a outras atribuições, que não regular e não fiscalizar.

Ou seja, a própria lei de criação da ANAC determina que tal agência integre o SIPAER, cuja regulação e fiscalização não lhe foi deferida, de forma que o cumprimento de tal mandamento não pode significar o descumprimento de outro dispositivo da mesma lei, que lhe confere ausência de subordinação hierárquica. Lógico que a lei ordinária concedeu tal insubordinação aos assuntos que lhe são afetos, mas quanto às atividades de prevenção, a Lei 11.182/2005 determina a incorporação da referida agência à regulação e fiscalização pelo SIPAER, papel esse, atualmente, exercido pelo CENIPA.

Existe ainda a tentativa de interpretar que as atividades de prevenção de acidentes aeronáuticos, constantes no SIPAER, seriam somente aquelas atividades que decorram da atividade de investigação de um acidente. Seguindo essa linha de interpretação, a União Federal, por intermédio do CENIPA, somente poderia exercer atividades de prevenção se originadas de estudos e relatórios de investigação de acidentes aeronáuticos.

Segundo tal teoria reducionista da competência do SIPAER, as demais atividades de prevenção estariam encampadas no sistema de segurança de vôo, ou em outros sistemas, a cargo da ANAC, ainda que de forma difusa ou genérica.

Dois aspectos invalidam tal interpretação restritiva: i. não existe qualquer limitação da atividade de prevenção, no Código Brasileiro de Aeronáutica, ao dispor sobre o SIPAER; e ii. eventual atividade secundária de regular e fiscalizar a prevenção (criada pelo intérprete) não se encontra expressa nos artigos que elencam as atividades do sistema de segurança de voo. Em outras palavras: aquelas atividades de prevenção, que não sejam conseqüência de uma atividade de investigação, não são excluídas, pelo CBA, das atividades do SIPAER, e não existe, em qualquer outro sistema da infra-estrutura aeronáutica, indicação que tal atividade lhe fosse direcionada.

Portanto, tal competência implícita nasce de uma interpretação restritiva da competência expressa da União (interpretação contra legem), e da criação de uma competência virtual, ou genérica, de uma autarquia, sem fundamento legal, contrariando o princípio constitucional da especialidade das competências da administração indireta e também a doutrina especializada, como já destacada outrora.

Assim, dentre os artigos 86 a 93, não há qualquer indicativo de que as atividades de prevenção constantes do SIPAER sejam limitadas àquelas que decorram do exercício da atividade de investigação de acidentes. Ao contrário, o art. 87 (CBA), inserto no capítulo VI, relativo ao SIPAER, traz orientação ampla para as atividades de prevenção, demonstrando que tais atividades, elencadas nas atribuições do SIPAER, não se restringem tão somente àquelas decorrentes de uma investigação.

Por outro lado, observa-se que a palavra “prevenção” nem é citada em nenhum dos seis artigos relativos ao SEGVOO. Portanto, incapaz de principiar qualquer tentativa de deduzir a existência de alguma competência, em matéria de prevenção de acidentes, afora aquela consignada no SIPAER.

Logo, se a lei não limitou a atividade de prevenção que o SIPAER exerce e se não conferiu qualquer outra forma de atribuição de regular e fiscalizar a atividade de prevenção a outro sistema, incabível qualquer possibilidade de gerar uma competência implícita a outra entidade.

Em breve síntese, pode-se afirmar que a competência da União Federal em atividades de prevenção de acidentes, inserta no SIPAER: i. não possui qualquer indicação de ser uma atividade limitada; ii. ao contrário, existe norma legal que estabelece competência genérica ao SIPAER, no que tange à atividade de prevenção (art. 87 do CBA); iii. não há, no CBA, qualquer norma que estabeleça a existência de uma competência residual de regular e fiscalizar as atividades de prevenção conferida a outro sistema da infra-estrutura aeroportuária, nem mesmo no sistema de segurança de voo; iv. a lei de criação da ANAC exclui, expressamente, de sua competência, regular e fiscalizar atividades de prevenção de acidentes aeronáuticos.

Portanto, a atividade intelectiva, de deduzir a existência de outra atividade administrativa de prevenção de acidentes aeronáuticos, não encontra amparo na lei, mais do que isso, representa uma forma de se excluir uma competência expressamente existente, em troca de uma implícita (ou genérica ou difusa) e, paradoxalmente, vedada, de forma expressa, à ANAC, portanto, absolutamente inviável, considerando o Princípio da Legalidade (art. 37 – caput da CF/88) e da Especialidade das competências de uma autarquia (art. 37 – XIX da CF/88).

Por último, há que tecer alguns comentários sobre a teoria dos Poderes Implícitos. É que tal teoria apenas se refere ao deferimento implícito de meios para alcançar os fins atribuídos a determinado órgão (MS 26.547-MC/DF, Rel Celso de Melo, j. 23.05.2007, DJ de 29.05.2007). Logo, tal teoria é absolutamente inaplicável ao caso, pois tanto não foi deferida a atribuição de regular e fiscalizar as atividades de prevenção à ANAC, como lhe foi negada, expressamente, tal competência.

Nesse sentido, pode-se afirmar a inexistência de poderes implícitos da ANAC em regular e fiscalizar as atividades de prevenção, pois não se concede meios a determinado ente, se o mesmo não possui a finalidade em seu escopo de competências.

4. DO DECRETO REGULAMENTAR DE ATIVIDADES DESCENTRALIZADAS

A criação de uma Agência Reguladora, como exposto, requer a edição de uma lei ordinária, pois ocorrerá a transmissão do exercício de competência administrativa a órgão não constante da administração direta, uma autarquia.

Portanto, eventual Decreto Regulamentar da Lei da ANAC ou do CBA não poderá inovar, criando uma nova competência à Agência Reguladora, não prevista em sua lei de criação. Muito menos poderá um Decreto Regulamentar dispor de forma contrária ao que estabelece a própria lei regulada.

No entanto, é o caso em análise, pois a lei de criação da ANAC não somente deixou de atribuir a competência das atividades de prevenção de acidentes a tal autarquia, como também lhe vedou, expressamente, o exercício de tal atribuição, de forma que estabelecer tal competência, por meio de Decreto Regulamentar, violaria a sua destinação constitucional de tão somente organizar o órgão criado.

Também não há espaço para uma interpretação de que a atividade de prevenção de acidentes aéreos encontra-se inserta no sistema de segurança de voo (SEGVOO), pois tal interpretação não encontra respaldo no atual Código Brasileiro de Aeronáutica, lei essa que inclui, expressamente, a atividade de prevenção em seu Capítulo VI (Título II), que trata do sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos. A lei 11.182/2005, igualmente, em nada alterou a distribuição de atividades entre os vários sistemas que compõe a infra-estrutura aeronáutica.

Em resumo, por expressa previsão legal, as atividades de prevenção de acidentes estão excluídas das atividades do sistema de segurança de voo, compondo outro sistema, o SIPAER.

Relevante ainda fazer constar que o ato normativo regulador da lei de criação da ANAC, ainda vigente, o Decreto nº 5.731/2006, em seu artigo 7º, parágrafo 1º, mantém a vedação expressa de regulação e fiscalização, pela ANAC, das atividades de prevenção:

§ 1o Subordinam-se, também, à orientação, coordenação, controle e fiscalização do Comando da Aeronáutica as atividades de controle de tráfego aéreo, telecomunicações aeronáuticas e dos auxílios à navegação aérea, de meteorologia aeronáutica, de cartografia e informações aeronáuticas, de busca e salvamento, de inspeção em vôo, de coordenação e fiscalização do ensino técnico específico, de supervisão de fabricação, reparo, manutenção e distribuição de equipamentos terrestres de auxílio à navegação aérea e de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos, previstas nos arts. 47, 48 e 86 a 93 da Lei no 7.565, de 1986. (não há grifo no original)

Foi bem o legislador infra-constitucional, à medida que manteve-se obediente às disposições existentes na lei regulada, sem criar nova competência à autarquia então regulamentada e, expressamente, consignando a vedação do exercício de regulação e fiscalização das atividades de prevenção à ANAC.

A autonomia administrativa da Agência não se submete a qualquer ataque, em função do exercício da atividade de prevenção, por parte da União Federal, de forma direta, através da Autoridade Aeronáutica, que, por sua vez, exerce-a por intermédio do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA), pois que a independência administrativa e decisória da referida Agência é restrita às suas expressas competências. Nesse sentido que o Sistema de Controle do Espaço Aéreo permanece atuando, de forma independente da ANAC, e também outras agências, como a ANP ou ANVISA, que, no exercício de suas competências, acabam por influenciar a esfera subjetiva da ANAC, sem que isso signifique abalo à autonomia administrativa, mas harmonia entre os entes reguladores.

5. DA RECOMENDAÇÃO DO TCU E SOLUÇÕES POSSÍVEIS

Como já visto, o Tribunal de Contas da União, em decorrência de auditoria operacional (TC 010.692/2009-2) e do acórdão respectivo (Acórdão 1103/2010 – Plenário do TCU), concluiu pela ocorrência de sobreposição de atividades entre o Centro de Investigação de Acidentes Aeronáuticos – CENIPA e a Agência Nacional de Aviação Civil.

Importante fazer constar que o CENIPA atua em nome da Autoridade Aeronáutica (CBA art. 12 c/c art. 25), para o exercício da competência da União (art. 21, XII, “c” – CF/88), em decorrência do disposto no Decreto 87.249/82. Ou seja, o CENIPA exerce a competência administrativa de prevenção de acidentes aeronáuticos em nome da União Federal, exercício esse sob o escopo da administração direta da União.

A duplicidade de ações, detectada pelo TCU, traduz-se em claro rompimento dos princípios da legalidade, da tipicidade das competências e da eficiência da administração pública. O primeiro em razão da existência de dois órgãos exercendo as mesmas funções: um da administração direta, com fundamento no CBA; e outro da administração indireta, sem fundamento em lei ordinária descentralizadora.

Já o ferimento ao princípio da eficiência torna-se atacado, à medida que recursos financeiros acabam por serem empregados de forma dupla, para atingir o mesmo objetivo, e ações descoordenadas podem vir a prejudicar a finalidade institucional de cada ente. Além disso, também indicam possível improbidade administrativa, pois os atos ímprobos, que causam lesão ao erário, prescindem da prova de dolo, sendo o bastante a prova de culpa.

Diante de tal cenário, três opções são possíveis: determinar a manutenção da atribuição administrativa das atividades de prevenção ao CENIPA, ou designá-las a outro órgão da administração direta da União Federal, através da Autoridade Aeronáutica, ou, finalmente, destinar tal atribuição à Agência Reguladora, a ANAC.

Para a primeira solução, manter tal atribuição ao CENIPA, nada mais a fazer, pois existente o Decreto 87.249/81. Já para designá-la a outro órgão subordinado à Autoridade Aeronáutica, basta a emissão de um Decreto Regulamentar do CBA, no que tange ao Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Em ambos os casos, não há que se falar em descentralização administrativa, pois a competência se mantém na administração direta, portanto, o decreto regulamentar é norma jurídica com status adequado a tal finalidade.

Outro aspecto ainda deve receber análise: o aumento de despesas da ANAC, ao receber nova atribuição administrativa. É que o CENIPA, órgão regulador, coordenador e fiscalizador das atividades de prevenção, através da Norma de Serviço do Comando da Aeronáutica nº 3-3-2008 (NSCA 3-3) , exerce diversas atividades administrativas, a fim de prover efetiva prevenção de acidentes.

Nesse sentido, necessária a impressão de vários formulários, distribuídos para todo o Brasil (como reporte de situações de risco e perigo e de risco de colisão com pássaros), formulário confidencial de segurança de voo (com porte pago) e cartazes educativos. Além disso, realiza simpósios, seminários, que requerem contratação de hotéis, serviços de coffee break; e também, realização de vistorias de segurança de voo, atividade que requer passagem aérea e diárias para pessoal.

Inevitável, com a dilatação de tais competências, o consequente incremento de despesas, ainda que não se deseje aumentar o orçamento da agência, sangrando os recursos de outras atividades. Assim, o Decreto Regulador se mostra como inviável para tal desiderato, à medida que a Carta Política de 1988 veda seu emprego quando implicar em aumento de despesa:

VI - dispor, mediante decreto, sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

Para conferir tal atribuição à ANAC, por se tratar de descentralização administrativa, necessário que tal concessão ocorra por meio de lei ordinária, por três motivos: i. a inclusão de nova competência a autarquia requer lei ordinária (ex vi art. 37 – XXI da CF/88), ii. a criação de nova competência de autarquia gera, por conseqüência lógica, novas despesas, sendo o Decreto Regulamentar norma inapropriada (art. 84 – VI – “a”), iii. a lei de criação da ANAC, expressamente, exclui tal atribuição de suas competências, não podendo Decreto Regulamentar dispor de forma contrária à lei que pretende regular.

Mais uma vez, importante fazer constar que se trata de uma interpretação contra legem aquela produzida no sentido de que as atividades de prevenção estão inclusas no sistema de segurança de voo (SEGVOO), esse sim de competência da ANAC, pois que o CBA, de forma expressa, une as atividades de prevenção e de investigação num só sistema, no mesmo sentido está a Lei 11.182/2005, lei de criação da ANAC.

Não custa lembrar que já foi demonstrada a inviabilidade de se criar uma competência implícita à ANAC, com base numa interpretação reducionista das competências do SIPAER, tendo em vista a inexistência de destaque de tal competência remanescente a outro órgão e também pela impossibilidade de se atribuir competência implícita a uma autarquia, em razão de vedação constitucional (art. 27 – XIX da CF/88).

A única solução para deferir a competência das atividades administrativas de prevenção à ANAC é por meio de lei ordinária, norma essa capaz de alterar a competência da citada Agência, pois gera descentralização administrativa.

Embora este estudo não pretenda avaliar a conveniência de se atribuir a competência de regulação e fiscalização das atividades de prevenção de acidentes aeronáuticos à ANAC, desde que pela via constitucionalmente adequada (lei ordinária), relevante fazer constar a inapropriedade de tal solução, haja vista a possibilidade de originar-se forte conflito na seara interna da própria agência e diminuir a eficácia das comunicações de dados de prevenção de acidentes.

É que a ANAC detém a firme competência de regular vários sistemas da aviação civil e, paralelamente, instaurar procedimentos administrativos para apurar incorreções, bem como impor multas e punições aos infratores, condutas essas tipificadas no Código Brasileiro de Aeronáutica.

Por outro lado, o eventual exercício da atividade de prevenção pela ANAC irá requerer que essa a mesma agência proteja as informações sobre a operação aérea, a fim de evitar punições e estimular a colaboração dos operadores, em prol da detecção de situações de risco e perigo. A informação é o material mais importante para o desenvolvimento de um sério e eficaz sistema de prevenção de acidentes aéreos.

Nesse sentido, pontuou o Acórdão 1103/2010 – Plenário do TCU :

114. Ademais, a própria Agência admite que a coleta de dados de segurança operacional durante a operação normal dos provedores de serviços de aviação civil é a base para o exercício de suas atividades de certificação, regulação e fiscalização.

121. A coleta de informações voltadas para a prevenção de acidentes no âmbito da ANAC, conforme se pretende instituir, sem que haja um eficiente sistema que proteja o sigilo da fonte contra a aplicação de sanções pela própria Agência poderá comprometer a política de comunicação de segurança, essencial ao Sistema de Gerenciamento da Segurança Operacional que se quer implantar no país.

Ora, como conciliar o dever legal da ANAC em apurar incorreções operacionais e infligir sanções, previstas especificamente no Código Brasileiro de Aeronáutica e, paralelamente, deferir sigilo a tais relevantes informações, para que não se apliquem sanções e se iniba a imprescindível colaboração dos operadores aéreos?

Portanto, somente a título de argumentação adjacente, demonstra-se que o deferimento da competência de regular e fiscalizar as atividades de prevenção à ANAC se mostra como incompatível com as demais atribuições da agência e, talvez, tenha sido esse o intento do legislador ordinário em excluir, expressamente, tal competência da ANAC.

6. DA PROPOSTA DE DECRETO REGULAMENTAR EM TRÂMITE

Com base na proposta de Decreto Regulamentar, apresentado na 54ª Sessão Plenária do Comitê Nacional de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CNPAA), ainda objeto de deliberação pela cadeia decisória da Casa Civil da Presidência da República, passa-se a sua análise legal e constitucional.

O art. 2º, da proposta de Decreto, traz o seguinte texto:

Art. 2º Não são abrangidos pelo SIPAER as competências:

I – da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC para regular e fiscalizar a prevenção no âmbito da aviação civil; e

Da simples leitura da própria lei de criação da ANAC (Lei 11.182/2005), em seu art. 8º, inciso XXI, encontra-se vertente impedimento legal, para que o Decreto Regulamentar proposto atribuir nova competência à ANAC, em frontal disposição legal em contrário:

XXI – regular e fiscalizar a infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária, com exceção das atividades e procedimentos relacionados com o sistema de controle do espaço aéreo e com o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos; (não há grifo no original)

É que as atividades de prevenção de acidentes, como já exaustivamente demonstrado, estão consignadas no sistema de prevenção e investigação de acidentes aeronáuticos (art. 86 a 91), sistema híbrido, integrante da infra-estrutura aeronáutica e excluído da competência da referida agência, como dispõe, expressamente, a lei de criação da autarquia.

Para aquilatar a ANAC com nova competência administrativa, o sistema constitucional brasileiro requer outra lei ordinária para tal feito, consoante expressa o inciso XIX do art. 37 da Carta Magna.

Além disso, como já abordado, acreditar que existe uma competência administrativa implícita de regular e fiscalizar a prevenção de acidentes aeronáuticos da ANAC é dedução absolutamente inconstitucional, pois fere letalmente o princípio da estrita legalidade da criação de autarquias.

A criação de competência implícita também não encontra amparo na própria lei de criação da ANAC, pois as únicas referências a tal atividade de prevenção estão no art. 8º da Lei 11.182/2005, são elas: i. inciso II, exclui a possibilidade de a ANAC representar o Brasil em assuntos de prevenção de acidentes; ii. inciso XII, que trata da prevenção de uso de substâncias entorpecentes pelo pessoal técnico; iii. XXI, que expressamente exclui a competência da agência em regulação e fiscalização de tais atividades; e iv. que determina a ANAC integrar o SIPAER, dispositivo já analisado.

Logo, impraticável a possibilidade de criar-se uma competência implícita à ANAC, tanto por representar uma afronta ao princípio da legalidade estrita, como por inexistir qualquer indício de que o legislador tenha desejado criar o SIPAER com uma competência de prevenção limitada, pois que, se assim o desejasse, teria conferido a competência remanescente a outro sistema ou órgão, outorga essa silente, ou melhor, inexistente.

Conclui-se, assim, que tal dispositivo regulamentar é absolutamente ilegal, pois extravasa com a capacidade normativa de um decreto regulamentar e contraria, num primeiro plano, disposição expressa da lei regulada, incidindo em crise de legalidade, segundo nomenclatura jurisprudencial do STF.

No mesmo sentido, alguns dos incisos do art. 4º requerem alterações, a fim de se conciliar ao disposto tanto no CBA, quanto na lei 11.182/2005 (incisos I, III, IV e VI do Decreto Regulamentar em trâmite), pois tais dispositivos do projeto de decreto omitem a competência relativa à atividade de prevenção, atualmente conferidas à União Federal (rectius: CENIPA).

Outro aspecto importante é a alteração do status de “órgão central” do SIPAER, deferido ao CENIPA, pelo Decreto 87.249/1982, sob a alegação de que tal qualidade do CENIPA desnatura a ausência de subordinação hierárquica da ANAC (art. 4º da Lei 11.182/2005), bem como se ajusta melhor ao conceito de sistema, previsto no CBA (art. 25, § 2º).

Inicialmente, deve-se observar que o conceito de sistema, inserto no CBA, deve ser interpretado mediante as próprias competências que o próprio CBA deferiu à Autoridade Aeronáutica, no sentido de regular, coordenar e fiscalizar o citado sistema (art. 12). No mesmo sentido estão as competências da ANAC para os demais sistemas da infra-estrutura aeronáutica (art. 8 – XXI da Lei 11.182/2005).

Portanto, o conceito de “sistema”, existente no CBA, que não implica numa subordinação hierárquica, deve conviver com a previsão, pelo mesmo diploma legal, do deferimento da competência específica de que determinado órgão regule e fiscalize o dito sistema.

Nesse sentido que o exercício, pelo CENIPA, da atividade de regular e fiscalizar as atividades de prevenção, requer que tal órgão tenha uma posição central, pois exerce papel exclusivo no SIPAER e voltado a todos os outros componentes do sistema de prevenção.

No campo da ausência de subordinação hierárquica da ANAC, fato impeditivo de denominar o CENIPA como “órgão central”, dispensável repetir a argumentação já trazida à baila, pois que o exercício de competência, prevista em lei, por outro órgão, não gera interferência a determinada autarquia, ente esse destituído de competência na matéria regulada. Em outras palavras, o fato de o CENIPA ser órgão central do SIPAER não implica em ofensa à ausência de subordinação hierárquica da ANAC, pois essa agência não regula e nem fiscaliza as atividades de prevenção.

À ANAC, conforme dispõe a sua lei de regência, cabe integrar o SIPAER (art. 8º - XXXIV), exercendo atividades que não regular e fiscalizar tal sistema (ART. 8º - XXI), sem que isso represente perigo a sua não subordinação hierárquica, pois tal atuação limitada é prevista, expressamente, na mesma lei que confere tal independência.

Diante do exposto, demonstrou-se de extrema relevância que as autoridades do Poder Executivo melhor analisem a capacidade normativa do Decreto Regulamentar, apresentado no Comitê Nacional de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CNPAA), em fase de deliberação, diante das expressas competências destinadas à ANAC, assim como resguardem as atuais competências legais vigentes da União Federal/Autoridade Aeronáutica, a fim de que conflitos e sobreposições não desestabilizem o sensível sistema de prevenção de acidentes aeronáuticos e, paralelamente, sejam observados os princípios constitucionais da legalidade, tipicidade das competências das autarquias, da eficiência da administração pública e da limitação do poder regulamentar do Chefe do Poder Executivo.

 

Data de elaboração: novembro/2011

 

Como citar o texto:

HONORATO, Marcelo..A crise da legalidade no Sistema de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 952. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/2418/a-crise-legalidade-sistema-prevencao-acidentes-aeronauticos. Acesso em 16 jan. 2012.

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