RESUMO

A Administração Pública busca, como fim precípuo de sua atuação, a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil, como cultura, educação e saúde. Contudo, o Estado tem sua atuação limitada pela insuficiência de recursos próprios que permitam garantir esses serviços sociais à universalidade dos cidadãos. A fim de se garantir uma prestação mais eficiente de tais serviços à população, se fez necessária a atuação paralela de um setor público não-estatal, o chamado Terceiro Setor, dentro do qual se encontrará a figura das Organizações Sociais. Serão estas o objeto de nosso presente estudo, que mostrará como, e em que contexto, se deu a instituição de tal modelo de parceria no ordenamento jurídico brasileiro. Em posterior análise do contrato administrativo de gestão, buscaremos então evidenciar os graves prejuízos sociais que podem decorrer da dispensa de licitação conferida a tais contratos pela Lei das Licitações, propondo a declaração de inconstitucionalidade de seu artigo 24, XXIV, como melhor solução para evitar perdas substanciais ao Erário público e à sociedade.

Palavras-Chave: Administração Pública. Organizações Sociais. Contrato de Gestão. Dispensa de Licitação. Inconstitucionalidade.

1. Introdução

Por ora, podemos conceituar sucintamente as organizações sociais, também chamadas de “OSs”, como entidades de direito privado que, através de parceria entre particulares e a Administração Pública, buscam executar serviços públicos não exclusivos do Estado previstos em lei, sem a finalidade de obter vantagens econômicas. Uma visão histórica geral do Terceiro setor, e a exposição dos elementos constantes da atuação de suas entidades não-estatais, dentro da qual se abordarão especificamente a Organização Social e seus principais aspectos, serão os objetos das duas primeiras subseções do presente estudo.

O estabelecimento do elo jurídico entre Administração Pública e tais entidades se dá pela celebração de contratos de gestão, aos quais daremos enfoque em um terceiro momento. Com o intuito de evidenciar, após apresentadas as devidas bases doutrinárias e jurisprudenciais que fundamentam nosso pensamento, discorreremos posteriormente acerca dos graves prejuízos que podem se originar da existência de previsão legal de dispensa do instrumento licitatório em tal modalidade contratual, consagrada na Lei das Licitações, das quais é exclusiva.

Por fim, apresentaremos as conclusões obtidas, pugnando pela declaração  de inconstitucionalidade do artigo 24, inciso XXIV, da Lei de Licitações (8.666/93), como meio mais adequado a garantir a transparência administrativa e dificultar possíveis danos ao Erário público.

2. Histórico

Na Era Moderna, tivemos a Revolução industrial como importante marco na evolução do pensamento humano. Como subproduto indesejável desse fênomeno, adveio a chamada questão social, estreitamente ligada ao sofrimento a que foram submetidos os estamentos sociais inferiores da sociedade. Problemas que eram então circunscritos à solução meramente dentro da esfera privada (saúde, educação, dentre outros), adquiriram importante dimensão pública, sendo posteriormente utilizados como fundamentos das políticas de justiça social aplicadas pelos países que adotaram o ideário do Estado de Bem-estar Social ou Estado-Providência (Welfare State). De forma breve, podemos dizer que este tinha como base ideológica o pensamento keynesiano, e suas políticas públicas visavam garantir, tanto a defesa dos direitos dos cidadãos, quanto o bom funcionamento do mercado, tendo seu maior processo de expansão dentro do cenário de pós-Segunda Guerra Mundial, em resposta ao momento de crise global que se instalava. Assim, o Primeiro Setor (o Estado) assumia a responsabilidade de solucionar os problemas gerados pelo Segundo Setor (o Mercado), através de políticas públicas compensatórias e desenvolvimentistas, utilizando-se de duas formas para solucionar a problemática questão social: a atuação direta por seus órgãos e entidades, e a indireta, através de parcerias com a sociedade civil, cuja participação se dava por razões humanitárias, por culpa ou por propósitos pragmáticos. Aí se deu a origem do chamado Setor Solidário, Setor Independentente, ou como é mais conhecido, o Terceiro Setor.

Com a chamada “Crise do Estado de Bem-estar Social”, sobretudo a partir dos anos 1970, retomaram-se, sob nova roupagem, manifestações políticas típicas do liberalismo clássico (agora  sob a alcunha de “neoliberalismo”), evidenciadas de forma marcante nos governos de Margaret Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (EUA). Dentro deste novo contexto, cujas idéias gerais defendiam a diminuição da ingerência estatal na vida privada e a absoluta liberdade de mercado, ratificou-se a idéia de que o Estado não tinha como prestar, de forma autossuficiente, os serviços essenciais a todos os seus cidadãos. Faria-se então necessária, para viabilizar a efetiva consecução dos direitos fundamentais, uma ampla atuação paralela da própria sociedade na prestação dos serviços não exclusivos, que se daria através de convênios celebrados entre o Estado e os entes de cooperação paraestatais.

Recentemente, tais parcerias tiveram uma ascensão de importância em contexto global, inclusive  no surgimento das  chamadas Organizações Não-Governamentais (ONGs), o que pode ser explicado como um reconhecimento do insucesso estatal como promotor das políticas de desenvolvimento social, assim como o de que o mercado não é suficiente em sua atuação para solucionar as questões decorrentes de suas relações desiguais.

Quanto ao Brasil especificamente, temos que o primeiro diploma legislativo relacionado ao que se entende hoje por Terceiro Setor, é a Lei Federal n° 91/1935, que tratava do reconhecimento de entidades como sendo de utilidade pública em seus artigo 1º e 2º , desde que prenchessem alguns requisitos como adquirir personalidade jurídica, estar em efetivo funcionamento e servir desinteressadamente à coletividade e que os cargos de suas diretoria, conselhos fiscais, deliberativos ou consultivos não fossem remunerados, além de necessário decreto do Poder Executivo que declarasse expressamente tal utilidade. É importante também ressaltar, que nesta lei não havia a previsão de nenhuma vantagem a ser concedida pelo Estado a tais entidades (art. 3°). Com o passar dos anos, porém, foram sendo concedidos gradualmente os mais diferentes benefícios às organizações reconhecidamente de utilidade pública, como isenções, financiamentos públicos, dentre outros.

        Dentro da pauta política nacional, somente a partir do governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) é que surge uma nova iniciativa de reforma administrativa e de fomento a tais parcerias, cujos fundamentos e diretrizes se encontravam no PDRAE - Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Tal reforma tinha como grande propósito a transferência da maior porção possível de serviços não-exclusivos para entidades criadas fora do aparelho estatal (o que se chama de “enxugamento” do Estado). Partindo dessa diretriz, foi instituído o Programa Nacional de Publicização, que autorizava ao Poder Executivo, com o fim de os serviços serem desenvolvidos de maneira mais eficiente, a transferência de bens e serviços públicos para entidades privadas que preenchessem certos requisitos, transformando-as em entidades públicas não-estatais. A necessidade um título jurídico especial para que determinadas entidades privadas colaboradoras recebessem os benefícios, criou uma nova instituição dentro do Direito Brasileiro: as Organizações Sociais, cujo marco legal se deu em sede da Lei Federal n. 9.637/1998.

3. Do Terceiro Setor

O Terceiro Setor, como anteriormente enunciado, coexiste junto ao primeiro setor (Estado) e ao segundo setor (Mercado), e pode ser entendido em sua origem como uma “inventiva da criatividade dos administradores ou economistas do período do apogeu do neoliberalismo entre nós” (MELLO, 2009, p. 224). Quanto à conceituação material, é aquele que “designa entidades que não são estatais e também não são prepostas a objetivos mercantis, predispondo-se, ao menos formalmente, à realização de objetivos socialmente valiosos e economicamente desinteressados” (MELLO, 2009, p. 224). O Terceiro Setor é assim composto pelas chamadas “entidades paraestatais”. Apesar de não estar prevista em disposição constitucional, tal expressão é amplamente aceita pela doutrina e jurisprudência, e constante em leis infraconstitucionais. A título de enriquecimento, traremos aqui alguns conceitos doutrinários que objetivam definir o que seriam tais  entidades.

José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 496) assevera que tais são “pessoas privadas, instituidas pelas fórmulas de direito privado, às quais pode ser atribuido o encargo da prestação de serviços públicos no regime de parceria com a Administração Pública”.

Por sua vez, Fernanda Marinela (2011, p. 168) conceitua como entidades paraestatais as que “colaboram ou cooperam com o Estado no desempenho de uma atividade de interesse coletivo, embora não integrem a Administração, residindo apenas ao lado dela.”

Adotamos o conceito dado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010, p. 491), que as define de forma didática como:

entidades privadas no sentido de que são instituídas por particulares; desempenham serviços não exclusivos do Estado, porém em colaboração com ele; recebem algum tipo de incentivo do poder público; por essa razão, sujeitam-se a controle pela Administração Pública e pelo Tribunal de Contas. Seu regime jurídico é predominantemente de direito privado, porém parcialmente derrogado por normas de direito público.

Feitas tais definições, podemos dizer que em nosso ordenamento jurídico pátrio compreendem-se como tais os serviços sociais autônomos, as entidades de apoio, as organizações da sociedade civil de interesse público e as organizações sociais. Sem buscar esgotar os temas, traremos uma breve definição das três primeiras figuras, e em sede de estudo específico das Organizações Sociais na próxima seção, buscaremos esgotar o tema.

Os serviços sociais autônomos, que compõem o sistema S (SESI , SESC, SENAC, SEBRAE, dentre outros, conforme enuncia Hely Lopes Meirelles (2003, p. 362), serão basicamente:

todos aqueles instituídos por lei, com personalidade de Direito Privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São entes paraestatais , de cooperação com o Poder Público, com administração e patrimônio próprios, revestindo a forma de instituições particulares convencionais ou peculiares ao desempenho de suas incumbências estatutárias.

Já quanto às entidades de apoio, Di Pietro (2010, p. 493) nos esclarece serem tais:

pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, instituídas por servidores públicos, porém  em nome próprio, sob a forma de fundação, associação ou cooperativa, para a prestação, em caráter privado, de serviços sociais não exclusivos do Estado, mantendo vínculo jurídico com entidades da administração direta ou indireta, em regra por meio de convênio.

 

Por fim, quanto às organizações da sociedade civil de interesse público, temos que são regulamentadas pela Lei n. 9.790/1999, regulamentada pelo Decreto n° 3.100/1999, que disciplinou a qualificação de entidades de direito privado, sem fins lucrativos, como OSCIPs. Segundo Marinela (2011, p. 176), nos termos da lei regulamentadora e das alterações promovidas pela Lei 10.539/2002 e pela Medida Provisória n. 2.216-37/2001, será a OSCIP:

pessoa jurídica de direito privado, instituída por particular, sem fins lucrativos, para a prestação de serviços sociais não exclusivos do Estado (serviços socialmente úteis), sob incentivo e fiscalização desse Estado, e que consagre, em seus estatutos, uma série de normas sobre estrutura, funcionamento e prestação de contas.

 

3.1 Das Organizações Sociais

Como se sabe, o objetivo declarado pelos autores da reforma administrativa empreendida durante o governo FHC, com a criação da figura das Organizações Sociais, foi o de que a prestação dos serviços propostos a tais entidades, já livres à atuação da iniciativa privada à época, deveria ser gradualmente transferido a este setor parceiro, até que fosse eliminada completamente a prestação direta daqueles por parte do Estado.

Cabe nessa questão indagar se tal processo exacerbado de publicização encontra amparo em sede constitucional. Nos termos dos artigos 196, 205, 206 e 208 da Constituição Cidadã de 1988, combinados com o artigo 175, também da CF, entendemos que evidenciam-se circunstâncias expressas impeditivas de que o Estado transponha em sua integralidade os serviços sociais, pois tem o dever constitucional de prestá-los diretamente, havendo inclusive previsão de que se não o fizer, deverá utilizar dos atos de concessão e permissão, precedidas de devida licitação. Tal pensamento é consoante às idéias defendidas por Di Pietro e Marinela.

O título de Organização Social, como já exposto, teve seu modelo institucional inicial delineado pela Lei Federal n. 9.637/1998, que foi um paradigma para a criação de tal título nas searas estadual e municipal. Quanto a seus elementos gerais, Mello (2009, p. 236) as conceitua, com base no artigo 1º da Lei 9.637/1998, como:

entidades privadas, qualificadas livremente pelo Ministro ou titular do órgão supervisor ou regulador da área de atividade corresponde ao seu objeto social e pelo Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, desde que, não tendo fins lucrativos, suas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde e a pessoa atenda a determinados requisitos formais óbvios e preencha alguns poucos requisitos substanciais, travando contrato de gestão com o Poder Público.

 

A denominação “Organização Social” em suma designará entidades  privadas ordinárias que optem por habilitar-se perante o Poder Público e, cumpridos certos requisitos formais óbvios, possam receber a qualificação por parte dos Ministros competentes. Quanto a este fato, impende destacar os dizeres de Mello (2009, p. 241) defende-se que a “qualificação como organização social, seria um gesto de “graça”, uma outorga imperial resultante tão-só do soberano desejo dos outorgantes, o que, a toda evidência, é incompatível com as concepções do Estado Moderno”.

Assim, é importante mencionar que a qualificação das entidades privadas como Organizações Sociais as precede em existência. Também há previsão de que, em razão das finalidades exercidas, possam tais entidades receber dotações orçamentárias, e cessão de bens públicos servidores públicos, já que previstas á época da Reforma do Aparelho Estatal como destinadas a absorver atividades desempenhadas por órgãos estatais extintos à época, usando livremente de suas instalações, bens e servidores.

Quanto às questões acima, temos ampla crítica doutrinária, sobretudo à figura da discricionariedade exacerbada (muitas vezes chamada de “escandalosa”) concedida aos Ministros para qualificar uma entidade como Organização Social, havendo mera concordância da parte desses, sem necessidade de qualquer habilitação técnica e econômico-financeira prévia. A esse propósito, faz-se mister o raciocínio do professor Mello (2009, p. 239), que finda em crítica severa:

Enquanto para travar com o Poder Público relações contratuais singelas (como um contrato de prestação de serviços ou de execução de obras) o pretendente é obrigado a minuciosas demonstrações de aptidão, inversamente, não se faz exigência de capital mínimo nem demonstração de qualquer suficiência técnica para que um interessado receba bens públicos, móveis ou imóveis, verbas públicas e servidores públicos custeados pelo Estado, considerando-se bastante para a realização de tal operação a simples aquiescência de dois Ministros de Estado ou, conforme o caso, de um Ministro e de um supervisor da área correspondente à atividade exercida pela pessoa postulante ao qualificativo de organização social. Trata-se, pois, da outorga de uma discricionariedade literalmente inconcebível, até mesmo escandalosa, por sua desmedida amplitude, e que permitirá favorecimentos de toda espécie.

Di Pietro (2010, p. 498), no mesmo prisma, alude, quanto à possibilidade de atribuição de bens e servidores a tais entidades, o precedente que se abre a facilitar desnecsários  riscos para o patrimônio público pela possibilidade de existência de “entidades fantasmas”:

Trata-se de entidades constituídas ad hoc, ou seja, com o objetivo único de se habilitarem como organizações sociais e continuarem a fazer o que faziam antes, porém com nova roupagem. São entidades fantasmas, porque não possuem patrimônio próprio, sede própria, vida própria. Elas viverão exclusivamente por conta do contrato de gestão com o poder público.

Quanto ao vínculo jurídico de sua relação com o Poder Público, podemos evidenciar que se formaliza com a celebração de um contrato de gestão, que será objeto de detida análise em sua pugnada inconstitucionalidade no tópico seguinte.

3.1.1 Dos contratos de gestão

O contrato de gestão celebrado entre Administração Pública e a entidade qualificada como Organização Social, discriminará as atribuições, responsabilidades e obrigações mútuas de ambas as partes, se constitui na principal diferencial da organização social dentro do Terceiro Setor, não sendo extensível às demais pessoas jurídicas privadas.

O problema quanto a estes se dá na redação do artigo 24, XXIV, da Lei 8.666/93, conferida pela Lei n° 9.648/98, que previu a dispensa de licitação “para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”. Vale lembrar que o instrumento licitatório tem como escopo a garantia da observância do Princípio da Isonomia e a de que seja escolhida a proposta mais vantajosa para a Administração. Porém, como já afirmado anteriormente, apesar da dispensa de licitação conferida não isentar o contrato da observância dos princípios constitucionais regentes do Direito Administrativo, a hipótese de desnecessidade de qualquer habilitação técnico-econômico anterior na qualificação, pode levar à formação de Organizações Sociais “fantasmas”, que provavelmente se envolverão em desvios de recursos de toda a natureza.

A nós, se figura inconstitucional tal descumprimento do dever geral de licitação, constante da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, arts. 22, inciso XXVII , 37, inciso XXI, e 175. Quando se há previsão de que tais Organizações Sociais poderão receber recursos públicos em geral (seja dotações orçamentárias, bens ou servidores), não se poderia dispensar o instrumento licitatório como regra a ser observada. Nossa opinião se coaduna à do eminente magistério proferido por Celso Antonio Bandeira de Mello (2009, p. 239), que afirma:

“Não se imagine pelo fato de o art. 37, XXI, mencionar a obrigatoriedade de licitação, salvo nos casos previstos em lei, o legislador é livre para arredar tal dever sempre que lhe apraza. Se assim fosse, o princípio não teria envergadura constitucional; não seria subordinante, pois sua expressão só se configuraria ao nível das normas subordinadas, caso em que o disposto no preceptivo referido não valeria coisa alguma. A ausência de licitação obviamente é uma exceção que só pode ter lugar nos casos em que razões de indiscutível tomo a justifiquem, até porque, como é óbvio, a ser de outra sorte, agravar-se-ia o referido princípio constitucional da isonomia. Por isto mesmo é inconstitucional a disposição do art. 24, XXIV, da Lei de Licitações (Lei 8.666, de 21.6.93) ao libera de licitação os contratos entre o Estado e as organizações sociais, pois tal contrato é o que ensancha a livre atribuição deste qualificativo a entidades privadas, com as correlatas vantagens; inclusive a de receber bens públicos em permissão de uso sem prévia licitação.”

 

 

A ilustre professora Di Pietro (2010, p. 498), nesse raciocínio, defende que, para que as OS se adequem aos princípios constitucionais que regem a gestão patrimonial pública e sua proteção, “a necessidade de exigência de licitação para a escolha da entidade”.

A corroborar o exposto acima, o mestre Marçal Justen Filho (2004, p.31) diz que “há necessidade de prévia licitação para configurar o contrato de gestão e escolher a entidade privada que será contratada”, afirmando que tal obrigatoriedade se daria porque os princípios de isonomia e indisponibilidade do interesse público são os regentes da questão. E o autor ainda alerta quanto aos contratos instrumentais e acessórios ao principal, que também serão beneficiados com a dispensa, pois “uma vez firmado o contrato de gestão, as futuras contratações de prestação de serviço – já previamente identificadas – serão pactuadas sem necessidade de nova licitação”. Tal preocupação se dá em sede de que o Decreto no 5.504, de 5-8-2005, exigia que as entidades qualificadas como organizações sociais, relativamente a recursos por ela administrados, oriundos de repasses da União, realizassem o procedimento licitatório quanto à aquisição de compras, obras, serviços e alienações. Porém, o Decreto n 6.170, de 25-7-2007, fez exigência diversa, determinando em seu artigo 11 que, embora a licitação prevista no Decreto 5.504/05 pudesse ser realizada, ela deixou de ser obrigatória na aquisição de bens e serviços. A jurisprudência brasileira também reconhece tal dispensa na celebração de contratos de prestação de serviços contemplada no contrato de gestão, conforme os termos do Recurso Especial 952.899/DF (2008/0113864-0), do STJ:

EMENTA: ADMINISTRATIVO. CONTRATO DE GESTÃO. LICITAÇÃO. DISPENSA. 1. O contrato de gestão administrativo constitui negócio jurídico criado pela Reforma Administrativa Pública de 1990. 2. A Lei 8.666, em seu art. 24, inciso XXIV, dispensa licitação para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão. 3. Instituto Candango de Solidariedade (organização social) versus Distrito Federal. Legalidade de contrato de gestão celebrado entre partes. 4. Ausência de comprovação de prejuízo para a Administração em razão do contrato de gestão firmado. 5. A Ação Popular exige, para sua procedência, o binômio ilicitude e lesividade. 6. Recurso especial improvido. (STJ – Rel. José Delgado)

 

Em meio à discussão doutrinária acerca de tal constitucionalidade, em sede do acórdão prolatado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923-5, destaca-se um valioso posicionamento jurisprudencial favorável à inconstitucionalidade da dispensa de licitação em comento, o qual foi proferido em sede de voto do ilustre relator Ministro Eros Grau quanto à questão em debate:

 

Dir-se-á, pois, que uma discriminação será arbitrária quando não seja possível encontrar, para a diferenciação legal, alguma razão adequada que surja da natureza das coisas ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível. Pois exatamente isso se dá na hipótese da Lei n. 9.637/98: não há razão nenhuma a justificar a celebração de contrato de gestão com as organizações sociais, bem assim a destinação de recursos orçamentários e de bens públicos móveis e imóveis a elas, tudo bom dispensa de licitação. Mais grave ainda a afrontosa agressão ao princípio da licitação quando se considere que é facultada ao Poder Executivo a cessão especial de servidor para as organizações sociais, com ônus para a origem. Inconstitucionalidade chapada, como diria o Ministro Pertence, inconstitucionalidade que se manifesta também no preceito veiculado pelo inciso XXIV do artigo 24 da Lei n. 8.666/93 com a redação que lhe foi conferida pelo artigo 1º da Lei n. 9.648, de 27 de maio de 1998. (STF – Rel. Eros Grau)

Por fim, é importante evidenciar também através de suporte fático a questão dos prejuízos que tal dispensa de licitação poderia trazer ao erário público. Para tal, é importante citar a denominada “Operação Assepsia”, conduzida pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte, que resultou na prisão de empresários e secretários por conta de irregularidades em contratos de gestão celebrados com organizações sociais que prestavam serviços de saúde, como o Hospital Maternidade Infantil Maria Correia. O Ministério Público apurou que as ditas organizações sociais eram empresas apenas de fachada (fantasmas). Isso evidencia o fato de que uma licitação anterior, nesse caso, antes da qualificação de tais entidades como OSs, teria sido necessária a evitar danos milionários ao erário.

Na capital de São Paulo, também a título de exemplo, temos tal evidência em matéria veiculada pelo jornal Estado de São Paulo no ano de 2009, em que se mostram as irregularidades apontadas pelo Tribunal de Contas do Município, quanto a contrato firmado com a Organização Social Amplus, que deixou de operar serviços de raios-X e ultrassom sem ao menos ter instalado os equipamentos exigidos no contrato multimilionário celebrado com a Secretaria Municipal de Saúde, além de ser alvo de acusação de fraudes trabalhistas de montante estimado em pelo menos 1,2 milhões de reais. Frise-se que irregularidades já haviam sido apontadas pelo TCM-SP há pelo menos dois anos antes da publicação da matéria e, mesmo assim o contrato firmado com tais organizações, conceituadas pela prefeitura como de “credibilidade indubitável” (o que exemplifica também o problema que envolve a livre qualificação das entidades por parte das autoridades competentes), vigorou até o fim, assim como os prejuízos que causou à população teoricamente atendida pelas 58 unidades de que a Amplus era responsável.

4. Conclusão

Iniciamos nosso trabalho conceituando o que são as Organizações Sociais e em que contexto se deu sua criação, a fim de permitir o entendimento da origem ideológica e os objetivos da criação de tal qualificação dentro do contexto da Reforma do Aparelho do Estado e da publicização.

Após análise detida sobre o Terceiro Setor e em específico as Organizações Sociais, acerca dos pontos que o estudo pretendia debater, nos embebemos dos ensinamentos de alguns dos mais eminentes doutrinadores administrativos do Brasil, com o fim de ratificar o que nos parece mais errado e inconstitucional dentro dos contratos de gestão, além de tecermos certas considerações quanto a outros aspectos polêmicos e dúbios relacionados à não-observância de outros preceitos constitucionais às Organizações Sociais, que se encontram em debate em sede da ADIN 1.923, conjuntamente à  questão precípua aludida pelo trabalho, que é o dispensa do instrumento licitatório e seus prejuízos à sociedade.

Quanto à dispensa de licitação em específico, de acordo com uma interpretação pautada em nossa norma superior, a Constituição, mostramos o porquê de defendermos a inconstitucionalidade da disposição em debate, pautando-se para tal em questões de direito e em exemplos de prejuízos no contexto fático

Postos tais fundamentos, não é difícil perceber a flagrante inconstitucionalidade de que padece tal dispensa de licitação concedida pelo diploma legal. Defendemos com veêmencia, fundamentando-se em sólida base de doutrina, que o inciso XXIV do art. 24 da Lei 8.666/93 seja extirpado do ordenamento público, através dos recursos constitucionais cabíveis, por violar preceitos como os princípios da obrigatoriedade de licitação, da isonomia e da moralidade administrativas, a fim de que não se abra precedentes para mais desvios do erário público e prejuízos à própria sociedade, que não receberá os serviços de forma universal e eficiente, conforme os direitos sociais que a faz jus, nem por parte do Estado,  nem de suas parceiras.

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Elaborado em novembro/2012

 

Como citar o texto:

GLATS, Rafael da Silva..A inconstitucionalidade da dispensa de licitação nos contratos de gestão celebrados entre Administração Pública e Organizações Sociais. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 20, nº 1048. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-administrativo/2693/a-inconstitucionalidade-dispensa-licitacao-contratos-gestao-celebrados-entre-administracao-publica-organizacoes-sociais. Acesso em 4 fev. 2013.

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