O presente artigo trata dos conflitos no campo existentes no Brasil e, mais especificamente, na região Amazônica – tendo em vista a maior concentração de área verde nesta localidade -, em razão de diversos fatores como a má distribuição de terras pelo Estado, bem como pelos fenômenos do desmatamento e das queimadas, que contribuem fortemente para o crescimento da violência no âmbito rural. É de elevada relevância o estudo do tema, tendo em vista que, além de abordar instituto fundamental do Direito Civil, que é o direito à propriedade, outro ponto que se destaca no contexto são os reflexos do desmatamento e das queimadas no cenário ambiental não só do país, mas do mundo, tendo em vista o interesse global pela conservação da Amazônia Legal. A pesquisa desenvolveu-se com abordagem qualitativa, utilizando-se do método da pesquisa bibliográfica, pautada na leitura de legislação, doutrinas e artigos relacionados à temática.

INTRODUÇÃO

A Propriedade consiste em um instituto essencial à pessoa humana, tendo em vista que materializa o direito fundamental do acesso à propriedade e visa efetivar os direitos previstos no caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, referentes à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança, que para ser assegurados, deve-se existir um mínimo de propriedade que garanta ao indivíduo o real acesso ou, ainda, a manutenção de uma mínima condição de dignidade (BRASIL, 1998).

E é no âmbito do Direito à Propriedade que surgem os conflitos nos campos pelo Brasil, ocasionados pela má distribuição das terras por parte do Estado e, também, pelo desmatamento e queimadas de florestas, que ocorrem desde sempre e cada vez mais forte na região da Amazônia Legal, trazendo à baila a problemática das mortes que ocorrem nesse cenário e a preocupação ambiental quanto aos efeitos destes fenômenos.

Ante a sua extrema importância, faz-se necessário um estudo sobre os conflitos rurais e suas peculiaridades, a fim de analisar os personagens deste cenário, bem como os fatos que comprovadamente contribuem para o atual panorama caótico ambiental, bem como de violência rural no território brasileiro.

O artigo em tela visa, portanto, elaborar uma pesquisa sobre o instituto do Direito de Propriedade, analisando sua relação com o aumento nas estatísticas de violência no campo, que ocorre em virtude da briga por terras, utilizando-se como meios para ‘’adquiri-las’’ o desmatamento e as queimadas ilegais.

A justificativa para realização do presente estudo se dá em virtude da extrema relevância da temática, pois não se trata apenas da discussão sobre os conflitos violentos por terra, mas, também sobre os meios utilizados para a aquisição ilegal destas áreas, quais sejam, as queimadas e o desmatamento, que são evidentemente uma problemática de toda a sociedade, não apenas no âmbito nacional, mas também a nível global, pois o crescimento destes fenômenos é extremamente preocupante para o viés ambiental, matéria de interesse público, que afeta o mundo todo.

Para tanto, foi realizada uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se principalmente da análise de doutrinas, artigos e leis voltados à temática.

Portanto, o presente trabalho busca evidenciar a ligação do desmatamento e das queimadas com os conflitos rurais existentes no Brasil e, mais concentradamente na região Amazônica, bem como os reflexos destes fenômenos do cenário ambiental e as possíveis soluções para a problemática.

 

1. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE NO BRASIL RURAL

Imprescindível para que se entenda os atuais desafios enfrentados pelo Brasil no cenário de conflitos no campo, faz necessário compreender a evolução do direito de propriedade no decorrer do tempo e como o território nacional fora ocupado. 

A ocupação do território brasileiro aconteceu de forma bem desordenada, sem que houvesse um controle por parte do Estado e sem uma separação adequada entre as terras que são consideradas públicas e as denominadas privadas. Ademais, em razão da falta de um cadastro único de terras, concentrando as informações geográficas e jurídicas das terras no país, as políticas fundiárias no Brasil foram elaboradas sem o preciso conhecimento do espaço, o que, por consequência, gerou várias sobreposições territoriais (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

Tem-se que a falta de controle por parte do Estado permitiu que particulares se apropriassem ilegalmente de terras públicas de forma mais fácil, o que atribuiu ao quadro agrário brasileiro um cenário completamente eivado de irregularidades.

A legislação agrária evoluiu a passos lentos no ordenamento jurídico brasileiro e, visando entender de forma pormenorizada o seu percurso, o presente estudo fará uma análise nos seguintes tópicos de cada regime e suas respectivas políticas públicas.

 

2. PERÍODOS DA EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE NO BRASIL

O desenvolvimento da legislação atinente ao direito de propriedade no cenário brasileiro pode ser subdividida em quatro etapas: O primeiro período diz respeito ao regime de sesmarias, entre 1500 a 1882; O segundo é denominado de regime de posse, entre os anos de 1822 a 1850; O terceiro é o regime da Lei de Terras de 1850; e o quarto período, nomeado de regime republicano que iniciou-se em 1889 e perdura até a atualidade (ROCHA, 2015).

 

2.1 REGIME DE SESMARIAS (1500 A 1822)

Os portugueses chegaram ao Brasil no ano de 1500 e, a partir de então, o território brasileiro, que era ocupado pelos índios há séculos, fora, por direito de conquista, reivindicado pela Coroa Portuguesa.

Segundo os estudos de Ligia Maria Osório Silva (1996), os portugueses, com o objetivo de impulsionar a colonização do Brasil, adotaram o instituto denominado Sesmarias. Tal regime consistia na ação do rei doar a particulares terras públicas, com a condição de que os indivíduos que as recebessem se obrigavam a cultivar tais terras pelo período de cinco anos. Se o particular não cumprisse tal obrigação, as terras voltariam a integrar o patrimônio da Coroa Portuguesa. Nesse contexto surgiu o conceito de ‘’terras devolutas’’, que nada mais eram as terras devolvidas à Coroa Portuguesa, ou seja, ao domínio público.

O Regime das Sesmarias foi o meio de aquisição legal de terras mais utilizado no período colonial, no entanto, o seu uso contínuo acabou por restringir o acesso a terra apenas aos particulares mais próximos do rei, já que era o mesmo quem escolhia a quem as terras eram doadas. Deste modo, as pessoas mais simples e pobres, que não possuam acesso ao rei e muito menos um meio legal de adquirir propriedade, se vendo desassistidas, passaram a ocupar pequenas áreas de terra às margens de grandes propriedades, distantes dos povoados (NOZOE, 2006).

A simples posse, pelos particulares, de terras de propriedade da Coroa Portuguesa se tornou uma prática comum nessa época, tendo em vista a existência com abundância de terras públicas no Brasil (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

A Concessão das Sesmarias foi suspensa em 1822, sem que nenhum outro regime jurídico fosse instaurado para suprir sua ausência.

 

2.2 REGIME DE POSSE (1822 A 1850)

O período entre os anos de 1822 até 1850 ficou conhecido como um ‘’vácuo legislativo’’, tendo em vista que, após a suspensão da Concessão de Sesmarias, não houve o estabelecimento por parte do Estado de nenhum outro regime que possibilitasse a aquisição de forma legal de terras por particulares (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

Na ausência de um regime que tratasse da aquisição de propriedade, a posse se tornou o único meio que a população encontrou para expandir e ocupar o território brasileiro. 

O vácuo legal existente nesse período resultou nos apossamentos de terra de maneira generalizada pelos indivíduos, tanto os pequenos como os grandes proprietários, fato que perdurou até a instauração da Lei de Terras, no ano de 1850, visando controlar a ocupação desordenada de terras que se expandia de forma muito rápida pelo território (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

 

2.3 REGIME DA LEI DE TERRAS DE 1850

Com a declaração da independência do Brasil, o Poder Público entendeu necessário adequar suas leis e instituições ao novo período político, econômico e social do país. A instauração de um novo Governo dependia de uma ordenação fundiária e do controle do Estado sobre as terras que ainda não haviam sido exploradas e que, de forma desordenada, era ocupada rapidamente por posseiros (SILVA, 1996).

Neste mesmo período, com o novo panorama da imigração de estrangeiros e da abolição da escravidão, o Poder Público julgou indispensável impedir a ocupação das terras de forma livre pelos escravos libertos e pelos recém chegados imigrantes, de modo a obrigá-los a servir de mão de obra nas lavouras (ZENHA, 1952).

Em meio a esse cenário de transformações, foi editada a Lei nº 601 de 1850, denominada de Lei de Terras de 1850, instituindo a compra com a única forma de aquisição de terras não exploradas. A nova lei também trouxe normas visando regularizar concessões irregulares e legitimar posses pacíficas, sem disputa ou contestação por terceiros. Estabeleceu ainda, a expansão do conceito de terras devolutas, abrangendo, além das terras que haviam sido devolvidas à Coroa Portuguesa, todas as terras que ainda não haviam sido ocupadas pelo domínio do rei (BRASIL, 1850).

 

2.4 REGIME REPUBLICANO (1889 AOS DIAS ATUAIS)

A inexistência de uma política efetiva de terras caracterizou a chamada Primeira República, entre os anos de 1889 a 1930. Neste período o Governo executou pouquíssimas iniciativas no sentido de promover o assentamento de pequenos agricultores em terras, razão pela qual a prática de particulares se apropriarem ilegalmente de terras devolutas continuou a acontecer sem que o Estado tivesse qualquer controle sobre esses atos, expandindo, desta forma, os latifúndios pelo território brasileiro (SILVA, 1996).

A Constituição, após a escolha do modelo federativo republicano, transferiu para os estados as terras devolutas que se localizavam em cada um de seus territórios, restando à União somente as áreas necessárias para defesa das fronteiras, para construção de estradas de ferro e construção com finalidades militares. Embora a Lei de Terras ainda estivesse em vigor, cada Estado elaborou sua própria lei sobre aquisição de terras públicas, contudo, guardando os preceitos da Lei 601/1850 (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

Com o advento da Revolução de 1930, instaurou-se no país um novo período político. O Governo que antes era dominado por grandes proprietários de terras passou a ter como objetivo a promoção da indústria e a se preocupar com questões de cunho social. Nesse contexto, a Constituição de 1934 se sobressaiu como a primeira Carta Magna brasileira que não declarou a propriedade como um direito de natureza absoluta (FAUSTO, 2002).

No período denominado de Estado Novo, que ocorreu entre os anos de 1937 a 1945, foi promovido, pelo governo autoritário de Getúlio Vargas, a ‘’Marcha para o Oeste’’, movimento que buscava, por meio de projetos de colonização, ocupar os grandes espaços vazios existentes nas regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. Ocorre que os espaços que o governo julgava vazios já estavam ocupados por indígenas, posseiros, fazendas de gado, exploradores de borracha, ribeirinhos e garimpeiros de ouro. Desta maneira, tais ocupações acabaram ocorrendo em terras que já estavam sendo habitadas, gerando diversos conflitos e levantando vários questionamentos relativos aos direitos de propriedade dos envolvidos (MARTINS, 1996).

Com a Constituição de 1946 fora estabelecido que a lei poderia promover a distribuição de terras de forma justa e que o uso da propriedade seria condicionado ao chamado bem-estar social. Tal Constituição criou, ainda, duas modalidades de desapropriação, quais sejam, a de utilidade pública e a de interesse social. A primeira estava sujeita ao interesse do governo, já a segunda condicionava-se à prévia e justa indenização, que deveria ser efetuada em dinheiro, o que, na prática, tornava tal modalidade inviável (SILVA, 1996).

Entre os anos de 1950 a 1960, em razão da mobilização social relacionada às reformas de base, bem como da criação dos primeiros movimentos sociais do campo, o debate sobre uma possível reforma agrária no Brasil se intensificou. Após o golpe de estado em 1964, foi instaurado o governo militar, que, apesar de reconhecer que o país realmente necessitava de uma reforma agrária, optou por regularizar a situação rural em conformidade com a lei e a ordem, coibindo de forma violenta os movimentos sociais da época (SILVA, 1996).

As condições necessárias à reforma agrária só foram criadas pelo primeiro governo militar, que estabeleceu títulos da dívida pública como uma maneira de indenizar os indivíduos pela desapropriação. Ademais, foi criada a Lei 4.504/1964, denominada de Estatuto da Terra, que instituiu a função social da propriedade como um novel regime legal da propriedade particular (SILVA, 1996).

O Estatuto da Terra, ainda em vigor até hoje, condiciona o exercício do direito de propriedade ao uso desta respeitando sua função social. O Estatuto definiu dois novos meios para promover a reforma agrária: a tributação da terra de forma progressiva e a desapropriação do latifúndio que não produz. No entanto, mesmo com estes novos instrumentos a reforma agrária não foi satisfatória, tendo, na prática, resultados mínimos (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

Em meados de 1970 o governo militar buscava a ocupação do território Amazônico por meio de projetos de colonização, iniciando-se um novo surto expansionista visando à integração nacional. Para viabilizar tal projeto o governo criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o INCRA, atribuindo a ele a responsabilidade de implantar a reforma agrária no Estado da Amazônia, mediante o assentamento de vários trabalhadores e suas famílias, oriundos de todas as regiões do país (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

Desta maneira, vários foram os projetos de colonização implantados pelo governo às margens das estradas federais da região Amazônica. Com o objetivo de tornar as terras produtivas, os colonos derrubaram florestas e iniciaram o cultivo de roças e manejo de gados. O desmatamento era incentivado pelo próprio governo, uma vez que as próprias instruções do INCRA informavam que a produtividade da terra deveria ser proporcional à área de floresta derrubada, embora vigorasse desde 1965 uma lei florestal que estabelecia regras visando proteger a vegetação nativa (BENATTI, 2008).

Conforme já era esperado, o INCRA não foi capaz de conceder títulos de propriedade e promover uma mínima assistência educacional, social e de saúde aos colonos, tendo em vista a crescente demanda por terras. Não havia estruturas de transporte, saneamento e muito menos energia. Diante desse cenário, o governo mudou de política de ocupação para política de incentivo à colonização privada, destacando a agricultura e pecuária. No entanto, em razão da ausência de infraestrutura e logística, grandes áreas ainda restaram improdutivas. A soma de todos esses fatores, juntamente com os diversos trabalhadores rurais sem terras e esquecidos pelo Estado, resultou na invasão de diversas propriedades, o que gerou violentos conflitos entre os trabalhadores e reais donos das propriedades invadidas (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

A desastrosa ocupação da Amazônia gerou além de desordem fundiária e promoção ao desmatamento, a mortandade de inúmeros índios e a ocupação de seus territórios, bem como a morte de pequenos posseiros e várias outras comunidades tradicionais que tiveram suas terras invadidas (MARTINS, 1996).

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a comumente denominada Constituição Cidadã, foi criada diversas normas acerca do cadastro e do registro de propriedade rurais, bem como sobre os direitos relativos ao uso da terra, regras sobre a reforma agrária, destinação de terras públicas e preservação ambiental. Tal Carta Magna estabeleceu também várias garantias sociais, dispondo sobre a função social da propriedade, o direito dos indígenas às terras que tradicionalmente habitavam, o reconhecimento de áreas quilombolas e o dever do Estado definir territórios que devem ser protegidos de forma especial (CHIAVARI; DAMASCENO; LOPES, 2017).

A Constituição de 1988 se destaca, ainda, por ter sido a primeira Carta Magna a tratar, de forma específica, da proteção e preservação do meio ambiente. Os princípios constitucionais ambientais se tornaram balizadores das demais ramificações do direito, como, a título de exemplo, o direito de propriedade, mediante a instituição da função socioambiental da propriedade (BENJAMIN, 2005).

Desta forma, observa-se que os direitos ambientais e territoriais envolvendo os trabalhadores e as comunidades tradicionais do Brasil só foram tratados de forma séria pelo governo no final do século XX. Somente após a CF/88 que o Estado assentiu e garantiu aos quilombolas, índios e de outras comunidades tradicionais, os seus respectivos direitos territoriais, criando, para tanto, diversas Unidades de Conservação para proteger o meio ambiente. No entanto, essas áreas são disputadas por outros grupos, como o de agropecuários, extrativistas de madeira e mineradores, que, motivados por interesses de cunho econômico variados, acabam criando violentos conflitos agrários.

 

3. O DIREITO DE PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL

O Direito de Propriedade é tido com base do direito das coisas, tendo em vista que se trata de uma instituição de sustentação no ordenamento jurídico. A propriedade figura como protagonista na estrutura econômica e social do Estado. Em tempos remotos, a propriedade era considerada direito subjetivo de caráter absoluto, no entanto, hodiernamente ressurge sob um novo viés, tendo em vista que possui relação direta com a função social, ou seja, a propriedade, para que cumpra com sua função, deve produzir de maneira a contribuir para a ascensão não só de seu proprietário, mas sim de todos (LIMA, 2018).

Desta forma, a propriedade deve cumprir a sua função social e, caso assim não o faça, não mais poderá ser tutelada pelo ordenamento jurídico, vez que este submete aos princípios fundamentais todos os interesses de cunho patrimonial. Portanto, o direito de propriedade é garantido desde que cumpra sua função social. Desta maneira, o conceito de propriedade pode ser sintetizado como um direito que possibilita ao proprietário usar, gozar e dispor de determinados bens, desde que agindo assim promova e assegure a dignidade da pessoa humana (LIMA, 2018).

O direito do titular deve, portanto, se coadunar com o interesse social. Deste modo, havendo conflito, os anseios da sociedade devem prevalecer sobre o individual. Nesse sentido tem-se a redação do artigo 184 da Constituição Federal que trata do instituto da desapropriação com a finalidade de promover a reforma agrária, aduzindo que a propriedade rural improdutiva será desapropriada, tendo o antigo titular como forma de indenização o pagamento em títulos da dívida agrária (BRASIL, 1988).

Ademais, o artigo 186 da Constituição Federal de 1988 ao tratar da política agrícola e fundiária dispõe (BRASIL, 1988):

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

No mesmo sentido declara o Código Civil, estabelecendo em seu artigo 1.228, §1º que (BRASIL, 2002):

Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

A função social atribuída à propriedade pela Constituição Federal de 1988 não invade e nem suprime a esfera do direito subjetivo do titular da terra, sendo, tão somente, uma ferramenta que visa assegurar que as ações do proprietário não colidam com os interesses da sociedade. Entretanto, o conceito de propriedade não está consolidado no âmbito rural, tendo em vista que o modo como se deu a distribuição de terras pelo Brasil instaurou um cenário de avanço da unidade de produção capitalista sobre o meio ambiente, conhecido por ‘’expansão da fronteira agrícola’’, - fenômeno ligado a necessidade de maior produção de alimentos e criação de animais no país em razão da demanda de importação destes produtos - que seria uma importante ferramenta do Estado visando eliminar a violência nos campos, uma vez que estaria facilitando a ocupação de terras públicas sem nenhuma destinação. A chamada expansão da fronteira agrícola é, portanto, fruto da exploração de terras (LIMA, 2018).

Ocorre que ao utilizar este mesmo padrão de distribuição nas terras de fronteira, tendo em vista serem estas regiões as que mais concentram disputas por direitos de propriedade, o Estado acaba fazendo com que os grupos que possuem um maior poder econômico e político tenham acesso aos títulos de posse das propriedades de maneira mais ampla, fato este que acaba gerando diversos confrontos violentos entre tais grupos e os menos favorecidos, que são os posseiros e pequenos proprietários, pois estes poucos grupos ao serem expulsos da terra, se deslocam em direção à floresta, abrindo novas áreas para lavrar e, assim, ampliando a fronteira. Tal processo, por fim, acabada segregando a perquirida função social da propriedade e a proteção ao meio ambiente (LIMA, 2018).

Desta forma, o direito de uma forma geral é conduzido pela função social, no entanto, ao se atribuir especificamente à propriedade uma nova forma de função social garante-se que os interesses subjetivos do proprietário se coadunem como o interesse de toda a coletividade, de forma que não haja prejuízo para nenhuma das partes.

 

4. A RELAÇÃO ENTRE O DESMATAMENTO E OS CONFLITOS VIOLENTOS NO CAMPO

A preocupação com o desmatamento e os conflitos rurais na região Amazônica subsiste desde a década de 80, isto é, após mais de uma década da desastrosa criação, pelo governo militar, da política de colonização da Amazônia. Diversos são os estudos que abordam o tema de conflitos no campo, no entanto, poucos são os que correlacionam violência rural com os fenômenos do desmatamento e queimadas ilegais sob o viés jurídico do direito de propriedade (LIMA, 2018).

Para que se compreenda melhor o que são os denominados ‘’conflitos no campo’’, se faz necessário conceituar esta expressão, podendo, para tanto, utilizar-se da descrição dada pela Comissão Pastoral da Terra (2018, pag. 19) que dispõe que os conflitos 

são as ações de resistência e enfrentamento que acontecem em diferentes contextos sociais no âmbito rural, envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de trabalho ou produção. Estes conflitos acontecem entre classes sociais, entre os trabalhadores ou por causa da ausência ou má gestão de políticas públicas. [...] Conflitos por terra são ações de resistência e enfrentamento pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso aos recursos naturais, tais como: seringais, babaçuais ou castanhais, dentre outros (que garantam o direito ao extrativismo), quando envolvem posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros, indígenas, pequenos arrendatários, camponeses, ocupantes, sem terra, seringueiros, camponeses de fundo de pasto, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc. As ocupações e os acampamentos são também classificados na categoria de conflitos por terra.

A Comissão Pastoral da Terra (2018, pag. 20) resume, ainda, a violência como sendo ‘’constrangimento, danos materiais ou imateriais; destruição física ou moral exercidos sobre os trabalhadores e seus aliados’’. Tal violência possui relação com variados tipos de conflitos registrados, bem como os movimentos e manifestações sociais do meio rural.

Os conflitos rurais pela propriedade e posse de terras ocorrem em diversas regiões do país e são marcados por vários atos violentos, resultando, assim, em uma generalização das formas de defesa da terra pelos habitantes rurais no Brasil (TAVARES, 2000).

A Comissão Pastoral da Terra divulga desde o ano de 1985, dados relativos à violência e aos conflitos no campo pelo Brasil. Em sua última edição, a citada comissão divulgou os dados referentes aos conflitos que ocorreram pelo país no ano de 2018. A edição referente ao ano de 2019 ainda não foi lançada. 

Conforme seus dados, em 2018 o número de pessoas envolvidas em conflitos rurais aumentou significativamente. A pesquisa expõe que 960.630 pessoas se envolveram em conflitos no campo no Brasil em 2018, em contraposição aos 708.520 envolvidos em tais conflitos no ano de 2017, um aumento de 35,6% dos casos. Os confrontos rurais que ocorreram especificamente em razão de disputa por terra tiveram 118.080 famílias envolvidas em 2018. Os dados apontam ainda, que 51,3% das pessoas envolvidas em conflitos agrários se encontram na região Norte do país, tratando-se tal informação de um forte sinal de que invasões e, por consequência, o desmatamento e queimadas à região Amazônica estão em processo avançado, com a exploração do agronegócio mediante o exercício de monoculturas (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2018).

Diante dos dados apresentados, tem-se que as regiões que mais desmatam são, também, as que apresentam um maior número de conflitos, em razão da existência, nessas áreas, de diversos confrontos envolvendo a disputa por direitos de propriedade de imóveis rurais entre posseiros e fazendeiros. Ao possuir direitos exclusivos sobre a propriedade, os fazendeiros ganham uma garantia adicional para que possam obter vantagens de cunho financeiro, de forma que possam realizar investimentos específicos, reduzindo o capital privado destinado à defesa da propriedade e aumentando o valor do imóvel rural de acordo com a expansão do seu mercado (LIMA, 2018).

Conforme bem coloca Leandro Ytalo da Costa de Lima (2018), quando a terra ainda é ‘’nova’’ o seu valor de comércio é considerado baixo, o que acaba facilitando os meios informais de aquisição de posse de tais imóveis rurais. Nesse cenário a incidência de violência é mínima, tendo em vista que a possibilidade de um acordo sobre os direitos de propriedade é mais viável. No entanto, ao passo em que o preço da terra aumenta, a fronteira agrícola vai se tornando ‘’velha’’ e, por consequência, a disputa por títulos de propriedade se acentua, uma vez que a regularização dos direitos referentes à propriedade valoriza ainda mais a terra, o que acaba potencializando a ocorrência de confrontos. 

Nessa conjuntura, instaurou-se um comércio de venda de terras, onde as classes com maior poder aquisitivo, assim que surgem as novas fronteiras, compram as terras por um valor baixo e as vendem por um preço extremamente elevado logo que as fronteiras se tornam velhas. Este fato, aliado ao comércio ilegal de madeiras e à criação de gado, que possui grande incentivo do governo, vez que, com a justificativa de tornar a terra produtiva, oferecem aos fazendeiros incentivos fiscais e estruturais, se posicionam como preponderantes condições que fortalecem e incentivam o desmatamento.

Neste ínterim, aduz (SANTANNA; YOUNG, 2010, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-80502010000300006 – acesso em 27 de março de 2020, apud ALSTON et al. 1996) que, 

Durante esse processo, os posseiros e pequenos proprietários são, em geral, os mais prejudicados, visto que se põem a enfrentar fazendeiros e grileiros com maior poder político e econômico. Para expulsar os posseiros, estes grupos com maior poder corrompem as agências que comandam o processo de titulação da terra, ou se utilizam de violência, não restando a esses menores grupos outra opção senão se deslocar para floresta visando abrir novas terras.

Portanto, quem mais se prejudica neste cenário são os posseiros e pequenos proprietários, tendo em vista sua fragilidade ante a possibilidade de uso de meios políticos e também violentos por parte dos fazendeiros e grileiros para expulsá-los das terras (SANTANNA; YOUNG, 2010).

Nesse sentido, ao serem expulsos de suas terras resta a esse grupo desfavorecido (posseiros e pequenos proprietários) apenas duas opções: permanecer nessas regiões de fronteira, buscando sobreviver por meio de trabalho assalariado na cidade, em razão da crescente urbanização nessas regiões; ou se direcionar a floresta visando desbravar novas terras, a fim de abrir uma nova área de fronteira, seja para extração ilegal de madeiras ou para a instauração de monoculturas (BECKER, 1990).

Coadunando com esse entendimento, Leandro Ytalo da Costa Lima (2018) aduz que é nesse contexto que os fenômenos do desmatamento e das queimadas ganham grande relevância, destacando suas relações com os conflitos rurais, uma vez que ao serem expulsos de suas propriedades, os posseiros e pequenos proprietários acabam se deslocando para a floresta com o intuito de desmatar e queimar para criar novos imóveis rurais.

A queimada, que é uma das etapas do processo de desmatamento, é tida como fase de desmatamento mais perigosa e nociva à floresta. Quando a região desmatada é atingida pelo fogo e transformada em pastagem, a título de exemplificação, o desmatamento desta área tende a se torna definitivo, pois a destruição da vegetação pelo fogo em conjunto com a plantação de pasto ou de plantações de grãos é extremamente mais nociva à floresta do que a extração ilegal de madeira (LOPES, 2009).

Tem-se que o processo de desmatamento por meio da utilização precípua das queimadas vem ocasionando a destruição definitiva das florestas, principalmente na região Amazônica. O padrão de distribuição de terras no Brasil instaurou um panorama de expansão da fronteira que, inicialmente, visava eludir a violência no campo por meio da promoção da ocupação das terras devolutas. Ocorre que esse mesmo padrão de facilitação da tomada de imóveis rurais fora reproduzido nas terras da nova fronteira, em virtude da existência de diversos conflitos nessas regiões pelos direitos de propriedade ainda não definidos. Em razão disso, os grupos que possuem maior poder político e financeiro (fazendeiros e grileiros) são os que efetivamente têm acesso aos títulos das terras, gerando, assim, violentos conflitos com os posseiros que, após serem expulsos das terras, desbravam outras regiões com o intuito de desmatar para ampliar a fronteira (SANTANNA; YOUNG, 2010).

Percebe-se, portanto, a interdependência entre os fenômenos do desmatamento e da violência dos conflitos no campo, uma vez que ambos são atingidos pelas particularidades da estrutura da concentração fundiária no Brasil, bem como pelas relações de produção e trabalho na área rural, aliados, ainda ao conjunto de políticas ineficazes do governo.

 

5. OS ASPECTOS AMBIENTAIS DOS DESMATAMENTOS E DAS QUEIMADAS

Os fenômenos do desmatamento e das queimadas na região amazônica não são novos. Outrossim, as razões pelas quais esses processos sempre ocorreram ainda são as mesmas. A diminuição da floresta amazônica é e sempre foi ligada às práticas ilegais de exploração de terras. Trata-se da denominada ‘’expansão da fronteira agrícola’’, obtida, no entanto, à custa do desmatamento desenfreado da vegetação amazônica.

A queimada é uma das práticas mais comumente utilizadas visando à abertura de novas terras para o cultivo de monoculturas ou atividade agropecuária. No entanto, com tal prática, tem-se uma série de impactos ambientais negativos não só para o país, mas para o mundo (TORRES, 2019).

A presença de vegetação é essencial para haja equilíbrio no meio ambiente, vez que aquela contribui de forma expressiva para o controle da temperatura, a fertilização dos solos, a absorção de gás carbônico (CO2), absorção de gases poluentes e manutenção de microclimas e do ciclo hidrológico. Servindo, ainda, de refúgio para a fauna e fonte de medicamentos e alimentos não só para os animais, mas também para os humanos (MACHADO, 2012).

Desta forma, o desmatamento e as queimadas geram impactos ambientais que resultam na inserção na atmosfera de gases como o óxido de nitrogênio e o monóxido de carbono. A concentração em elevada quantidade de gás carbônico (CO2), que é tido como um gás tóxico e reativo pode, ao ser exposto a radiação ultravioleta, produzir grandes quantidades de Ozônio, (O3) troposférico, o que é extremamente tóxico aos sistemas ambientais (SOUZA, 1992).

Tem-se que o aumento nas temperaturas em todo o mundo possui estreita relação com as emissões de gás carbônico na atmosfera, causando o chamado efeito estufa. Naturalmente este não um efeito nocivo, vez que em sua essência serve para manter os raios do sol próximos a Terra, assegurando, desta forma, uma temperatura adequada para o desenvolvimento da vida humana do planeta (TORRES, 2019).

A problemática ocorre no excesso. A maioria dos gases que fazem parte do efeito estufa é emitida pela queima de combustíveis de carvão vegetal e fósseis. Nesse sentido, quando áreas gigantes de florestas são queimadas, a emissão de gases na atmosfera aumenta de forma significativa e, como consequência, o efeito estufa deixa de ser um fenômeno inofensivo e natural, fazendo com que a temperatura do planeta se eleve de maneira extremamente perigosa para a vida humana (TORRES, 2019).

De acordo com os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mais de 20 mil hectares de floresta foi desmatado na região amazônica, atingindo, ainda, áreas da Bolívia e do Paraguai. Entre janeiro e março de 2020, 43,1% dos focos de queimadas no Brasil estavam concentrados na região Amazônica (INPE, 2020).

O aumento do número de queimadas, embora não representem índices recordes, tendo em vista que já houve no Brasil momentos históricos em que os focos de incêndios foram maiores, representam uma alarmante tendência de aumento contínuo desses números (TORRES, 2019).

Ademais, o aumento desenfreado do desmatamento e queimadas traz consigo o consequente aumento nas temperaturas globais. Esse aumento gera, além dos já esperados problemas ambientais, prejuízos de caráter econômico, tendo em vista que temperaturas demasiadamente altas modificam o regime de chuvas, causando desequilíbrio no ciclo da vida global, pois os excessos de chuvas acarretam a perda de colheitas em virtude de alagamentos das plantações e sua escassez gera seca, causando a morte de animais criados para corte e produção de leite (TORRES, 2019).

Os estudos de Gleriane Torres (2019) apontam, ainda, como resultados do desequilíbrio climático causados pelo desmatamento e queimadas, diversos fenômenos naturais como furacões, vendavais, tufões e enxurradas. Somadas a essas ameaças, temos ainda as diversas doenças causadas pela poluição, como, a título de exemplo, problemas respiratórios, ingestão de parasitas presentes em água contaminada e nascimento de crianças com males congênitos.

A degradação gerada pelo desmatamento seguido de queimadas é não só ilegal, como considerada predatória para o meio ambiente e para a vida humana. A ausência de controle por parte do Estado e a destruição progressiva da vegetação podem gerar diversos desastres naturais, a inviabilidade da vida humana e a extinção de ecossistemas essenciais às comunidades indígenas e quilombolas, além da destruição da biodiversidade da fauna e da flora na região amazônica.

 

6. AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO E CONTROLE DO DESMATAMENTO E DAS QUEIMADAS

O desmatamento e as queimadas acarretam diversos problemas de cunho ambiental e também social, como o aumento de emissão de gases de efeito estufa, perda de biodiversidade e a diminuição de áreas de populações tradicionais. As políticas de controle e prevenção desses fenômenos são, em tese, realizadas pelo ministério do Meio Ambiente e devem seguir as diretrizes impostas pelo chamado Plano de Ação visando a Prevenção e o Controle do Desmatamento, conhecido como PPCDAM.

O PPCDAM, lançado no ano de 2004, se propõe a integrar políticas com o escopo de diminuir a taxa de desmatamento de região amazônica, mediante o ordenamento fundiário e territorial, bem como o controle e monitoramento ambiental e o fomento a atividades com finalidades produtivas e de meios sustentáveis (TRASEL, 2009).

Conforme os estudos de Ulisses Trasel, (2009), o PPCDAM possui dois eixos: o primeiro trata-se do ordenamento fundiário e territorial, que possibilitou a criação de 25 milhões de hectares de unidades de conservação, conhecidas também como UCs, e cerca de 10 milhões de hectares de territórios indígenas devidamente homologados. Tal eixo promoveu ainda o estabelecimento de novos critérios para a destinação de terras públicas e o cancelamento de 70 mil cadastros de comprovantes de imóvel rural; o segundo eixo refere-se ao monitoramento e controle ambiental efetuado por meio de sistemas de monitoramento do desmatamento e aprimoramento das ações de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, o IBAMA.

Nesse sentido, destaca-se o desenvolvimento de vigilância por meio de satélite como uma das políticas públicas mais utilizadas para o controle das queimadas na região amazônica, onde a detecção e medição das áreas de desflorestamento são feitas mediante o uso dos seguintes sistemas: Programa de Cálculo do Desflorestamento da Amazônia, o PRODES; e pela Detecção de Desmatamento em Tempo Real, o DETER (TRASEL, 2009).

No âmbito de políticas públicas voltadas ao controle e prevenção do desmatamento, tem-se, ainda, o Plano Amazônia Sustentável (PAS), criado em 2008 com o objetivo de instituir diretrizes para orientar o desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal, valorizando a diversidade ecológica e sociocultural, visando reduzir as desigualdades regionais. No entanto, tal programa deve ser encarado apenas como uma declaração de intenções, tendo em vista que não institui metas ou prazos e tampouco discrimina quais ações devem ser realizadas para a concretização de seus eixos (SANTOS, 2010). 

Ocorre que, embora o Plano de Ação visando a Prevenção e o Controle do Desmatamento tenha sido fundamental para a redução do desmatamento na região amazônica, essencialmente mediante a implementação dos sistemas de monitoramente por meio de satélites (PRODES e DETER) e pela expansão dos territórios protegidos (unidades de conservação e terras indígenas), é clarividente que a problemática do desmatamento e queimadas ainda é atual e gradativamente vem retomando ascensão, o que precisa ser evitado (CARDOSO, 2019).

O pesquisador Tasso Azevedo (2019) enfatiza que uma maneira de impedir efetivamente o desmatamento e as queimadas em áreas de propriedade privada seria por meio da aplicação de multas como a de radar de trânsito aos que promovam o desmatamento. Trata-se de cruzar os dados de monitoramento gerados por satélites, que identificam os alertas de desmatamento e focos de calor, com o Cadastro Ambiental Rural, o CAR, que é o registro público eletrônico nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais e que possui informações ambientais das propriedades e posses rurais.

Utilizando-se desse cruzamento de dados, o governo saberia em quais propriedades aconteceram os focos de queimada e os desmatamentos. Saberia, ainda, se tais fatos ocorreram em áreas de reserva legal ou em áreas de preservação permanente, o que, de pronto, configuraria ato ilegal, visto que tais territórios não podem ser desflorestados (AZEVEDO, 2019).

Agindo desta maneira, o Estado seria capaz de multar o proprietário das áreas desmatadas e/ou queimadas, do mesmo modo que é possível enviar ao indivíduo uma multa de trânsito monitorada por meio de radar (AZEVEDO, 2019).

Embora tecnologia e dados sejam essenciais para a identificação e responsabilização, o controle e prevenção do desmatamento e queimadas se torna inviável sem a fiscalização realizada in loco, especialmente nos vastos territórios de domínio privado na região Amazônica, neles inclusos as Unidades de Conservação e as terras indígenas (áreas protegidas), territórios quilombolas e de comunidades tradicionais e os assentamentos de reforma agrária (CARDOSO, 2019).

Ademais, a política ambiental no Brasil, ainda que tenha sido estimulada legalmente desde os anos 1980, por não ser considerada prioridade pelo governo dentro da estrutura do Estado, sempre foi preterida no que diz respeito à destinação de orçamento para a execução satisfatória de seus planos e ações (CARDOSO, 2019).

Comparando o orçamento anual de 2019 com a Lei 13.978 de 2020, que estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 2020, é possível subentender que a destinação de orçamento aos órgãos responsáveis por gerir e defender as áreas protegidas não é prioridade do governo (CARDOSO, 2019).

No que tange ao orçamento da Fundação Nacional do índio, a FUNAI, voltado à fiscalização e monitoramento territorial das áreas indígenas, em 2019 o valor autorizado pelo governo foi de R$ 12,38 milhões, sendo que deste valor R$ 4,2 milhões foram contingenciados. Para 2020 o valor destinado para fiscalização fora somente de R$ 7,7 milhões, ficando o restante de R$ 4 milhões dependendo de aprovação de crédito extraordinário (BRASIL, 2020).

Com relação às Unidades de Conservações Federais, que são de incumbência do Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade, o ICMBio, o orçamento destinado à fiscalização ambiental, prevenção e combate a incêndios florestais, em 2019 foi autorizado o valor de R$ 28 milhões, sendo que R$ 5,48 milhões foram contingenciados. Para o exercício de 2020 foi liberado tão somente o valor de R$ 13,56 milhões (BRASIL, 2020).

O planejamento orçamentário para a ação de monitoramento da cobertura da terra e do risco de queimadas e incêndios florestais sob a responsabilidade do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE, que realiza a fiscalização de incêndios na Amazônia, informando as autoridades responsáveis sobre os focos de queimadas, recebeu no ano de 2019 o valor de R$ 3,2 milhões. Em 2020 o valor autorizado caiu para R$ 2 milhões (BRASIL, 2020).

Tem-se, portanto, que a ausência de orçamento e poder destinado aos órgãos responsáveis por gerir e defender as áreas protegidas tem gerado fragilidade às ações de fiscalização e gestão dos problemas ambientais, bem como a não resolução do cenário fundiário nessas regiões. O resultado, portanto, tem sido o aumento do desmatamento e queimadas nas áreas protegidas e uma forte pressão visando à ocupação dessas áreas com fito econômico, mais especificamente para prática de atividades agropecuárias e de extração de madeira (CARDOSO, 2019).

Vê-se, portanto, que a problemática não está situada na ausência de legislação ou políticas públicas de prevenção e controle do desmatamento e queimadas, pois tais ações já existem. A solução é o devido cumprimento a lei e real implantação as Políticas Públicas, com ações do governo no sentido de priorizar a destinação de orçamento e poder aos órgãos que efetuam a fiscalização e gestão das áreas protegidas.

 

CONCLUSÃO

Os fenômenos do desmatamento e das queimadas, bem como os conflitos sociais no âmbito rural sabidamente não são acontecimentos recentes, tanto o é que são temas sempre presentes na história agrária no Brasil. No entanto, raras vezes o desmatamento e queimadas são correlacionados aos conflitos no campo, sendo sempre apresentados de forma dissociada.

No presente trabalho buscou-se demonstrar que o desmatamento está intimamente ligado aos confrontos na área rural, principalmente na região da Amazônia Legal, centro dos conflitos mais acirrados por terra. A estreita relação entre estes acontecimentos se dá em razão da hipossuficiência dos posseiros e pequenos proprietários que ao serem expulsos das terras pelos grandes fazendeiros e grileiros, se vêem diante de um cenário de total desamparo pelo Estado, realidade que os levam a se dirigir às florestas com o objetivo de desmatar e queimar para abrir novas fronteiras e dar sequência ao ciclo de desflorestamento e conflitos.

Foi possível observar que os problemas que envolvem a temática não se situam apenas no conflito pela propriedade que, em tese, é um direito assegurado a todo o cidadão, indo além, abrangendo também os problemas ambientais que resultam do desmatamento e das queimadas desenfreadas na região Amazônica. Os resultados são alarmantes e geram preocupação mundial, pois o efeito estufa, fruto da emissão exacerbada de gases tóxicos na atmosfera, dentre outros tantos problemas que resultam do desflorestamento, afeta todos de forma indistinta, desde os que provocam o desmatamento até os que lutam para combatê-los.

Analisou-se, ainda, as políticas públicas no âmbito do governo, bem como a postura deste diante do cenário ambiental caótico de desmatamento e queimadas que gradativamente vem retomando ascensão, sendo possível observar que o efetivo cumprimento das já existentes leis e políticas públicas, com a devida injeção de orçamento aos órgãos que efetuam a gestão e fiscalização do meio ambiente seria extremamente relevante para melhorar o quadro ambiental no país.

Tem-se que a interdependência entre o desmatamento/queimadas e a violência no âmbito rural de fato existe, uma vez que ambos são afetados pela estrutura fundiária que concentra a terra nas mãos de grupos seletos por razões de cunho sempre econômico, desamparando os que de fato necessitam da proteção do Estado e da garantia do direito de propriedade anunciado na Carta Magna de 1988.

Por fim, percebe-se que a presente temática representa dois lados de uma mesma moeda, uma vez que revela o processo de exclusão a que os indivíduos que não possuem acesso à propriedade se submetem no cenário agrário do país.

 

REFERÊNCIAS

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Data da conclusão/última revisão: 25/05/2020

 

Como citar o texto:

SANTOS, Vanessa Neves Dos Santos.Violência Rural: direito de propriedade, desmatamento e queimadas. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 984. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-ambiental/10245/violencia-rural-direito-propriedade-desmatamento-queimadas. Acesso em 24 jun. 2020.

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