RESUMO

O tema abordado nesse trabalho refere-se a uma questão de grande relevância para o direito civil, bem como para o âmbito dos Registros Públicos. Indiretamente, traz um estudo acerca dos aspectos legais do abandono afetivo sofrido pelo filho por parte do seu genitor, todavia, o enfoque é a discussão acerca da possibilidade de utilização desse abandono como fundamento para um pedido judicial de supressão do sobrenome paterno em sua certidão de nascimento. Nesse sentido, fora feita uma análise acerca da plausibilidade desse pedido à luz do ordenamento jurídico brasileiro, mais especificamente na Lei de Registros Públicos, bem como na Jurisprudência, identificando-se quais os critérios adotados para pautar o julgamento do pedido. Por fim, mostrou-se relevante identificar os impactos jurídicos que essa supressão poderá ocasionar à vida de quem a pleiteia, bem como de terceiro, considerando que, com a mudança de registros, surge um novo indivíduo de direitos.

Palavras-chave: Abandono Afetivo; Lei de Registros Públicos;Patronímico;Supressão.

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil disciplina no Art. 229 o dever de assistência dos pais para com os filhos menores na infância (BRASIL, 1998). A jurisprudência dos tribunais superiores, em algumas decisões, entendeu que o descumprimento dessa obrigação instituída constitucionalmente por parte dos pais poderá ensejar o dever de indenizar o filho, visando a possível “compensação” do dano ocasionado por sua ausência. É o que a doutrina denomina de abandono afetivo[3].

Em algumas das ações que tratam do tema, identificou-se que, além do pedido de reparação civil por abandono afetivo, o filho lesado pleiteava a supressão do sobrenome do respectivo genitor do seu registro de nascimento.  A pretensão demonstra o anseio do filho de não mais carregar um sobrenome que remeta às suas angústias familiares e, especialmente, que não corresponde à sua realidade familiar.

Sucede que este anseio não encontra amparo na Lei nº 6.015 de 1973 – Lei de Registros Públicos - que é taxativa ao prever as hipóteses de alteração nos registros civis, bem como, encontra como obstáculo o princípio da imutabilidade do nome, amplamente utilizado pelos tribunais para fundamentar o indeferimento dos pedidos de alteração do nome. Assim, a identificação da plausibilidade do pedido de supressão do sobrenome do genitor fundado no abandono afetivogerado ao filho constitui tema atual e relevante e necessitou de um estudo mais aprofundado.

A pesquisa foi realizada utilizando o método lógico-dedutivo, que tornou possível, inicialmente, a identificaçãoda plausibilidade do pedido de supressão do sobrenome à luz da Lei de Registros Públicos, bem como, identificar os critérios adotados pela jurisprudência para pautar o julgamento desse pedido. Por fim, foi possível elucidar os principais impactos jurídicos que a supressão do sobrenome poderá ocasionar para o filho, bem como para terceiros.

 

1. O DIREITO AO NOME ENQUANTO DIREITO DA PERSONALIDADE E A PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O Código Civil de 2002 trata, a partir do Capítulo II do seu primeiro livro, dos direitos da personalidade. Para Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 67) a existência de um capítulo próprio para tratar desses direitos demonstrou uma inovação do Código Civil e também uma evolução, pois deixou o caráter essencialmente patrimonial predominante do código de 1916 e passou a se preocupar com o indivíduo, em conformidade com o que preceitua a Constituição de 1988.

Na visão dos autores supracitados os direitos da personalidade são “aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais” (2017, p. 67). São caracterizados como direitos indisponíveis, inalienáveis, vitalícios, intransmissíveis, extrapatrimoniais, irrenunciáveis, imprescritíveis e oponíveis contra todos. Entre esses direitos, está o direito ao nome, elencado no Art. 16 do Código Civil.

O vocábulo “nome” disposto no artigo supracitado refere ao nome completo, composto pelo prenome e o sobrenome. É considerado um dos principais elementos de identificação e particularização do indivíduo na sociedade.

Para Gonçalves (2017, p. 157) o nome é o sinal exterior capaz de identificar o indivíduo em família e na sociedade. Loureiro (2017, p. 166) o compara com uma etiqueta que é colocada sobre cada pessoa e reforça:

O nome é o sinal que identifica e individualiza a pessoa no grupo familiar e na sociedade. A pessoa recebe o nome já ao nascer, que o acompanha até sua morte. Até mesmo depois da morte o nome da pessoa continua a ser lembrado e evocado pelas pessoas que com ela tiveram contato ou por aquelas que tiveram conhecimento de suas atividades, de suas obras. Toda e qualquer pessoa pratica os atos da vida civil sob o nome que lhe é atribuído e que é enunciado em seu registro de nascimento. Daí a importância e a obrigatoriedade do assento de nascimento, costumeiramente chamado de primeiro ato de cidadania e, por isso mesmo, gratuito por determinação legal. (LOUREIRO, 2017, p. 168)

O estudo acerca dos elementos do nome aponta a existência de um aspecto público e um individual.

O aspecto público se caracteriza pelo interesse do Estado de que as pessoas sejam corretamente identificadas na sociedade pelo seu nome. Assim, o Estado vale-se da Lei 6.015/73 - Lei de Registros Públicos - para disciplinar o uso do nome, expressando a possibilidades de alterações e proibindo o uso de prenomes que exponham o indivíduo ao ridículo.

Já o aspecto individual, abrange o poder que o indivíduo dispõe de usar e defender o seu nome da usurpação de terceiros e exposição ao ridículo.

Vale observar que, até alcançar esse patamar de direito da personalidade a natureza jurídica do nome foi, por bastante tempo, debatida entre os doutrinadores. Entre as diversas teorias, destacam-se a da propriedade, negativista e a do sinal distintivo revelador da personalidade. Esta última defendida por Washigton de Barros Monteiro e Louis Josserand.

Os doutrinadores que defendiam a natureza jurídica do nome como um direito de propriedade sustentavam que ele era uma forma de propriedade que tinha como titular a família ou seu portador (GONÇALVES, 2017, p. 159). Ocorre que a teoria foi refutada, pois em comparação com as características dos direitos da propriedade, como a prescrição e o caráter patrimonial, verificou-se a incompatibilidade com o direito ao nome, que é inalienável e possui natureza extrapatrimonial.

A teoria negativista, aceita por grandes civilistas como Savigni, Lhering e Clóvis Beviláqua, inovou entendendo que o nome o nome não possui o caráter de direito e, portanto, não merecia tamanha proteção jurídica. Por óbvio, entende-se porque foi refutada.

Teoria muito semelhante à negativista foi a apontada por Brandelli (2012, p. 42), denominada Teoria da Polícia Civil. Essa teoria também nega a existência de um direito ao nome, todavia, atribui-se ao nome apenas uma obrigação ou imposição pública. Nesse sentido, ressalta que na verdade não existe direito subjetivo ao nome, senão que há uma obrigação ao nome. Vejamos a explicação do referido doutrinador:

A lei não faculta às pessoas a possibilidade de ter ou não um nome, mas impõe a obrigatoriedade deste signo de identificação, e estabelece tal obrigatoriedade não com vista ao interesse particular das pessoas, mas com vistas ao interesse da coletividade. (...) Para os adeptos deste pensamento, o nome é uma obrigação, mais do que o objeto de um direito; é forma coativa, de designação dos indivíduos. (BRANDELLI, 2012, p. 42)

Até se consolidar a teoria do nome como um direito da personalidade, várias teorias a respeito da sua natureza jurídica foram surgindo. Esse debate foi encerrado quando da inserção do nome no Código Civil no capítulo destinado aos Direitos da Personalidade, não restando qualquer dúvida acerca da sua natureza jurídica.

Muito mais que um instrumento capaz de individualizar o homem diante da sociedade, o nome também é uma das formas de concretização da dignidade da pessoa humana, notada tanto ao assegurar ao indivíduo o direito de possuir um nome, bem como, por impor regras a respeito da formação do nome, vedandoa utilização de nomes que remetam esse indivíduo ao ridículo. Nesse sentido, posiciona-se Brandelli:

A dignidade da pessoa humana é princípio basilar do ordenamento jurídico, o qual tem o condão de proporcionar o amplo desenvolvimento da personalidade humana em sua plenitude, tanto no aspecto material quanto no psicológico, devendo ser observado por todo o ordenamento jurídico. (BRANDELLI, 2012, p.58)

Assim, conclui-se que, diferente do que foi defendido em teorias pretéritas, o nome é um direito da personalidade e o seu portador tem o direito de possuí-lo e defendê-lo contra usurpações e exposições.

Também é possível constatar que a consagração do direito ao nome como um direito da personalidade possibilitou uma maior compatibilização do instituto com a atual Constituição e, por isso, tem ampla relação com um dosprincípios basilares da CFRB/88, o da Dignidade da Pessoa Humana.

É justamente por assegurar a promoção da dignidade da pessoa que o nome possui a proteção do Estado, que impõe regras para a sua escolha e modificação, estas dispostas da Lei de Registros Públicos – Lei 6.015/1973.

Por fim, vale pontuar que é a busca pela efetivação da dignidade do indivíduo abandonado afetivamente pelo pai o principal fundamento constitucional que pauta os pleitos de supressão do patronímico, objeto de estudo desse artigo. 

 

2. ABANDONO AFETIVO: BREVE EXPLANAÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe, no bojo de mudanças significativas para o ramo do direito, a consagração de vários princípios considerados norteadores para o direito de família, destacando-se entre eles o princípio da Afetividade.

A instituição desse princípio no ordenamento jurídico pátrio, associado a diversos outros dispositivos legais, possibilitou o reconhecimento do Abandono Afetivo dos pais como elemento causador de dano ao filho, sendo possível a sua reparação.

Dias (2016, p. 84) assevera a relevância do princípio da afetividade para as construções familiares atuais, apontando que o conceito atual de família utiliza-se do afeto como elemento agregador, exigindo dos pais o dever de criação e educação dos filhos, a fim de assegurar o seu desenvolvimento pleno e evitar que o sentimento de dor e abandono reflitam negativamente em sua personalidade.

O termo affectio societatis, muito utilizado no direito empresarial, também pode ser utilizado no direito das famílias, como forma de expor a ideia da afeição entre duas pessoas para formar uma nova sociedade: a família. O afeto não é somente um laço que envolve os integrantes de uma família. Também tem um viés externo, entre as famílias, pondo humanidade em cada família. (DIAS, 2016, p. 84).

Outros dispositivos legais unem-se ao princípio supramencionado para reforçar os deveres de atenção, cuidado e assistência que recaem sobre os pais em relação aos seus filhos. Podem ser elencados como primordiais os Art. 225 e 227 da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como o Art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que instituiu o direito que toda criança tem de ser criado no seu seio familiar, observadas as situações excepcionais (BRASIL, 1990).

O descumprimento desses deveres legalmente impostos aos pais poderá configurar o abandono afetivo do filho, e, por conseguinte, o dever de indenizá-lo pelo dano causado. Trata-se de uma realidade já conhecida pelos tribunais superiores, visto que, diversas ações de reparação civil por dano moral fundadas no abandono afetivo já foram julgadas. Na doutrina, o tema ainda divide opiniões.

Morais e Teixeira (2016) destacam-se ao defender a possibilidade utilizando como fundamento a força do vínculo de solidariedade familiar:

Na relação parental, o vínculo de solidariedade familiar é o mais forte que há, e por isso, sua violação, bem como a da integridade psicofísica das crianças e adolescentes, poderá dar azo ao dano moral quando tiver havido abandono moral por parte de genitor biológico e ausência de figura parental substituta. (MORAIS e TEIXEIRA, 2016, p. 126)

Jafet (2016, p. 15) ressalta que por muito tempo entre os doutrinadores difundiu-se a equivocada ideia de que não seria possível punir o genitor que abandonou moralmente o filho utilizando-se o fundamento de que não se pode obrigar ninguém a amar, devendo o direito “respeitar o livre arbítrio das pessoas em suas trocas afetivas no âmbito das relações familiares” (JAFET, 2016, p. 15).

Todavia, a Ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi, ao proferir o seu voto no julgamento do Recurso Especial nº 1.159.242 – SP (2009/0193701-9), entendeu de forma diversa, fazendo a devida distinção entre o dever de cuidar, extraído do dispositivo legal, e o de amar:

(...) Alcançando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a amar. Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. (...) O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presenças, contatos, mesmo que não presenciais; (...) Em suma, amar é facultado, cuidar é dever. (Grifo do texto). (STJ, 2012, s/p)

A referida decisão, apesar de ainda dividir opiniões, formou um precedente que garantiu o seguimento dessa linha de pensamento em diversas outras decisões pelos tribunais do país.

Nesse mesmo sentido reforça Araújo:

Não se tratar de uma imposição jurídica de amar, mas imperativo judicial da possibilidade da construção do afeto entre pais e filhos, por meio da convivência, da proximidade do ato de educar, na qual é instalada a referência paterna como garantidora da integridade psicofísica que faz parte da dignidade dos filhos ainda crianças e adolescentes.

(ARAÚJO, 2015, p. 16)

Dias (2016, p.164) se posiciona acerca do tema defendendo que a convivência dos pais com os filhos não é um direito, mas um dever, principalmente no contexto atual onde se passou a falar em paternidade responsável. A Autora conclui o seu raciocínio alertando que o distanciamento entre pais e filhos pode gerar sequelas emocionais que poderão produzir efeitos pelo resto da vida.

Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 859) ressaltam que a matéria ainda ensejará discussões, todavia, é possível que a segurança jurídica almejada para a questão possa ser obtida com a consagração no direito positivo do afeto como um bem jurídico cuja violação caracterize ato ilegal. Válido lembrar que, na visão dos autores supracitados, “dinheiro nenhum efetivamente compensará a ausência, a frieza, o desprezo de um pai ou de uma mãe por seus filhos, ao longo da vida” (p. 753).

O que se vislumbra é que o dano que a ausência do genitor causa ao filho é um dano que produz efeitos permanentes na personalidade do indivíduo. Ainda que a indenização pleiteada não traga de volta o afeto, o carinho e o cuidado almejado pelo filho, exerce o seu caráter pedagógico, que tem por fim desestimular, inibir, o genitor de uma nova prática.

 

3. A SUPRESSÃO DO SOBRENOME À LUZ DA LEGISLAÇÃO CIVIL E DA JURISPRUDÊNCIA: CRITÉRIOS AUTORIZADORES

Como já mencionado em títulos anteriores, o nome civil, compreendido pelo prenome e sobrenome, é intransmissível e irrenunciável e compõe o rol de direitos dapersonalidade, nos termos da legislação civil (BRASIL, 2002).

Por ser responsável por identificar e individualizar o ser humano, tem proteção especial assegurada pela Constituição da República Federativa do Brasil, pelo Código Civil, bem como pela Lei de Registros Públicos – Lei 6.015/1973- em diversos dos seus dispositivos.

O sobrenome, também denominado nome de família ou patronímico, tem por finalidade expressar a origem familiar do indivíduo.

Por deter toda essa importância para o indivíduo e para a sociedade, em regra, o nome civil é imutável, todavia, diversas situações jurídicas constituem exceção e possibilitam que se postulea sua alteração. Essas exceções à imutabilidade do nome estão expressas na Lei 6.015/1973, mas em sua maioria são resultado de uma flexibilização no posicionamento dos tribunais superiores, notada em diversos dos seus julgados.

O melhor exemplo dessa flexibilização do entendimento jurisprudencial acerca do caráter imutável do nome é a possibilidade de alteração do prenome e gênero[4] no registro civil das pessoas transexuais independente de cirurgia de redesignação sexual. Trata-se de posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.275 e demonstra uma atenção à realidade social do indivíduo, sem limitação à literalidade e abstrativismo legal.

No que tange o entendimento da legislação civil, ela por si só é resistente quanto à possibilidade de supressão de sobrenomes no registro civil. É o que se infere da leitura do art. 56 da Lei de Registros Públicos:

Art. 56 O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa.  (Grifo dos autores). (BRASIL, 1973, s/p).

Tal impossibilidade pode ser atribuída a gama de princípios que protegem o nome, destacando-se entre eles o da imutabilidade.

Desse ponto, resta patente a impossibilidade de supressão pautada apenas na legislação, todavia, não se pode afastar a possibilidade de discussão da questão na esfera judicial, eis que já existem precedentes que embasam a pretensão de supressão de sobrenome, sobretudo quando motivada pelo abandono afetivo.

Schreiber (2014, p.192) entende que a vedação trazida no art. 56 da Lei de Registros Públicos não deve ser tida de maneira absoluta, e ainda defende que o rol de possibilidades de alteração trazido pela legislação deve ser exemplificativo, devendo também abranger o sobrenome.

Nesse contexto, tanto quanto o prenome, o sobrenome deve ser tido como modificável sempre que puder impor risco ao pleno desenvolvimento da personalidade, seja por expor seu titular ao ridículo, seja por razões atinentes à realização familiar ou à segurança do indivíduo, como no caso de testemunha que altera seu nome para escapar a ameaça ou coação criminosa. Tais hipóteses, já insculpidas na Lei de Registros Públicos (arts. 57 e 58), devem ser vistas como meramente exemplificativas das situações em que o nome serve de embaraço ao pleno desenvolvimento da personalidade, não podendo o Poder Judiciário deixar de considerar outras situações manifestadas em concreto. (SCHREIBER, 2014, p. 192)

Apesar de ter sido julgada pelos tribunais superiores do país, tal matéria ainda não possui entendimento pacificado, havendo julgamentos favoráveis e desfavoráveis a pretensão do filho. É o que se extrai dos julgados infratranscritos:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.304.718 - SP (2011/0304875-5) RELATOR: MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO. RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. REGISTRO CIVIL. NOME. ALTERAÇÃO. SUPRESSÃO DO PATRONÍMICO PATERNO. ABANDONO PELO PAI NA INFÂNCIA. JUSTO MOTIVO. RETIFICAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO. INTERPRETAÇÃO DOS ARTIGOS 56 E 57 DA LEI N.º 6.015/73. PRECEDENTES. 1. O princípio da imutabilidade do nome não é absoluto no sistema jurídico brasileiro. 2. O nome civil, conforme as regras dos artigos 56 e 57 da Lei de Registros Públicos, pode ser alterado no primeiro ano após atingida a maioridade, desde que não prejudique os apelidos de família, ou, ultrapassado esse prazo, por justo motivo, mediante apreciação judicial e após ouvido o Ministério Público. 3. Caso concreto no qual se identifica justo motivo no pleito do recorrente de supressão do patronímico paterno do seu nome, pois, abandonado pelo pai desde tenra idade, foi criado exclusivamente pela mãe e pela avó materna. 4. Precedentes específicos do STJ, inclusive da Corte Especial. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. [...] (STJ,2015, s/p)

APELAÇÃO CÍVEL – ALTERAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – EXCLUSÃO DE PATRONÍMICO PATERNO – RELAVITIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE – IMPOSSIBILIDADE – AUSÊNCIA DE MOTIVO JUSTO – RECURSO DESPROVIDO. I – O nome do indivíduo é um atributo do direito da personalidade, utilizado como uma das formas de identificá-lo na sociedade, trazendo segurança às relações jurídicas. II – A escorreita identificação da pessoa pelo nome é uma das formas de se evitar a ocorrência de fraudes e de atos ilegais. III – A modificação dos registros apenas é admitida em caráter excepcional, verificada a existência de justo motivo. Portanto, não tendo sido apresentada razão relevante para a supressão do patronímico, prevalece a regra da imutabilidade relativa do nome.(Grifo da Autora). (TJ – MG – AC: 10396150008425001 MG, Relator: Wilson Benevides, Data de Julgamento: 27/09/2016, Câmaras Cíveis / 7ª Câmara Cível, Data de Publicação: 03/10/2016).

No caso do julgado desfavorável à pretensão de supressão do patronímico, identificou-se que o indeferimento foi motivado pela “ausência de justo motivo”. Desse modo, infere-se que um dos critérios primordiais ao deferimento da pretensão é a comprovação de que o abandono sofrido caracteriza motivo plausível para justificar a supressão de um sobrenome.

No caso supramencionado, assim como para alguns tribunais, o abandono afetivo não constitui motivo suficiente para pautar a supressão de um sobrenome no registro civil, e algumas vezes é encarado como mero inconformismo do filho em relação ao mau relacionamento com o pai.

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ORDINÁRIA – RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL – EXCLUSÃO DE PATRONÍMICO PATERNO – INCLUSÃO DE PATRONÍMICO DA AVÓ MATERNA – PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE – EXCEÇÕES LEGAIS – NÃO DEMONSTRADAS – RAZÕES DE FORO ÍNTIMO – RELACIONAMENTO CONTURBADO COM O GENITOR – NÃO CABIMENTO – RECURSO NÃO PROVIDO. 1 – Vigora no ordenamento jurídico o princípio da imutabilidade relativa do nome civil, devendo o requerente demonstrar a ocorrência das exceções legais ao referido princípio, de forma motivada e razoável, para que seja atendida sua pretensão de retificação de seu registro civil. 2 – Se os motivos apresentados na inicial e no recurso não constituem fundamento bastante para o deferimento do pedido de modificação do registro, denotando, apenas, o inconformismo subjetivo do autor, tratando-se de mera insatisfação pessoal em virtude de um histórico de relacionamento conturbado e sem afeto com seu genitor, não há que se falar em acolhimento da pretensão. 3 – Recurso não provido. (TJ-MG – AC: 10074140076527001 MG, Relator Hilda Teixeira da Costa, Data de Julgamento: 23/05/2017, Câmaras cíveis/2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 14/06/2017)

Tal situação demonstra a necessidade de que o abandono afetivo seja comprovado, não somente alegado pelo indivíduo. Nada mais óbvio, visto que a mudança pleiteada vai implicar em uma modificação na vida do indivíduo e nada mais justo que a comprovação de que a manutenção do sobrenome paterno vai ocasionar a manutenção desse sofrimento.

Outro critério primordial repousa na necessidade de que o Autor da pretensão tenha, ao menos, a capacidade de discernimento necessário para pleiteá-la.

É sabido que o Código de Processo Civil possibilita que o incapaz possa postular judicialmente quando devidamente representado por seu representante legal ou curador. Ocorre que, para a demonstração do dano afetivo sofrido, importante se faz que o filho, que no caso pode ser tratado como vítima, demonstre a ocorrência de tal dano. Para tanto, é importante que ele tenha o discernimento suficiente para entender o abandono sofrido e demonstrar os reflexos desse abandono em sua vida. Nesse sentido, vejamos o que entenderam os desembargadores da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina em julgamento recente da matéria:

Apelação cível. registro civil. ação de retificação de registro civil. PEDIDO DE SUPRESSÃO do patronímico paterno. DESCABIMENTO, NO CASO. direito personalíssimo ao nome.

1. Nos termos no art. 16 do Código Civil, o nome da pessoa, nele compreendido o prenome e o sobrenome, constitui direito personalíssimo, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Por tais razões, inobstante o disposto na Lei de Registros Públicos acerca da alteração do nome, no sentido de não se admitir a prejudicialidade aos apelidos de família, o Colendo Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido, em casos excepcionais, a possibilidade de alteração de nome, inclusive com supressão de apelidos de família, desde que haja motivação justa e plausível. Para tanto, conforme o art. 56 da LRP, o interessado poderá requerer a alteração de seu nome após atingir a maioridade.

2. No caso dos autos, entretanto, não há como se chancelar a pretendida supressão de patronímico paterno, haja vista que a requerente é menor impúbere, contando apenas 03 anos de idade, e certamente não possui discernimento e maturidade suficientes para compreender a extensão e a magnitude do ato de excluir o sobrenome que identifica um dos seus troncos familiares. Se for o caso, poderá ela, após o implemento da maioridade, pleitear motivadamente a alteração de seu nome. O que não se pode fazer é ceifar prematuramente o direito personalíssimo ao nome, de titularidade da infante.NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (TJ-RS – AC: AC 70077339869RS, Relator Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 19/07/2018, Câmaras cíveis/2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 23/07/2018)

Nesse exemplo a Requerente era menor impúbere, o que indica que não possuía condições de identificar e muito menos comprovar o abandono afetivo sofrido, bem como de compreender a “gravidade” de uma supressão em seu nome. Tal posicionamento é louvável, pois evita que nessa situação, a alienação parental prevaleça sobre os interesses do próprio indivíduo.Veja outro julgado acerca do tema:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. REGISTRO CIVIL. EXCLUSÃO DO PATRONÍMICO PATERNO FUNDAMENTADO NO ABANDONO PSICOLÓGICO E MATERIAL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DA CORTE. NECESSIDADE, TODAVIA, DE DILAÇÃO PROBATÓRIA A FIM DE COMPROVAR AS ALEGAÇÕES DA PARTE REQUERENTE. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. APELO PROVIDO.(Apelação Cível Nº 70040638918, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Roberto Carvalho Fraga, Julgado em 23/11/2011).

Do julgado supratranscrito o que se infere é que a dilação probatória, nesse tipo de ação, faz-se de extrema necessidade. Tal exigência, de caráter processual, demonstra-se primordial, visto que, pela especificidade e fragilidade da questão levada a discussão, a comprovação do abandono afetivo sofrido pode depender de muito mais que um laudo psicológico, mas, muitas vezes, do depoimento do próprio Requerente, única pessoa capaz de expressar toda angústia sofrida pelo abandono do genitor, ou de outras pessoas que possam ter acompanhado a sua realidade de ausências e sofrimento.

Para tanto, é importante salientar que, apesar de os procedimentos de retificação serem processados utilizando-se o procedimento de jurisdição voluntária, para o caso em que o Requerente invoca o abandono afetivo sofrido como justo motivo, necessária se faz garantir o contraditório e a ampla defesa do genitor. É o que se conclui da análise do julgado que segue, do Tribunal de Justiça da Bahia:

APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSO CIVIL. REGISTROS PÚBLICOS.JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. RETIFICAÇÃO DE REGISTROCIVIL. REQUERIMENTO DE RETIFICAÇÃO NOMINAL PARAEXCLUSÃO DE PATRONÍMICO. FUNDAMENTAÇÃO EMABANDONO AFETIVO. IMPOSSIBILIDADE DERECONHECIMENTO EM SEDE DE PROCEDIMENTO DERETIFICAÇÃO PELA VIA DA JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA,AINDA QUE APENAS PARA FINS DE ALTERAÇÃO NOMINAL. COGNIÇÃO E CONTRADITÓRIO LIMITADOS. LEGISLAÇÃO VIADE REGRA LIMITADORA DAS ALTERAÇÕES NOMINAIS COMPREJUÍZO DOS APELIDOS FAMILIARES NOS PROCEDIMENTOSQUE INSTITUI. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.1. A excepcionalidade da alteração nominal com esteio no art. 57 da Lei deRegistros Públicos deve ser observada, sobretudo quando se pretende asupressão de apelidos familiares, consistentes em indispensável elemento identificador e individualizador. Ademais, é imperioso que se considere,para fins de apuração da exceção motivadora a que se refere o art. 57 daLRP, as limitações inerentes à via estreita da jurisdição voluntária, que,embora permita a manifestação de interessados e a colheita de depoimentostestemunhais, na forma dos dispositivos transcritos acima, não garante aamplitude do contraditório que algumas circunstâncias requerem. É o casodo pleito retificador para supressão de patronímico com fundamentado noabandono afetivo.2. Não se nega que o abandono afetivo tem ganhado cada vez maisreconhecimento na doutrina e jurisprudência pátria, mormente – mas nãoapenas – para ensejar pleitos indenizatórios contra o causador da lesão deordem extrapatrimonial. Nesse sentido, uma vez reconhecido o referidoabandono pela via judicial contenciosa, com amplo contraditório, inclusiveobservadas as possíveis implicações das alterações das relações deparentesco daí decorrentes, óbice não haveria, a priori, para a retificaçãoregistral a fim de exclusão do sobrenome paterno, deveras admitida pelajurisprudência em casos excepcionais. Entretanto, a pretensão doreconhecimento do abandono afetivo no bojo do procedimento com esteionos artigos 57 e 109 da LRP, ainda que a única implicação buscada seja aalteração nominal com supressão do sobrenome paterno, encontra óbiceintransponível nas limitações procedimentais e de cognição da jurisdição voluntária. (Grifo dos autores). (Apelação n.º 0524530-71.2015.8.05.0001, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça daBA, Relatora: Desª. Pilar Celia Tobio de Claro, Julgado em 2016).

Resta demonstrado que a jurisprudência leva em conta critérios bem específicos para pautar o julgamento dos pedidos de supressão de sobrenome fundados no abandono afetivo do genitor. Isso se dá pelo cuidado do julgador em deferir apenas pretensões legítimas, fundadas em justo motivo, bem como para afastar aqueles que buscam a referida alteração visando fim diverso.

 

4. OS PROVÁVEIS IMPACTOS JURÍDICOS DA SUPRESSÃO DO SOBRENOME

O nome do indivíduo é a sua marca na sociedade, responsável por distingui-lo desde a infância. A mudança no nome do indivíduo quando motivada por uma das hipóteses trazidas na legislação civil pode significar uma modificação libertadora, capaz de eximir o Autor de ser identificado por um nome que não o representa ou lhe cause vergonha.

Para o filho abandonado afetivamente pelo genitor, tal mudança tem um peso diferente, pois o exime de carregar um sobrenome que não o representa e que constantemente o remete às suas angústias mais íntimas.

É nesse sentido que se posiciona Schreiber (2014, p. 192) ao apontar que o art. 56 da Lei de Registros Públicos não deve ser tomado de maneira absoluta. Para o autor, mesmo que o sobrenome tenha por intuito a conservação da família, deve prevalecer sobre ela a tutela da pessoa humana.

Claro que não se pode admitir que uma pessoa altere constantemente o seu nome, com o propósito de confundir a sociedade e escapar, por exemplo, à cobrança de dívidas ou ao dever de alimentos. Isso porque, diferentemente de outros direitos da personalidade, “o nome responde a um interesse que é, a um só tempo, público e individual”. A garantia social representada pelo nome não pode, toda- via, autorizar o fetichismo da imutabilidade ou impor uma presunção de má-fé sobre todo aquele que pretenda modificar o modo como é chamado. SCHREIBER (2014, p. 192)

Por outro lado, é necessário refletir sobre os possíveis impactos que tal mudança poderá ocasionar para o indivíduo que a pleiteia, bem como para terceiros e para a sociedade em si. Isso porque, a mudança de nome pode gerar alguns transtornos ao indivíduo.

Pontua-se que tal preocupação pode ser atribuída ao interesse social que recai sobre o nome. Em capítulos anteriores, foi pontuada a existência de dois aspectos acerca do nome, que são o público e o particular. Justamente pela existência desse caráter público, que reflete o interesse da sociedade, é que se atribui ao nome o caráter imutável.

O primeiro impacto – que na verdade só pode ser considerado impacto porque é revestido por um processo tido como burocrático – é a necessidade de o indivíduo que conseguir suprimir o seu sobrenome alterar o seu nome civil nos bancos de dados públicos, tais como o da Receita Federal do Brasil, Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) do Ministério da Previdência Social, Caixa Econômica Federal, Sistema do Ministério do Trabalho e Emprego, Sistema SUS etc.

Outro possível impacto que pode ser ocasionado em virtude da supressão do sobrenome, é o surgimento de homônimos. Isso poderá ocorrer quando o prenome do indivíduo associado ao sobrenome que será mantido ainda assim resultar em um nome comum.

Outra situação que poderá servir como alerta é em relação à possibilidade de que se utilize dessa modificação para fraudar credores ou outra atividade ilícita correlata. De pronto, se imagina que tal hipótese é improvável, visto que, em transações mais significativas utilizam-se outros dados como número do Registro Geral – RG e do Cadastro de Pessoa Física - CPF. Sucede que, de posse da certidão de nascimento/casamento retificada, o indivíduo poderá retirar novos documentos com informações diversas.

Feitas as ponderações supracitadas, exsurge uma preocupação em relação à insegurança jurídica que o deferimento da supressão de sobrenome fundada em abandono afetivo do genitor poderá ocasionar.

Interessante mencionar o posicionamento de Schreiberacerca dos riscos que surgem com as alterações de nome:

Claro que não se pode admitir que uma pessoa altere constantemente o seu nome, com o propósito de confundir a sociedade e escapar, por exemplo, à cobrança de dívidas ou ao dever de alimentos. Isso porque, diferentemente de outros direitos da personalidade, “o nome responde a um interesse que é, a um só tempo, público e individual”.12 A garantia social representada pelo nome não pode, toda- via, autorizar o fetichismo da imutabilidade ou impor uma presunção de má-fé sobre todo aquele que pretenda modificar o modo como é chamado. (SCHREIBER, 2014, p. 192)

Nesse sentido, deve-se mencionar que reflexão similar fora feita à época da decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a alteração de nome e sexo dos transexuais nos registros civis sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual, bem como, que a alteração pudesse ser feita de maneira administrativa, bastando que o interessado procurasse o cartório onde foi registrado e apresente a documentação especificada.

À época da decisão supracitada, vários doutrinadores apresentaram pontos de vista distintos, principalmente no que tange o risco de utilização de tal possibilidade para induzir terceiros de boa-fé a erro. Todavia, conforme aponta Tartuce (2004), no contexto, o transexual deve estar movido pela boa-fé, sob pena de sua conduta se enquadrar ao conceito de abuso de direito, do art. 187 do Código Civil de 2002.

Nesse mesmo contexto, defendeu Gurgel (2009) que não se deve inviabilizar a alteração do registro de nascimento dos transexuais em função da proteção do terceiro de boa-fé, diante da presunção de má-fé deles, em virtude do princípio da eticidade, que funciona como diretriz teórica do Código Civil, preconizando a boa-fé objetiva, que se supera a qualquer contrato e determina a ética, honestidade, transparência nas relações.

Apesar da fundamentação embasada no caso dos transexuais, em ambos os casos trata-se de modificações no nome, independentemente do motivo, sendo possível, desse modo, presumir-se que os impactos serão similares.

Nesse ponto, o que se espera é que sejam adotadas as medidas necessárias a fim de evitar prejuízo suposto a terceiros, bem como, que a alteração no patronímico não seja utilizada para qualquer finalidade ilícita. No entanto, tal argumento não deverá ser utilizado como fundamento para que haja o indeferimento da pretensão, eis que o princípio da boa-fé deve prevalecer.

Importante pontuar que a supressão de patronímico não gera a exclusão da filiação, e, consequentemente, não retira do indivíduo qualquer direito, muito menos do genitor que o abandonou afetivamente qualquer responsabilidade. Apesar de o indivíduo retirar do seu assento de nascimento, bem como de demais documentos o sobrenome que o liga ao genitor, a filiação continua a mesma. 

Vale ressaltar também que a supressão do sobrenome não desconstitui o vínculo biológico e familiar, mas apenas exonera o indivíduo de carregar em seu nome um registro que não corresponde à sua realidade familiar.

 

CONCLUSÃO

O dever de assistência dos pais para com os filhos menores na infância é reconhecido por uma gama de dispositivos legais, destacando-se entre eles a Constituição da República Federativa do Brasil e o Estatuto da Criança e do Adolescente. O genitor que não garantiu ao filho na infância o cuidado e afeto necessários poderá ser demandado em uma ação de reparação civil por danos morais em virtude do abandono afetivo praticado.

O abandono afetivo tem no afeto o seu elemento central, elemento este que por muito tempo foi confundido com o amor, dificultando assim o reconhecimento do abandono afetivo como causador de dano moral.

Após vastas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, foi possível diferenciar o afeto, extraído dos dispositivos legais, do dever de amar. Superadas tais discussões, concluiu-se que o afeto, para as relações familiares, se resume no dever de assistência e cuidado, e que é o dever natural oriundo do vínculo paterno ou materno.

Por meio desse trabalho foi possível discutir os aspectos legais do direito ao nome, fazendo um estudo acerca de suas características e da evolução da sua natureza jurídica. Também, foi possível uma breve análise acerca do abandono afetivo, tendo por base o entendimento da doutrina acerca desse instituto que, apesar de recorrente, até então divide opiniões.

A análise da jurisprudência acerca do tema possibilitou a noção de que a questão não foi pacificada nos tribunais, apesar de existirem posicionamentos significativos oriundos do Superior Tribunal de Justiça entendendo ser possível tal reparação quando devidamente demonstrado o abandono sofrido.

No que tange a possibilidade de supressão de sobrenome fundada em abandono afetivo, identificou-se que a legislação é inflexível quanto a essa possibilidade. O dispositivo que trata da alteração do nome nos registros civis apresenta como requisito principal a demonstração de um “justo motivo” para pautar a pretensão, todavia, apresenta a ressalva de que tal mudança não deve prejudicar os apelidos familiares, demonstrando assim a rigidez da legislação em relação ao tema.

Sucede que, pela gama de julgados trazidos, identificou-se que a jurisprudência dos tribunais superiores já se posicionou acerca do tema, ainda que de maneira não uniforme. Nos julgados em que a demanda foi indeferida, o julgador invocou o princípio da imutabilidade do nome para pautar a sua decisão e apontou a necessidade de utilização de “justo motivo” para que esse tipo de mudança seja autorizada.

Em sentido diverso entenderam outros julgadores apontando que o referido princípio não deve ser tido como absoluto, e que diante da comprovação do abandono afetivo sofrido pelo filho, não há porque permitir que ele carregue um sobrenome que reflita as suas angústias da infância e que não representa a sua realidade familiar.

Desse julgado e de outros em que foi deferida a pretensão do filho, foi possível identificar alguns dos critérios utilizados pela jurisprudência para pautar o deferimento da demanda. Em sua maioria, são critérios de caráter processual. Entre eles, destaca-se a exigência de que o interessado seja capaz civilmente e tenha o discernimento necessário para sustentar e comprovar a alegação do abandono sofrido. Tal critério, revela-se fundamental, pois tem o condão de evitar que o interessado, seja movido pela alienação parental do outro genitor.

Outro critério relevante, agora de cunho processual, é a necessidade de fase de dilação probatória, bem como que seja oportunizado o contraditório do genitor, o que demonstra a dificuldade de processamento na esfera de jurisdição voluntária. 

Por fim, foram elencados os principais impactos que a supressão do sobrenome poderá ocasionar ao indivíduo que a pleiteia bem como para terceiros, ressaltando sempre que a supressão de sobrenome não tem a capacidade de excluir a filiação, não eximindo o genitor de suas responsabilidades.

O que se conclui por todo o exposto é que, apesar de a Lei de Registros Públicos não tratar o abandono afetivo como circunstância autorizadora para a supressão do sobrenome, além de utilizar do princípio da imutabilidade como princípio basilar para pautar o indeferimento dessas demandas, a jurisprudência já se posicionou de maneira diversa reconhecendo, em diversos casos, a possibilidade de supressão do sobrenome fundado no abandono afetivo sofrido.

Para tanto, faz-se primordial a comprovação da ocorrência desse abandono, bem como que os demais critérios expostos nessetrabalho foram atendidos.

A tarefa se torna dificultosa por ainda não haver um entendimento pacificado nos tribunais, bem como, por não haver na doutrina uma uniformização acerca dessa possibilidade, todavia, resta a esperança de que a demanda chegue à Suprema Corte para que ao final se pacifique um entendimento condizente com a realidade trazida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

[3]Alguns autores apontam que o termo correto a ser utilizado é Abandono Moral. É o caso das Autoras Maria Celina Bodin de Morais e Ana Carolina Brochado Teixeira.

[4]O termo gênero, utilizado na decisão do STF, fora empregado de forma equivocada, visto que, conforme preceitua o Art. 54 da Lei 6.015/73, o assento de nascimento deve conter o sexo do registrando, não o gênero.

Data da conclusão/última revisão: 22/4/2019

 

Como citar o texto:

CARVALHO, Ângela Menezes; MARQUES, Vinícius Pinheiro..O abandono afetivo como fundamento para a supressão do sobrenome. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1617. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-civil-familia-e-sucessoes/4389/o-abandono-afetivo-como-fundamento-supressao-sobrenome. Acesso em 1 mai. 2019.

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