O processo estrutural apesar de não possuir previsão específica em matéria de direito público brasileiro, nosso ordenamento possui a capacidade para albergar decisões dessa natureza, mesmo que isto implique em se fazer nova leitura em institutos de processo civil, mediante interpretação sistemática das normas processuais, com foco nos princípios do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição. No intuito de apresentar conceitos e características, este artigo se utiliza de duas ações diretas de inconstitucionalidade para trazer luz a um possível conceito que possa delimitar se a ação discutida deveria ser tratada como um processo estrutural

Introdução

O tema políticas públicas sempre gera uma infinidade de temas para debates e ninguém ousaria questionar que o financiamento, fontes de custeio e a própria tributação não perpassam por todos esses temas. Ao mesmo tempo em que se fala em redução da carga tributária, estar-se falando em redução da capacidade de Estado administrativo (incluindo todo o aparato normativo e institucional do estado para a promoção dos seus deveres) se prestar com seus deveres hoje sedimentados na Constituição Federal.

Na tentativa de se apresentar fórmulas de extração fiscal em vários nichos do conhecimento, que transitam do meio ambiente à educação, da segurança pública ao regime previdenciário, de práticas diplomáticas à política internacional, de relações consumeristas a temas de pacto federativo, nos deparamos além de outros temas com a questão dos royalties e a participação especial para manutenção do equilíbrio de contas públicas dos Estados que sofrerão com a tentativa de mudança do regime a muito discutido através das ADI 4916 e 4917.

Porém, com a judicialização do tema, começa a adentrar em outro campo tormentoso que seria o do reconhecimento da capacidade ou legitimidade para a corte decidir sobre temas complexos do direito administrativo e político. Qualquer corrente que se adote (contrarias ou a favor da atuação da Corte), certo é que qualquer forma que se imagine para a teoria pura do processo, não se adequa perfeitamente. Por isso, que dentro do tema ainda surge a discussão sobre a forma processual de tratamento do tema. 

Com relação a este ponto específico, temos um campo estudado a décadas que ficou doutrinariamente conhecido como processo estrutural. Esse instrumento processual, de regras flexibilizadas para poder alcançar a plena realização do tema trazido ao Judiciário é de interesse deste trabalho. 

Partindo da consideração que através desse instrumento seria possível uma Corte decidir sobre temas complexos, envolvendo políticas públicas, principalmente no que tange a redistribuição das rendas de petróleo e gás, que são fonte de custeio para outras políticas (por exemplo relacionadas à educação), o que discutirá no texto é, se a partir dos elementos conceituais futuramente apresentados, seria possível afirmar que as ADIs 4916 e 4917, seriam processos estruturais.  

 

Os royalties e suas distribuições

O petróleo ainda representa um bem de grande importância para a econômica moderna, mesmo em tempos de flutuações altas, duras críticas ambientais quanto ao uso de combustíveis fosseis e o mercado cada vez mais se aquecendo em relação ao uso de energias renováveis. Diante dessa importância, claramente existe um esforço fiscal para suportar e fazer o um bom equilíbrio das receitas provenientes dos royalties.

Os royalties são títulos devidos pela exploração desse bem publico, eleito pelo art. 20, IX da CRFB/88. Apesar de usa exploração ser de monopólio federal pelas regras do art. 177 também da CF, poderão ser contratadas além de empresas estatais, privada para que essa exploração seja realizada.

Mas é possível considerar uma certa divergência quanto a natureza dos royalties diante da redação do art. 20. Como ressaltado por Oliveira (OLIVEIRA, 2011) não se tem uma definição se esses royalties se constituem de compensação financeira ou de participação nos resultados. A diferença entre essas considerações engloba até mesmo um outro assunto antigo: a guerra fiscal sobre o ICMS (que não é foco deste artigo).

A porcentagem sobre os valores do petróleo extraio bem sendo regulamento desde 1953, com a lei 20.0004/53. Nessa época dos lucros da extração no mar, 5% eram destinados a união, 5% aos estados que ainda deveriam repassar desse montante, 20% para seus municípios. Com a chegada d lei 7453/85, os estados e municípios passaram a ficar com somente 1% da extração marítima. Logo em 1989, com a chegada da lei 7990, a extração do mar, teve nova alteração do percentual, passando os municípios, com instalações de embarque e desembarque de gás natural e petróleo, a receber 0,5%.

As alterações mais drásticas e benéficas para os Estados e Municípios chegaram com a lei 9487/97 e a 12.734/2012. Na legislação de 1997, a aliquita dos royalties sobre a produção foi ampliada de 5 para 10% e ainda foi criada uma compensação extraordinária de até 40% da receita liquida dos campos de petróleo mais rentáveis. Em 2006, o total de rendas petrolíferas somou R$ 16,6 bilhões: R$ 6,65 bilhões de royalties em mar, R$ 1,10 bilhão em terra e R$ 8,85 bilhões de participação especial.

Até então, grande parte da receita dos royalties era destinada somente aos estados e municípios produtores, que acreditavam estarem recebendo uma compensação pelo risco da extração do petróleo e pelo não recebimento de parte do ICMS gerado por uma guerra fiscal entre todos os entes. Com a chegada da lei 12.734/12, a participação dos estados e municípios produtores foi reduzida em favor de uma maior distribuição e generalidade entres os entes federativos. Essas alterações dentro dos percentuais que promoveram os questionamentos jurídicos que findaram dando origem as ADIs, 4516 e 4517, foco do trabalho.

Dentre as alegações iniciais, afirma-se que a nova redação vai de encontro com a intenção original do legislador de oferecer a alguns entes tratamento legislativo paritário: os Estados e Municípios produtores, porque suportam os riscos e os ônus próprios dessa atividade econômica, merecem, certamente, tratamento diferenciado por parte do legislador, como mereceram do constituinte originário quando da concepção do texto do art. 20, §10 da CF.

Além do mais, a partir do momento em que gerou uma expectativa de ganho (e efetivo) para as unidades da federação, não poderia mais voltar atrás com modificações ulteriores. A base para isso na verdade se funda em uma expectativa de direito, considerada pela doutrina como expectativa legitima. Para que essa expectativa possa existir é preciso: a) uma relação entre os poderes e o particular ou membros administrativos; b) atos estatais que despertam a confiança; c) aparência de legitimidade do ato; d) nexo de causalidade entre o poder público e a confiança estimulada e ainda e) a ocorrência de prejuízo.

Esse princípio surge como mais uma transposição do direito privado para o público assim como tantas outras (HAURIOU, 1945). Abriu-se ainda o argumento que a modificação da lei teria efeito sobre contratos anteriores, contudo A Advocacia-Geral da União (AGU) defende, na Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que alteração nas regras de distribuição dos royalties de petróleo e gás natural promovida pela Lei nº 12.734/2012 não tem efeito retroativo.

Segundo defende Madureira, Souza e Altenerath (MADUREIRA, SOUZA e ALTENERATH, 2020), a mudança de regime promove impactos negativos na atividade econômica e de cada estado, no equilíbrio fiscal e na estimulação de investimentos. Mas, o aludido posicionamento, contudo, não se sustenta, por- quanto a natureza jurídica dos royalties do petróleo, na forma estabelecida pelo legislador ordinário brasileiro, é de participação no resultado da exploração, e não de compensação financeira, figuras jurídicas que não se confundem. A nova modificação se deu apenas no que tange a exploração em plataforma, mar territorial ou zona exclusiva, e nada relativo aos municípios confrontantes.

Destarte, é correto concluir que não se pode entender que os royalties constituam uma compensação pela perda de arrecadação do ICMS em virtude do artigo 155, § 2o, X, “b” da Constituição, de modo que as alterações promovidas pela Lei no 12.734/2012 não podem ser consideradas inconstitucionais sob esse fundamento. E por fim, com relação aos contratos, tendo em vista que o pagamento de royalties não se relaciona com o momento da assinatura do contrato de concessão, mas com a produção do óleo aferida mensalmente, a conclusão inevitável é de que essa remuneração aos cofres públicos rege-se pela lei vigente à época do seu fato gerador – a exploração petrolífera –, e não por aquela em vigor no período em que a concessão foi feita.

Para concluir um panorama geral sobre a complexidade do tema, em pesquisa levantada por Queiroz (QUEIROZ e POSTALI, 2010), em que pese o beneficio dos royalties e sua necessidade de destinação, seria possível afirmar que pouco eficiência se tem dado a essa destinação correta dos lucros e mesmo que se considere plenamente justo a concessão do beneficio nos moldes da Lei no 12.734/2012, o mesmo pode levar a ineficiências no sistema de recolhimento de outras fontes de arrecadação como por exemplo o IPTU.

Com tantas questões sendo envolvidas, é justo imaginar o porque até o momento de publicação do texto, não ter sido emitido juízo final sobre os pontos centrais das ADIs. Agora o que nos resta saber é se já que ainda não se findou o processo, se o modelo de ação do controle concentrado, para estes casos específicos, não poderia ser considerado como processo estrutural. Em caso positivo, seria valido a consideração de adequações para que a decisão possa alcançar um máximo de efetividade com um risco de modificação posterior da decisão menor.

 

Um conceito de lide estrutural

Abrindo-se o tópico de jurisdição constitucional e refinando para uma temática de políticas públicas, parte da doutrina, em que pese não tratar especificamente com uma nomenclatura, dá início ao estudo do conhecido processo estrutural. Esse instrumento complexo, de origem histórica norte americana, se tornou fonte de estudos procedimentais devido a sua destinação. A partir de então, juntamente com a aproximação dos sistemas de direito e o fato de uma exaltação ao Judiciário, tanto sua conceituação, quanto sua legitimidade e intencionalidade do dispositivo, apresentam uma grande relevância, principalmente para se discutir questões relacionadas a saúde pública.

Ao entender alguns desses tópicos seria possível responder em que medida, partindo da reforma do CPC, da legitimidade do supremo para analise de politicas e dos requisitos para a construção de politicas públicas, esclarecer se há uma vontade de recepção desse instituto no ordenamento processual constitucional e se o aparato normativo brasileiro teria as necessárias condições para se incorporar o instituto, mesmo que em fase previa (não totalmente desenvolvido, mas com um ponto de partida para total positivação).

Dentro de uma visão tradicional do direito, temos um caráter científico, emprego do formalismo, racionalidade e neutralidade. Sob estes preceitos é que foram construídos os instrumentos legais que delimitam o processo (seja ele civil, criminal, administrativo ou constitucional). Assim como se ministra nas lições básicas do curso de formação em direito, temos para a formação do processo alguns requisitos: endereçamento, qualificação das partes, fatos, objeto e pedido. Diante da existência de uma evidente confusão entre dois objetos – ativismo judicial e judicialização da política – é necessário perpassar esse caminho antes de se evoluir no iter processual para se entender o que se está se definindo como processo estrutural. 

A constituição, no centro do sistema, passou a ser uma alavanca para o incremento de uma juristocracia ou, pelo menos, de uma liberdade de atuação do juiz que se depara com diversos textos abertos à interpretação. Os instrumentos processuais também sofrem mutações, tendo nos princípios sua principal via de comunicação. Neste cenário, tivemos que lidar rapidamente com fenômenos como o ativismo judicial e a judicialização da política. 

Com essa aparente incongruência ignorada por uma questão de instabilidade de outros poderes, o recém instalado poder judiciário renovado, com as devidas proteções aos direitos metaindividuais, foi se tornando alvo do desejo imediato da população de ter seus direitos atendidos. Nesse cenário é que começa a surgir o processo estrutural: o desencanto pela política partidária majoritária, a crise de representatividade e de funcionalidade geral do parlamento afastou o desejo de manter no campo natural a discussão. 

Em um conceito clássico de entendimento de lide, temos o seguinte conceito básico: conflito de interesses – em geral bipolar (autor e réu) – qualificado por uma pretensão resistida e apresentada em juízo. Este modelo, em geral, possui efetividade em grande parte dos casos essencialmente individualistas e de interesse privado, que apresentam pouca complexidade ou repercussão social. Mas, para se pensar em lide estrutural, há uma certa incompatibilidade que precisa ser superada a partir desse pensamento “carneluttiano”.

No modelo clássico, que se funda as ações individuais, o conflito de interesses foi construído em cima de uma relação jurídica, onde cada um dos polos pretende manter sua posição favorável para a satisfação da necessidade, subordinando o interesse alheio ao próprio (RAIMUNDO, 1955) através do comando da norma jurídica. A partir de uma causa comum, o interesse é individual e particularizado (PUGA, 2013). Já no processo coletivo, o interesse passa a ser de uma comunidade, mas a configuração, ainda se mantem bi polarizada (a comunidade ou o representante de tal de um lado e de outro a autoridade infratora).

Ora, se o interesse maior da comunidade é a paz entre os homens, como condição de progresso e felicidade, necessário se torna que os homens adotem regras que comandem a sua conduta e ao Judiciário se apresenta com uma função estabilizadora, como já ressaltado anteriormente. Ao se deparar com situações em que os conflitos envolvem questões não tão simples, como quando envolvendo direitos complexos, como por exemplo os direitos humanos e direitos ambientais, em que se apresentam uma pluralidade de atores e interesses, onde as regras processuais habituais não se mostram efetivas, surge a necessidade de uma nova ferramenta, que não trate com a lide “simples”, abrigando o que se começa a entender como lide estrutural. 

Na lide construída na doutrina clássica, toda a relação é construída em cima da norma jurídica, afinal, sua função é de garantir a paz e o convívio social, mas por vezes, as pessoas ao se encontrarem em situação jurídica diversa da pretendida, seus interesses entram em conflito. Nesse conflito tratado pelo Judiciário; a norma em si, ocupa uma posição menos destacada, servindo de base de fundamentação do interesse pretendido pelas partes, dos pedidos de solução e de guia para atuação do próprio Judiciário.

A lide estrutural, também se baseia em uma norma jurídica – até mesmo porque esta foi o resultado formal da política pública – mas a maneira com que encaramos essa norma para a construção da lide recebe um destaque diferenciado. Dito isto, se faz necessário passar por algumas lições de construção de política pública para trazer à tona um conflito diverso do de interesses “carneluttiano”. A verdade é que para o direito, dentro do pensamento de Habermas, Bucci, Medina, alcançar sua máxima capacidade de efeito pacificador e regulador social, sua formação não pode decorrer de um ambiente onde os mecanismos de acesso ao debate, a deliberação, não foram maximizadas segundo as formas previamente estabelecidas na constituição. 

Nas lições de Capella (CAPELLA, 2018) é possível entender que a definição do problema central das políticas públicas, passou por um processo de valoração, representação e escolhas estratégicas sobre determinadas situações, através de um processo conflituoso de interesses que foram coletivizados. Em se tratando de uma democracia fora do modelo ideal, apesar de haver ganhadores e perdedores, o processo não mitigou as condições objetivas de acesso, permitindo que o espaço político seja preenchido constantemente – demonstrado inclusive no tópico anterior – por dissonâncias entre a vontade dos representantes e a vontade pública. O conflito da política se estabelece fundamentalmente na definição de problemas, alternativas e soluções.

Quando a escolha estratégica desses elementos não se deu de maneira adequada ou seu resultado interfere no alcance de interesses é que temos a causa fonte da lide estrutural, no plano material. Entende PUGA, que o litígio estrutural, tendo como objeto uma política pública que será modificada pois não está atendendo seu objetivo principal (a materialização de um direito previsto), este ganha certa autonomia em relação ao interesse da parte. Em um processo coletivo, o interesse da coletividade que está em foco, deseja modificar algo para que sua vontade seja atendida. Mas no litígio estrutural, o objeto processual principal (a política pública) tem um efeito mais geral e a possibilidade de modificação desse efeito geral que vai definir qual é o interesse dos outros polos. 

Sendo assim, a norma não mais embasa o conflito de interesses, formando os vínculos jurídicos em bipolaridades, mas o efeito (fático) que ela está promovendo se torna a causa de impedimento de alcance da condição social desejada. Isso afeta de maneira significativa o conceito da obra de carneluttiana, mas o resultado parece ser de uma grande simplicidade. Mas antes de chegar ao resultado primário de um conceito de lide estrutural, é preciso considerar algumas observações a respeito do que seria o objeto do processo.

Essa matéria não é alvo de unicidade dentro do direito. Mesmo Carnelutti não ficou a salvo de críticas advindas de Liebmann sobre as concepções do que seria possível considerar como objeto do processo. Mas o que será apresentado aqui deve ser entendido como um caminho lógico para a chegada ao resultado. A preocupação que advém do estudo do objeto do processo sempre foi de determinar como o direito substantivo de apresenta e se materializa no decorrer do processo.

Em grande parte, os estudiosos do tema dividem o objeto em duas dimensões, seja essa divisão em concepções materiais e processuais, como Guimarães Ribeiro (CALLEGARI, STRECK e ROCHA, 2014), ou em dimensões verticais e horizontais como apresentado por Henrique Moutta. Cada uma dessas especializações com relação ao objeto, evidentemente apresentam suas peculiaridades e distinções, mas há um certo traço em comum. Ambas percorrem um caminho lógico que o objeto do processo não avança de uma pretensão ou declaração de direitos.

Partindo então da consideração que o objeto do processo se funda em pretensão de direito, seria possível considerar com relação a essa questão, tanto os estudos clássicos, como os relativos a lide estrutural, mantem um ponto em comum: a necessidade da existência de um conflito para que se faça necessário a atuação do judiciário.

A partir da leitura de Moutta da obra de Carnelutti, lide é o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um e resistência de outro; levando em consideração as lições de Puga e da própria lógica do sistema representativo democrático, no processo estrutural temos uma inversão da ordem de importância podemos considerar que a pretensão agora passa a ser qualificada, ao invés de qualificadora. 

Em outras palavras, partindo da ideia que a política pública que tem como objetivo a realização de um direito pretendido e ainda, na consideração que todos no sistema representantes de poder de uma democracia visam o mesmo fim, não tem mais conflito com relação a pretensão, mas sim uma pretensão que se torna objeto. Assim, no litígio estrutural ganha a norma autonomia perante o as partes, não mais dependendo do tipo de relação individual ou coletiva construída entre elas. O que resta a partir de então é definir a qualificação dessa pretensão de direito.

Para se tornar uma lide, é preciso que exista um conflito ou uma pretensão resistida para que não se qualifique como jurisdição voluntária e o juízo assuma outra qualificação que não a de regulador do conflito (considerando que, dentro da jurisdição voluntária, o juízo assume papel de mero administrador).

Dito isto e já partindo para o conceito de lide estrutural em comparação ao conceito de lide (individual ou coletiva), quando se fala em conflito de interesse, está justamente na questão de dissonância de vontade política e social. Vimos anteriormente que durante todo o processo de RSB, houve constante dissonância entre o interesse da classe política, escolhida para representar o povo e os diversos representantes de classes. Sem contar com os conflitos entre o Legislativo e o Executivo. Sendo assim, o conflito deixa de se limitar a uma bipolaridade (o lado A e B, que podem ser individuais e/ou coletivos) e passa a se constituir em uma multipolaridade.

O que se quer deixar claro é que a partir do momento em que se abandona a ideia de conflito entre as partes por conta de uma pretensão, em se tratando de lide estrutural o conflito passou a ser no processo de valoração, representação e escolhas estratégicas tomadas na formação das políticas que resultaram na norma de direito. Não sendo esse foco nas questões de formalidade e de participação propriamente dita (que formariam parte das questões prejudiciais), o que passa a qualificar a pretensão de direito é o conflito na escolha estratégica de elementos, cujo resultado interfere no alcance e materialização do direito, causa fonte do litígio. 

Sendo assim, temos uma pretensão de direito qualificada por um conflito de alternativas e soluções. Reparando neste conceito primário, vemos que seu resultado é o inverso da obra de Carnelutti. Nesta, o conflito é qualificado por uma pretensão resistida. Por isso, a afirmação anterior que o resultado deste conceito é de certa forma simples, mas que elucida a inversão de atributos valorativos necessários para se entender o que se está julgando e como construir o processo a partir de então para formar o processo estrutural.

Com o conceito e as características doutrinárias fica mais fácil considerar positiva ou negativamente a possibilidade de haver abertura para uma implementação desse instituto com base no regimento legal existente e algumas implementações ou adaptações extras (GUEDES, PADUA e OLIVEIRA, 2018). Com relação as características doutrinárias ainda não é possível afirmar que haja uma aderência total a apenas um rol exaustivo. Talvez até pela dificuldade de conceituação do que seja a lide estrutural e o processo estrutural em si, outra razão para isso seja porque apesar da teoria do direito diferenciar os elementos, para o código de processo civil, lide, pedido, pretensão, mérito e objeto do processo são tratados como sinônimos.

 

As ADIs dos royalties e o processo estrutural

Daquelas que possuem um estudo dedicado para o processo estrutural, há dois que constroem uma lista de características – do processo que lida exatamente com a pretensão de materialização do direito (lide estrutural) – relativamente semelhante. Puga (PUGA, 2014) considera não somente como características, mas como elementos modulares para a existência do processo estrutural: a) presença de uma multipolaridade de atores; b) um coletivo que apesar de não participar diretamente do processo, sendo somente representado pelos seus pares, também é afetado pela não realização material do direito; c) uma causa fonte da violação de direito (que determina tanto a extensão do dano, quanto possivelmente a competência do juízo e um dos elementos da ação, mais especificamente as partes e sua legitimidade para propositura da peça inaugural do processo); d)uma organização ou entidade estatal que assume o papel as vezes de infratora, por outra de não realizadora do direito; e) a invocação de direito constitucionais ou relativos a norma reguladora da política pública; f) pressões para solvência do problema e; g) uma sentença que supõe um conjunto de ações conjugadas.

Em quase sintonia total, temos Vitorelli (VITORELLI, 2017) que considera as seguintes características essenciais do processo estrutural: a) demanda de alta complexidade; b) com a participação de múltiplos polos; c) que ocupam uma posição de aliança parcial ou oposição; d) onde a falta de implementação e) de normas e valores públicos relevantes; f) que requisitam uma sentença de implementação; g) de reforma de uma instituição pública. 

A luz dessas características, do conceito primário aqui estabelecido e das normas do NCPC podemos verificar a compatibilidade das ADIs 4516 e 4517 com as ações de lide estrutural. As decisões estruturais, oriundas da atividade jurisdicional ativa, aceitando a legitimação estatal para atuar em conflitos tipicamente do Estado moderno, nos leva a conclusão de que a legislação processual escrita assume papel secundário, incapaz de satisfazer a finalidade de justiça, mas não a legislação da política pública. No caso a lei 12.734/12, se torna o objeto principal do processo e a partir dele é que se considera as relações a serem formadas no processo.

Neste tipo de demanda ocorre uma suavização dos conceitos de polos do processo, tornando-os menos claros e mais complexo a identificação. O grupo de pessoas que será atingido pela decisão não está tão claramente definido, razão pela qual seria preciso um desenvolvimento do processo dialógico, para que esse grupo de beneficiários possa colaborar para além da formulação e investigação do conflito

Por evidência, os antigos polos processuais, totalmente opostos, agora deixam esse papel, até mesmo em valorização ao princípio da cooperação, para que se possa chegar a uma decisão viável de ser executada. Merece destaque a expressão “atividade satisfativa” significa que a atividade jurisdicional não se esgota com o reconhecimento do direito, mas estende-se até sua concretização. O próprio artigo 140 do CPC estabelece que o Juiz não se exime de decidir sob a alagação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico

Diante dessa compreensão, somado as características apresentadas, à primeira vista, as ADIs se encaixam como processos estruturais. Afinal, em decorrência do coletivo afetado, temos múltiplos polos atuando no processo, com uma demanda de alta complexidade em que as normas e valores públicos envolvidos exigem uma sentença de implementação. Contudo, nem tudo se encaixa.

Relembrando o conceito apresentado – pretensão de direito qualificada por um conflito de alternativas e soluções – vale iniciar a conclusão de que não encaixa como litígio estrutural pelas condições da ação, mas especificamente, o interesse. Com relação ao interesse, temos uma especial consideração a respeito do uso do termo pretensão de direito na fase conceitual. A teoria do direito estuda o interesse como a união da necessidade de postular em busca de uma utilidade. Considera-se que se um sujeito somente possui uma pretensão de direito, este ainda não possui para si, o direito concretizado de fato. 

Sendo assim, parte-se do pressuposto então que apesar de fundamentado em norma regulamentar (norma em sentido amplo) e até mesmo na própria constituição, por alguma razão externa (bem caracterizada pelo conflito na repartição dos lucros), temos uma necessidade de postular em juízo (já que o Estado tem o monopólio de poderes maiores para fazer valer o direito dos seus integrantes) – considerando ainda o fato de que foram esgotadas na área administrativa e por via política os meios para se obter, em tempo hábil, o direito em questão – em busca de uma sentença reformulativa.

Ocorre que todas as partes do processo, em certa medida não detém mais pretensão de direito, ao contrário, já possuem o direito efetivado (mesmo que fora dos moldes desejados); ainda mais, os polos assumes uma condição de oposição total, se aproximando mais do conceito de lide clássica.

No que tange a causa de pedir, podemos considerar as razões para se formular um pedido estão relacionadas com as seguintes características: valores públicos relevantes, valores constitucionais afetados pela falta de implementação, necessidade de reforma, pressão política para a solvência do problema. Mas, também tem que considerar que em um primeiro momento a causa de pedir não é examinada a fundo, sendo necessário, segundo estudos desenvolvidos até então, apenas indicações de violação do direito ou dos valores que deveriam ser preservados, sem muitos detalhamentos e explicações sobre o motivo e as razões para tal violação.

Por isso, seria possível considerar que, mesmo pela divergência do problema, não há falta e implementação da distribuição dos royalties, apenas divergência como se irá ser feita. Sendo assim, ainda que superficialmente, não temos uma causa de pedir compatível com o litígio estrutural.

Ainda restam algumas características doutrinárias que se relacionam com o último elemento: sentença que busca uma reforma na estrutura de uma ou de várias instituições. Quando passamos para a questão de efetivação da decisão ou fase de execução, percebe-se a relação entre o ativismo judicial, pois como resultado do processo temos a implementação de valores públicos relevantes (public law litigation). Isso implica em rompimento da estrutura tradicional direto-obrigação-violação-reparação.

Essas decisões vão além do respeito as relações simples de divisão de poderes. Exigem imposições, medidas gradativas e recomposição até, pois o que está em jogo vai além das partes, afetando os interesses de terceiros que são afetados pela decisão (ARENHART, 2017, p. 434). Isso requer uma constante fiscalização e ajuste por parte do judiciário, o que necessariamente também induz a um Maior diálogo entres as instituições e os envolvidos, cabendo a estes uma maior responsabilidade pela formação do provimento.

Diante do conceito de lide estrutural, não é fato desconhecido que a sistemática processual até então adotada não é suficiente para tutelar esse litígio, tampouco podemos chegar a conclusão pelas demais considerações aqui levantadas, ainda que de forma primária, que nem todas as ações de controle concentrado que versam sobre politicas públicas e que tenham a participação de diversos atores sociais, englobando também assuntos de relevância nacional não jurídicos, se encaixam nos moldes apresentados de lide estrutural, assim como as duas ações principais que tramitam no Supremo Tribunal Federal que foram citadas aqui.

 

Obras Citadas

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CALLEGARI, A. L.; STRECK, L. L.; ROCHA, L. S. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário n. 8, Programa de pós-graduação em Direito da Unisinos, mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

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Data da conclusão/última revisão: 12/11/2020

 

Como citar o texto:

PEREIRA NETO, Leão..Processo estrutural e a questão dos royalties do petróleo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 19, nº 1018. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/10874/processo-estrutural-questao-royalties-petroleo. Acesso em 15 fev. 2021.

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