A separação dos Poderes é, desde Aristóteles, um assunto que gera muitas discussões entre a sociedade. Tanto é assim que mesmo o mais leigo dos cidadãos comenta sobre a ingerência de um Poder sobre o outro ou acerca do comprometimento das decisões de um dos Poderes com o pensamento político defendido pelo outro.

No Brasil a situação não tem sido muito diferente. Podemos observar, nas últimas semanas, em razão da crise política, o reavivamento da discussão sobre a separação dos Poderes, já que muitos acusados de corrupção foram depor nas Comissões Paramentares de Inquérito – CPIs amparados por Hábeas Corpus – HC concedidos pelo Supremo Tribunal Federal – STF, protegendo-se, assim, pessoas ligadas ao Executivo.

Com base nestes acontecimentos muito se ouviu falar sobre o conluio e o comprometimento dos membros do STF com o Executivo, sendo afirmado, inclusive, que os HCs somente foram concedidos em razão de critérios políticos. Isso porque, como é sabido, os membros do STF são escolhidos pelo Chefe do Executivo, o Presidente da República.

Com base nestes fatos, o que se busca, com o presente artigo, é fazer uma reflexão sobre a existência ou não da violação do princípio da separação dos Poderes quando da escolha dos membros do Judiciário Superior pelo Executivo, já que as demais Cortes Superiores (inclusive os Tribunais de Justiça – TJs) também têm seus membros submetidos a este tipo de escolha.

Assim, primeiro será feita uma breve evolução histórica sobre o princípio para, aí sim, enfrentarmos a questão fática proposta.

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A primeira referência acerca da separação dos poderes surgiu em Aristóteles, em sua obra A Política[iii]. No entanto, somente a partir de 1.324, com a obra de Marsílio de Pádua, é que se começou a fazer a diferenciação entre as funções executiva e legislativa do Estado, surgindo com Maquiavel, em O Príncipe, a indicação das três funções estatais.

Entretanto, a análise detida desta divisão de atribuições existente dentro do Estado somente surge após o exame das idéias de Locke apresentadas na obra Segundo Tratado sobre o Governo. O filósofo apresentou quatro funções essenciais do Estado: legislativa (exercida pelo Parlamento), executiva, federativa e prerrogativa (as três últimas exercidas pelo Executivo)[iv].

Mas é com Montesquieu, na clássica obra O Espírito das Leis, que o entendimento da existência de três funções bastante definidas dentro do Estado passou a existir, chegando até os dias de hoje como uma verdade quase que absoluta, embora já sofrendo algumas restrições, sendo adotada pela maioria das Constituições Federais.

Inclusive, a teoria da separação dos poderes foi manifesta na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que, no artigo XVI expressamente afirmou que a sociedade que não determinou a separação dos poderes não tem Constituição[v].

Interessante perceber que não podemos falar na existência de mais de um poder, eis que o poder do Estado é uno e indivisível. O que há, efetivamente, é a existência de três funções, quais sejam, a legislativa, a executiva e a judicial, que são exercidas pelo Estado, cujas atribuições são (ou devem ser) inconfundíveis.

Sobre a competência de cada uma destas funções não é necessário tecer considerações, eis que o assunto é de domínio geral e de fácil percepção na estrutura do Estado Brasileiro.

De acordo com o entendimento do filósofo francês, as três funções estatais deveriam ser confiadas a pessoas distintas, já que “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes”[vi].

Conforme é possível perceber da análise das obras destes filósofos, a necessidade de que cada função seja exercida por uma pessoa ou por um grupo de pessoas, não devendo duas ou mais funções serem cumuladas num mesmo indivíduo, visa a garantia da liberdade individual do cidadão sujeito ao poder estatal.

No dizer de Dallari, “(…) quando se pretende desconcentrar o poder, atribuindo o seu exercício a vários órgãos, a preocupação maior é a defesa da liberdade dos indivíduos, pois, quanto maior for a concentração do poder, maior será o risco de um governo ditatorial”[vii].

Também defendendo a necessidade de não cumulação das funções em uma mesma pessoa ou órgão encontra-se Madison que, em um dos artigos de O Federalista, afirmou que “a cumulação de todos os poderes, legislativos, executivos e judiciais, nas mesmas mãos, sejam estas de um, de poucos ou de muitos, hereditárias, autonomeadas ou eletivas, pode-se dizer com exatidão que constitui a própria definição de tirania”[viii].

É também em razão desta necessidade da não cumulação das funções que surge, na doutrina americana, o sistema dos freios e contrapesos, sempre ligado à idéia de divisão das funções estatais. Tal sistema determina que um poder[ix] sofrerá o controle dos outros dois, a fim de que sejam evitados abusos, garantido, assim, a liberdade individual e afastando a possibilidade de ditadura/tirania[x].

No entanto, com o passar do tempo verificou-se ser impossível e pouco eficiente que uma função fosse exercida exclusivamente por uma pessoa ou órgão do Estado. Em razão disto, as Constituições abriram espaço à transferência constitucional de poderes, mediante a qual as pessoas ou órgãos que exercem funções no Estado exercem, de forma complementar, subsidiária, as outras duas funções[xi].

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Visto o funcionamento da doutrina da separação dos poderes do Estado, parte-se para uma análise do fato de serem os membros dos órgãos judiciais superiores escolhidos pelo Executivo.

Primeiramente, é importante explicitar que a definição dos membros do Judiciário Superior é feita pelo chefe do Executivo que, após receber uma lista com três nomes apresentada pelo pleno do Tribunal, escolhe o nome daquele que preencherá a vaga aberta deste órgão[xii].

A questão que se coloca é se esta escolha realmente representa o controle de um Poder sobre o outro ou se ela seria uma forma mascarada de ingerência sobre o Judiciário (relembre-se que o princípio da separação dos poderes foi consagrado para evitar abusos e garantir as liberdades individuais).

Acreditamos que, efetivamente, se trata de ingerência de um Poder sobre o outro. Senão, vejamos.

O controle é conduzido por um Poder a fim de forçar o outro se conduzir de forma a observar os princípios do Estado elencados na Constituição e assegurar aos indivíduos as garantias e prerrogativas determinadas pela Carta Magna.

Como exemplos de controle encontramos, na própria Constituição Federal, o controle exercido pelo Legislativo sobre os outros dois Poderes através do Tribunal de Contas, ou aquele exercido pelo Judiciário sobre o Legislativo através do julgamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade.

Entretanto, quando analisamos a relação existente entre o Executivo e o Judiciário Superior, vemos claramente a vinculação entre ambos, sendo que o Judiciário, em vários casos que envolvem interesses políticos, tende a posicionar-se de forma a proteger aqueles ligados a tais interesses.

Esta vinculação acaba por configurar verdadeira ingerência entre os Poderes, o que é vedado nas Constituições. De não esquecermos a posição defendida por Madison, em O Federalista, que dizia ser inviável à democracia a união de funções em uma mesma pessoa ou órgão, tanto que a Constituição dos Estados Unidos não admite sequer interferências entre os Poderes.

Salientamos, no entanto, que não acreditamos que todas as decisões tomadas sejam vinculadas. Tanto é assim que nem sempre o interesse político é protegido nas instâncias superiores.

Mas, mesmo tendo esta realidade em vista, não é possível olvidar-se que várias decisões deixam de obedecer as diretrizes determinadas pela lei, importando menos no julgamento dos ministros a realidade do povo do que a satisfação de interesses daqueles que detém o poder.

Com efeito, podemos ver que nas Cortes Superiores, em especial no STF, as decisões tomadas privilegiam certos grupos sociais, e não o povo, que deveria ser o destinatário precípuo das normas concretas lançadas pelo Judiciário.

Como exemplo podemos citar o clássico caso da ADIN n° 04, julgada pelo STF, que decidiu ser livre a incidência de juros nos contratos de mútuo, não sendo auto-aplicável o art. 192, §3° da CF. Certamente não pensaram os Ministros nas conseqüências práticas para a população da decisão tomada.

Este caso, mais do que qualquer outro, evidencia o comprometimento das Cortes Superiores com aqueles que detém o poder.

Outrossim, tem-se o ocorrido mais recentemente nas CPIs, como já citado, ocasião em que vários acusados de participar de esquemas corruptos com a cúpula do Governo Federal foram beneficiados por HCs.

Há tanta preocupação com esta realidade que existe um Projeto de Emenda Constitucional – PEC n° 068/05[xiii], de autoria do senador Jefferson Peres, para ser alterada a forma de composição do STF. Como justificativa ao projeto foi afirmado que

Efetivamente, não nos parece exagerado dizer que a atual sistemática de composição da nossa mais alta Corte de Justiça, formada por membros escolhidos, todos, pelo Presidente da República sem critérios outros que a convivência política dessa autoridade não contribui para o equilíbrio e a serenidade do órgão máximo do Poder Judiciário.

Ao contrário, temos assistido a politização exagerada do Supremo Tribunal Federal com o risco que isso traz para estabilidade das instituições democráticas, para o equilíbrio dos Poderes e para a própria legitimidade daquela Corte[xiv].

Sendo como é a escolha dos judicantes, e com o histórico de decisões pró minorias fortes, estas decisões concessórias do writ são vistas pelo povo como “venda” de decisões, o que gera um descrédito incomensurável do Poder Judiciário e das decisões dele emanadas.

Esta situação vivida pelas Cortes Superiores acaba por trazer graves prejuízos a todo o Poder Judiciário, inclusive no que atine aos Juízes de primeiro grau que, ao contrário dos demais, são submetidos a provas para que ingressem em sua função, o que os torna desvinculados dos interesses acima referidos[xv].

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Com base nisto, talvez a solução para minimizar esta realidade seja que os membros do Judiciário Superior sejam submetidos a uma espécie de prova, como os juízes de primeiro grau, ao menos para torna-los menos vulneráveis às ingerências externas, pois terão certeza que sua presença nas Cortes Superiores será devida à sua capacidade, e não decorrentes de interferências políticas, o que lhes deixará mais livres para decidirem de acordo com a lei, minimizando os efeitos das influências externas.

Um passo para a transformação já foi tomado, através do PEC n° 068/05. Que este projeto seja aprovado e que o exemplo seja seguido pelas demais Cortes Superiores.

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BRASIL. Projeto de Emenda à Constituição n° 068/05. Disponível: . Acesso em: 14 jun. 2006.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.367-1/DF. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/34172,1>. Acesso em: 14 jun. 2006.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2001.

Notas:

 

 

[iii] Esta evolução histórica pode ser encontrada em DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 216/220.

[iv] Sobre o pensamento de Locke e de Montesquieu, interessante a síntese apresentada pelo Ministro Eros Grau in BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.367-1/DF. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/text/34172,1>. Acesso em: 14 jun. 06.

[v] DALLARI, op. cit., p. 219.

[vi] Montesquieu. O espírito das Leis, apud DALLARI, op. cit. p. 218.

[vii] DALLARI, op. cit., p. 216.

[viii] HAMILTON, JAY e MADISON. O Federalista, apud DALLARI, op. cit. p. 219.

[ix] Os termos poder e função serão usados indistintamente neste trabalho, eis que poder é a expressão popular utilizada para a definição das funções existentes dentro do Estado. Entretanto, não se olvide que o poder, como já explicitado neste trabalho, é uno e indivisível.

[x] No caso do Brasil, podemos visualizar o controle do Poder Legislativo através do veto (controle exercido pelo Executivo) e da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn (controle pelo Judiciário); do Executivo mediante o Tribunal de Contas (Legislativo) e a ausência de coisa julgada administrativa (que possibilita o controle dos atos administrativos pelo Judiciário); e do Judiciário, através da escolha dos membros dos Tribunais Superiores em crivo conjunto dos outros dois Poderes.

[xi] Como exemplo podemos citar os julgamentos realizados pelo Legislativo, os regulamentos (leis) de organização interna do Judiciário e as medidas provisórias editadas pelo Executivo.

[xii] De não se olvidar que a vaga somente será preenchida após a aprovação do nome pelo Legislativo, através da chamada sabatina.

[xiii] Este PEC está atualmente na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

[xiv] BRASIL. Projeto de Emenda à Constituição n° 068/05. Disponível: < http://www.ajuris.org.br/texto/PEC68-05.doc>. Acesso em: 14 jun. 2006.

[xv] Não se ignora que também entre os juízes de primeiro grau não haja casos de vinculações a interesses. No entanto, além de ser em menor número, tal fato ocasiona menos repercussões do que a situação das cortes Superiores, já que estas estão em maior evidência e suas decisões tem maior caráter vinculativo do que aquelas tomadas pelos juízes singulares.

(Texto elaborado em julho de 2006)

 

Como citar o texto:

SANTOS, Marília Andrade dos..Da escolha dos membros do Judiciário Superior pelo Executivo: controle ou ingerência?. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 208. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/1641/da-escolha-membros-judiciario-superior-pelo-executivo-controle-ou-ingerencia. Acesso em 11 dez. 2006.

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