Em tempos anteriores à Guerra Civil, o regime escravocrata era legal, porém não formalmente expresso pela Constituição, por isso observou Abrahan Lincoln: “a palavra escravidão ocultou-se na Constituição, exatamente como um homem angustiado oculta um tumor ou um câncer, que ele não ousa extirpar de imediato, com receio de sangrar até a morte”.

 

Os escravos eram considerados sub-raça, eram tratados como mercadorias, bens imóveis ligados à terra. No entanto, na esfera criminal, recebiam tratamento mais rigoroso do que aquele concedido aos indivíduos brancos.

Com o transcorrer da história, houve contínuos progressos na quantidade de escravos libertos e, sendo assim, as leis escravistas foram extirpadas e cederam lugar a leis de discriminação racial, em que pese, neste interstício, os negros não pudessem obter instrução intelectual, casar-se com brancos, entre outros impedimentos.

Nesta fase, há que se dizer que “os negros tinham muitos direitos legais, mas nenhum constitucional”.

Como expresso anteriormente, nos Estados Unidos da América, o princípio da igualdade é adotado com a aprovação da XIV Emenda Constitucional, em 1868, que ainda encampava a proibição da discriminação racial e considerou cidadãos americanos todos aqueles nascidos nos EUA, período histórico que reflete o final da Guerra de Secessão após a escravidão ter sido abolida com a Décima Terceira Emenda, de 1865.

No interstício compreendido entre 1896 e 1954, há a denominada doutrina dos separados mas iguais (separate but equal), que embora a discriminação estivesse proibida constitucionalmente, várias leis estaduais, procuraram preservar ao máximo o status quo existente antes da abolição da escravatura. Havia leis que exigiam mesas de refeição iguais, porém separadas para brancos e negros mesmo nas penitenciárias, outras que exigiam acomodações ferroviárias iguais, porém separadas entre as classes raciais.

Com a crise norte-americana ocorrida em 1929, confirmou-se a falência das doutrinas liberais clássicas que abstinha o Estado de intervenção nas relações civis e, para que houvesse a viabilidade de se reerguer a economia do país, fez-se necessária a intervenção do Estado na sociedade civil e, assim foi editado o Plano New Deal. Logo se constituiu o Common Law , visando a reorganização social e finalmente “dentre as experiências mais ricas e peculiares observadas nesse campo, destaca-se a ação afirmativa, que tendo surgido por iniciativa do Poder Executivo norte-americano, foi objeto de sucessivas manifestações do Poder Judiciário até ganhar espaço no cenário mundial.” Com isso, houve a necessidade da população bem como da Suprema Corte dos Estados Unidos dedicar-se ao aprendizado de novos conceitos e práticas.

Urge ressaltar que, durante a Segunda Grande Guerra, o Presidente Franklin Delano Rossevelt, baixou a “Executive Order, n. 8.806, em 25 de junho de 1941, impedindo a discriminação racial na contratação de funcionários pelo governo federal e pelas empresas bélicas que mantivessem contratos governamentais”.

Analisando a história, esta foi a primeira vez que o governo federal norte-americano praticou uma ação visando à isonomia nas condições de trabalho entre os indivíduos, afinal os postos estavam vagos diante do fato dos antigos funcionários, cidadãos americanos, terem se deslocado para a guerra, e as classes discriminadas da população, os negros e as mulheres, foram a saída para que o trabalho tivesse continuidade.

Em 1944, foi julgado pela Suprema Corte o caso Korematsu v. United States, que versava sobre a condenação de um descendente de japonês que havia violado uma ordem militar, que limitava a liberdade de locomoção da raça em regiões da costa do pacífico.

A importância desse processo para o direito constitucional norte-americano é significativa, pois ele fixou três pontos importantes que passaram a ser observados pelo Poder Judiciário nos exames de leis que prevêem classificações baseadas na raça ou na origem étnica dos indivíduos. Primeiro, essas classificações são tidas como suspeitas, ou seja em princípio, elas provavelmente não apresentam uma finalidade legítima e plausível. Segundo, e por decorrência da primeira colocação, elas devem ser analisadas, no plano judicial, com maior rigor. Terceiro, essas classificações serão inválidas se importarem em antagonismo racial, sendo admitidas somente se justificadas por uma necessidade pública.

Em 1952 iniciaram as discussões do caso Brown v. Board of Education of Topeka, que tinha por objeto extirpar a segregação racial nas instituições de ensino superior.

O Ministro republicano Earl Warren, em 1953, entendeu que a doutrina dos separados mas iguais denotava no reconhecimento da inferioridade da raça negra, asseverando que:

Não vejo como, no dia e na época de hoje, podemos separar um grupo do restante e dizer que eles não têm direito ao mesmo tratamento de todos os outros. Fazer isso seria contrário às Décima Terceira, Décima Quarta e Décima Quinta Emendas. Elas visavam tornar os escravos iguais a todos os outros. Pessoalmente, não consigo ver de que forma podemos hoje justificar a segregação unicamente com base na raça.

Em 1954, houve a revisão da doutrina dos separados mas iguais, e a Suprema Corte proferiu uma histórica decisão, concluindo: “unanimemente, que no campo da educação pública a doutrina de separados mas iguais não tem lugar. Instalações educacionais separadas são intrinsecamente desiguais”.

Destarte, outras áreas, além da educacional, também tiveram afastada a doutrina de separados mas iguais.

Embora esta doutrina tivesse sido afastada pela Suprema Corte, não acontecia automaticamente pelos Estados, que ainda estavam arraigados nas normas que impunham a segregação, e só o fazia mediante medidas judiciais. Com a posse do Presidente John F. Kennedy, em janeiro de 1961, é que se iniciam medidas eficazes por parte do poder Público.

Ainda existiam imensos preconceitos, desencadeando forte tensão social. Diante deste panorama, já em março, o presidente Kennedy expediu a Executive Order nº 10.925, onde foi empregado pela primeira vez, de maneira oficial, o termo ação afirmativa, em inglês, affirmative action.

Esta norma encampava cunho trabalhista, obrigando os empregadores a tratar isonomicamente todos os seus empregados, e os proibia de impor restrições de caráter racial para a sua contratação.

De acordo com essa Executive Order, nos contratos celebrados com o governo federal, ‘o contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego devido à raça, credo, cor ou nacionalidade. O contratante adotará a ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, seu credo, sua cor, ou nacionalidade. Essa ação incluirá, sem limitação, o seguinte: emprego; promoção; rebaixamento ou transferência; recrutamento ou anúncio de recrutamento; dispensa ou término; índice de pagamento ou outras formas de remuneração; e seleção para treinamento, inclusive aprendizado.’(MENEZES, 2001, p.88)

Em 1965, é elaborada a norma nº 11.246, que não só combate à discriminação, mas estabelece também uma política governamental em favor das minorias étnicas e raciais. Com isso, há a sedimentação do conceito da ação afirmativa.

O primeiro caso dessa natureza com análise de mérito foi o Regents of the Universtity Califórnia v. Bakke.

O caso se deu diante da reserva de vagas para admissão na Faculdade de Medicina, onde havia um programa de ação afirmativa que destinava dezesseis por cento das vagas a estudantes em condições de precariedade econômica ou educacional ou aos classificados como minoria, ou seja, indivíduos negros, índios ou norte-americanos descendentes de mexicanos ou asiáticos, ao passo que nos oitenta e quatro por cento restante das vagas todos concorreriam independente do fato de ser classificado com minoria.

Na concepção de Joaquim B. Barbosa Gomes:

O programa, contudo, tinha uma falha séria em sua concepção, e isto era visível ao primeiro contato: para as dezesseis vagas reservadas só podiam concorrer as minorias, mas o inverso não era verdadeiro, ou seja, as minorias também poderiam concorrer a uma das 84 vagas restantes! (GOMES, 2001, p. 105)

Diante disso, Alan Bakke, candidato branco, moveu ação contra a Universidade, alegando lesão da Décima Quarta Emenda, que lhe garantia a proteção do direito de igualdade. Atingiu pontuação significativamente maior que os indivíduos considerados especiais, mas não foi aprovado.

Na primeira instância, embora tenha sido entendido que a Universidade violava a emenda supracitada, por não haver apresentado provas que seria aceito caso a reserva de vagas inexistisse o pedido de Bakke para sua inserção na Faculdade fora caracterizado improcedente.

Já em segunda instância, a inconstitucionalidade da norma foi mantida, porém foi determinado que Allan Bakke fosse admitido na Universidade da Califórnia.

Não satisfeita, a Instituição recorre à Suprema Corte norte-americana, que na época era composta por quatro Ministros liberais, três conservadores, e por mais dois ministros flutuantes que ora fixavam-se em um pólo, ora em outro.

Todavia, nos Estados Unidos, diferentemente do direito brasileiro, antes de julgar o mérito de uma causa, deve ser definido o critério que será utilizado para análise, e se faz necessário frisar que quando se tratar do direito das minorias, em qual nível se enquadrará as ações.

Tratando-se destes níveis de profundidade, que diferenciam o rigor das análises por parte da Corte, há a existência de três níveis: rational basis test,, intermediate scrunity e o mais rigoroso em análises de detalhes denominado strict scrunity test.

Coube ao Ministro Powell, sob a ótica do sistema strict scrunity test fazer a análise do mérito do caso Bakke. Assevera em seu voto que o argumento da Universidade da Califórnia dizendo que as cotas seriam o único meio para atingir a diversidade étnica entre os universitários não é suficientemente válido e reconheceu o programa da instituição como falho.

Ainda relata em seu voto que:

[...] O objetivo de ajudar certos grupos que o corpo docente da Escola de Medicina de Davis considera vítimas de discriminação societária não justifica a classificação que impõe desvantagens sobre pessoas como o requerido, Bakke, que não tem qualquer responsabilidade por danos que os beneficiários do programa especial de admissões tenham eventualmente sofrido [...]

[...] A diversidade que promove um interesse estatal imperativo engloba uma gama de qualificações e características consideravelmente maior, da qual a origem racial ou étnica nada mais é do que um simples elemento, embora importante. O programa especial de admissões da Instituição, centrado somente na diversidade étnica, impediria, e não promoveria, a obtenção de uma genuína diversidade [...] Tampouco seria interesse do Estado [...] um número prescrito de vagas reservadas para cada categoria de candidatos.

É imperioso ressaltar que também descreveu que o programa adotado pela Faculdade de Harvard era plausível de ser tido como exemplo, já que de acordo com o Ministro:

[...] o Comitê não estabeleceu cotas-alvo para o número de negros, ou de músicos, jogadores de futebol, físicos ou californianos a serem admitidos em um determinado ano [...] significa somente que, na escolha entre milhares de candidatos [...], o Comitê, com um considerável número de critérios em mente, presta alguma atenção à distribuição das vagas entre os vários tipos e categorias de estudantes [...] examinando o amplo grupo intermediário de candidato que são ‘admissíveis’ e potencialmente capazes de realizar um bom trabalho nos cursos [...]. Em tal programa de admissões, a fator racial ou étnico pode ser considerado com um plus (um fator positivo) no dossiê de um determinado candidato [...].

Em essência, vê-se que o programa da supracitada Instituição, considerava todo e qualquer aspecto dos candidatos a fim de caracterizar critérios de desempate em favor daqueles que, com suas particularidades, pudessem colaborar de forma maior com a educação e crescimento da sociedade como um todo. Não era conferida potencial importância e exclusividade ao critério cor de pele, para inclusão ou exclusão do candidato. Era sim, considerada como uma das particularidades e por conseqüência, analisada em conjunto com outras qualidades com o intuito de proporcionar uma maior diversidade.

Com isso, a Corte decidiu pela constitucionalidade das ações afirmativas e reconheceu sua importância para a integração das minorias, porém vedou a aplicação de ações afirmativas que fixassem um número determinado de cotas para os candidatos das minorias.

 

Data de elaboração: maio/2010

 

Como citar o texto:

MACIEL, Álvaro dos Santos..O delineamento histórico das ações afirmativas. . Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/2108/o-delineamento-historico-acoes-afirmativas-. Acesso em 21 dez. 2010.

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