O modelo de Estado Democrático de Direito foi institucionalizado com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Nos Estados liberal e social de Direito, a crença de uma nação democrática brasileira que priorizava a observância de direitos fundamentais não passava, na realidade, de uma farsa. No Estado Democrático, essa farsa teve continuação, conquanto a atual Constituição se declarar cidadã. Os cidadãos brasileiros estão em constante defender-se de iniciativas ilegais, autoritárias e burocráticas efetivadas por parte do aparato do Estado constituído que não mede esforços pela manutenção do poder. A interferência deste em suas várias formas, em “roupagens” de dominação (conceito weberiano sob o nome de poder) legal, tradicional ou carismática, conduz à impossibilidade, no caso brasileiro, de instalar uma discussão de democraticidade[1]. Entretanto, pela via da processualidade democrática, por um Devido Processo Constitucionalizante, a sociedade legitimada pode-se encontrar amparada na fiscalidade incessante pela busca de seus direitos fundamentais, chamando o Estado à responsabilidade pelo cumprimento da tutela constitucional no Estado democrático de Direito.               

A interferência do poder, em sua capacidade de decisão de uma pessoa ou grupo de pessoas com primazia sobre as outras, conduz à impossibilidade de se construir uma sociedade constitucionalmente democrática. É o que estamos presenciando, estarrecidos, dos últimos acontecimentos. O governo federal, empenhado em uma batalha selvagem e agressiva pelo poder, está arrastando a população brasileira, sobretudo à classe que em discursos inflamados e carismáticos jurou “defender”, a um futuro incerto e assustador, senão apocalíptico. Disfarçadamente, as forças políticas, sem que seja claramente percebido, haja vista o esforço governamental para que não saiamos do “nevoeiro” que impede termos um claro alcance visual, autoritariamente usa o poder como forma e significado de dominação, superioridade, influência, soberania e império. O poder sempre constituiu uma preocupação para os estudiosos das várias ciências, sobretudo nos campos do direito, filosofia e sociologia. O poder é exercido de várias formas, e não é uma força que opera de maneira verticalizada ou que tem sua origem do centro para as extremidades. Se for entendido dessa forma, essa força dominante não se mostra capaz de explicar certos fatos sociais. O poder gera a “dominação, ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato, pode fundar-se em diversos motivos de submissão. Pode depender diretamente de uma constelação de interesses, ou seja, de considerações utilitárias de vantagens e inconvenientes por parte daquele que obedece”[2]. O poder possui um caráter nebuloso envolto em uma mística e mítica, tal como “o poder que Weber havia definido como ‘carismático’ é ligado ao conceito de auctoritas e elaborado em uma doutrina do Führertum como poder original e pessoal de um chefe”[3], como encarnado em Hitler. O poder fascina e deslumbra, na medida em que tem ao seu alcance meios de se impor e transformar algo ou a existência de alguém. O poder exercita-se de diferentes técnicas pelos mais variados meios em uma determinada época. As tecnologias coexistem e não se identificam sempre. Ele, o poder, atrai e seduz. Pode perverter ou enobrecer o homem. Os mecanismos de poder têm que ser questionados. O mito do poder tem que ser “quebrado”. Não podemos mais aceitar de que “ao homem todas as coisas parecem naturais, nas quais é criado e nas quais se habitua, mas isso só o torna ingênuo, naquilo que a natureza simples e inalterada o chama; assim, a primeira razão da servidão voluntária é o costume”[4].  O povo não é objeto de dominação. O povo é sujeito constitucional e pode e deve utilizar do processo, por uma “teoria do discurso jurídico no Estado Democrático de Direito”[5] , como um instrumento capaz, senão o único, à tirar do poder sua pretensa concepção de legitimada. O novo ordenamento constitucional legitima, em uma processualidade democrática, o exercício de uma cidadania legitimada nos direitos fundamentais, cujo processo, sendo uma instituição constitucionalizada no Estado Democrático de Direito, há de ser o meio através do qual o poder, em sua estrutura clássica alicerçada em modos de dominação e na crença na legitimidade em bases jurídicas, poderá ser desconstruído para uma nova reconfiguração legitimando o Povo, por meio de um poder autêntico, como sujeito constitucional.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução: Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

BENJAMIN, Walter. Crítica da violência, crítica do poder. Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, V. 15, n. 1, p. 132-140, 1990.

BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012.

DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de José Cretella Júnior e Agnes Cretella. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.     

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como Teoria da Lei Democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. (Coleção Professor Álvaro Ricardo de Souza, 7). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.

LEAL, Rosemiro Pereira. O estar em juízo democrático, p. 371-379. In: AURELLI, Arlete Inês; SCHMITZ, Leonard Ziesemer; DELFINO, Lúcio; RIBEIRO, Sérgio Luiz e Almeida; FERREIRA, William Santos (Coords.). O Direito de estar em juízo e a coisa julgada: estudos em homenagem a Thereza Alvim. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

LEBRUN, Gerard. O que é poder. Tradução: Renato Janine Ribeiro e Silvia Lara. 14ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2013.

WEBER, Max. Três tipos puros de dominação legítima. In: FERNANDES, Florestan (Coord.); COHN Gabriel (Org.). Max Weber. Sociologia. Tradução de Amélia Cohn e Gabriel Cohn. 7. ed. São Paulo: Ática, 2004. (Série Grandes cientistas sociais, v. 13).

  

[1] LEAL, Rosemiro Pereira. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. (Coleção Professor Álvaro Ricardo de Souza, 7). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013, p.104.

[2] WEBER, Max. Três tipos puros de dominação legítima. In: FERNANDES, Florestan (Coord.); COHN Gabriel (Org.). Max Weber. Sociologia. Tradução de Amélia Cohn e Gabriel Cohn. 7. ed. São Paulo: Ática, 2004. (Série Grandes cientistas sociais, v. 13), p. 128.

[3] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 128.

[4] LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntária. Tradução de José Cretella Júnior e Agnes Cretella. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 47.    

[5] LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como Teoria da Lei Democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 278.

 

 

Elaborado em fevereiro/2015

 

Como citar o texto:

SANTOS, Luiz Sérgio Arcanjo dos. .O Mito Do Poder No Estado Constitucionalizante. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1239. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/3465/o-mito-poder-estado-constitucionalizante. Acesso em 10 mar. 2015.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.