Resumo: Neste trabalho, pretende-se analisar o conceito de dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pela análise de alguns dos principais julgados contemporâneos como o reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar, a consideração do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro e a constitucionalidade da lei de cotas raciais para concursos públicos em âmbito federal. 

Palavras-chaves: Dignidade da pessoa humana; Supremo Tribunal Federal; jurisprudência.

Abstract: In this work, we intend to analyze the concept of dignity of the human person in the jurisprudence of the Federal Supreme Court by the analysis of some of the main contemporary judgments as the recognition of stable homoaffective union as family entity, the consideration of the unconstitutional state of things in the system the Brazilian penitentiary and the constitutionality of the racial quota law for public tenders at the federal level.

Key words: Dignity of the human person; Federal Court of Justice; jurisprudence.

Introdução 

A dignidade da pessoa humana passou a ocupar um papel proeminente nas Constituição dos mais diversos países “[…] após as experiências vivenciadas com o nazismo e com a Segunda Guerra Mundial (século XX). (DUARTE; OLIVEIRA, 2012, p. s/p). 

Não se pode negar, contudo, sua consagração no direito positivo se deu com o surgimento da “[...] Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948 [...]”. (DUARTE; OLIVEIRA, 2012, p. s/p). A propósito, atentemo-nos à previsão de seu artigo inicial, nos moldes de versão publicada na biblioteca do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF):

Artigo 1

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. (UNICEF, [200?]: s/p). 

Nesse diapasão, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 nomeou a dignidade da pessoa humana, junto à soberania, à cidadania, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e ao pluralismo político, como um dos fundamentos do Estado brasileiro, nos incisos de seu art. 1º. Vejamos sua integralidade: 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL, 1988, p. s/p).

Estudiosos estrangeiros e brasileiros especializados na matéria muito debatem o conceito, a amplitude e as funções da dignidade da pessoa humana, não somente em âmbito nacional, mas também na seara internacional.

A nível mundial, já no ano de 2002, Canotilho aliava sua função à defesa ou liberdade dos direitos fundamentais em dimensões como: jurídico-objetiva; jurídico-subjetiva; de prestação judicial; de prestação social; de prestação perante terceiros; e de não discriminação. Analisemos seus desenvolvimentos à respeito:

A função de defesa ou de liberdade dos direitos fundamentais tem dupla dimensão: plano jurídico-objetivo: normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; plano jurídico-subjetivo: o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). A função de prestação social: os direitos fundamentais significam, em sentido restrito, o direito do particular a obter alguma coisa do Estado (saúde, educação, segurança social); A função de prestação social dos direitos fundamentais tem grande relevância em sociedades, como é o caso do Brasil, onde o Estado do bem-estar social tem dificuldades para ser efetivado. A função de proteção perante terceiros: os direitos fundamentais das pessoas precisam ser protegidos contra toda sorte de agressões. Esta função impõe ao Estado um dever de proteção dos cidadãos perante terceiros. A função de não discriminação: a função de não discriminação diz respeito a todos os direitos fundamentais. (CANOTILHO, 2002, p. 407).

No plano nacional e em caráter mais recente, Daniel Sarmento, numa obra especialmente dedicada ao exame da dignidade da pessoa humana, salientou possuir a mesma, em termos de relevância, as seguintes funções: fator de legitimação do Estado e do Direito; norte para a hermenêutica jurídica; diretriz para ponderação entre interesses colidentes; fator de limitação de direitos fundamentais; parâmetro para o controle de validade de atos estatais e particulares; critério para identificação de direitos fundamentais; e fonte de direitos não enumerados.

Após o desenvolvimento de cada uma dessas funções, destacou o mesmo, todavia, que:

[…] o princípio da dignidade da pessoa humana desempenha múltiplas e relevantes funções na nossa ordem jurídica. Para que possa exercê-las, porém, é preciso que se atribua ao princípio da dignidade um conteúdo. Afinal, se não se souber em que consiste o princípio, fica difícil empregá-lo de modo consistente em qualquer das funções acima descritas. (SARMENTO, 2016, p. 89).

Algo a não ser negado, no entanto, por maiores que sejam as variações, como se pôde notar, o instituto se apresenta como elemento nuclear “[...] axiológico do constitucionalismo contemporâneo, a dignidade é considerada o valor constitucional supremo [...]”. (NOVELINO, 2015, p. 292). 

A perspectiva indica apresentar-se a dignidade da pessoa humana, portanto, como o principal preceito do ordenamento jurídico atual, sendo conceituada por Ingo Wofgang Sarlet como

[…] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede de vida. (SARLET, 2011, p. 73).

Postas essas considerações iniciais, face à sua importância ímpar e devido ao fato de tratar-se este do guardião da Constituição da República, nos moldes do caput de seu art. 102, por meio deste trabalho, pretende-se analisar o conceito de dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) pela análise de alguns dos principais julgados contemporâneos.

Primeiramente, analisaremos o reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar.

Num segundo momento, a consideração do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro.

Por fim, traçaremos algumas pontuações sobre a constitucionalidade da lei de cotas raciais para concursos públicos em âmbito federal.

1. O reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar 

Em 5 (cinco) de maio do ano de 2011, o plenário da Corte, apreciando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, ajuizadas, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, à época, Sérgio Cabral, reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar.

Iremos focalizar, neste tópico, contudo, outro julgado do Pretório Excelso sobre o mesmo tema, que ocorreu em 16 (dezesseis) de agosto de 2011, ou seja, aquele proferido no seio do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 477.554 Minas Gerais, da relatoria do Ministro Celso de Mello. Segundo sua ementa:

E M E N T A: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO - ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: POSIÇÃO CONSAGRADA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADPF 132/RJ E ADI 4.277/DF) - O AFETO COMO VALOR JURÍDICO IMPREGNADO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA - O DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE, VERDADEIRO POSTULADO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E EXPRESSÃO DE UMA IDÉIA-FORÇA QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – ALGUNS PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA SUPREMA CORTE AMERICANA SOBRE O DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA FELICIDADE - PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA (2006): DIREITO DE QUALQUER PESSOA DE CONSTITUIR FAMÍLIA, INDEPENDENTEMENTE DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU IDENTIDADE DE GÊNERO - DIREITO DO COMPANHEIRO, NA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA, À PERCEPÇÃO DO BENEFÍCIO DA PENSÃO POR MORTE DE SEU PARCEIRO, DESDE QUE OBSERVADOS OS REQUISITOS DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL - O ART. 226, § 3º, DA LEI FUNDAMENTAL CONSTITUI TÍPICA NORMA DE INCLUSÃO - A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO - A PROTEÇÃO DAS MINORIAS ANALISADA NA PERSPECTIVA DE UMA CONCEPÇÃO MATERIAL DE DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL – O DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO DE IMPEDIR (E, ATÉ MESMO, DE PUNIR) “QUALQUER DISCRIMINAÇÃO ATENTATÓRIA DOS DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS” (CF, ART. 5º, XLI) - A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O FORTALECIMENTO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: ELEMENTOS QUE COMPÕEM O MARCO DOUTRINÁRIO QUE CONFERE SUPORTE TEÓRICO AO NEOCONSTITUCIONALISMO - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (BRASIL, 2011, p. 1).

Esse pronunciamento judicial confirmou, como se vê, uma “concepção mais aberta e/ou menos conservadora” no direito brasileiro, ao reconhecer os direitos de uma minoria, os homossexuais. 

Sobre o judicium, relacionando a realização do fundamento dignidade da pessoa humana ao direito fundamental individua à autonomia privada, Daniel Sarmento escreveu:

Também no Brasil, a proteção da autonomia privada, como dimensão da dignidade humana, vem sendo salientada em diversas decisões do STF. No julgamento que resultou do reconhecimento do direito à constituição de união estável homoafetiva, o relator, Ministro Carlos Ayres Britto, salientou “a proteção constitucional que faz da livre disposição da sexualidade do indivíduo um autonomizado instituto jurídico (...), dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade”. No mesmo julgado, o Ministro Luiz Fux registrou que “compete ao Estado assegurar (...) que cada um possa conduzir a sua vida autonomamente, segundo seus próprios desígnios e que a orientação sexual não constitua óbice à persecução dos objetivos pessoais”, assentando ainda que “essa ordem de ideias remete à questão da autonomia privada dos indivíduos, concebida em uma perspectiva kantiana, como o centro da dignidade da pessoa humana”. (SARMENTO, 2016, p. 145).

Em outras palavras, inevitavelmente, em nome da dignidade da pessoa humana, a qual foi ocupa, como se vê de plano, posicionamento central no ordenamento jurídico interno, o STF reconhece que seu conteúdo abarca, implicitamente, o postulado constitucional da busca pela felicidade. 

Nesse sentido, para referido Tribunal, é da essência da dignidade da pessoa humana trilhar o caminho que a leva ao sentimento felicidade, o que poderá assumir qualquer papel, até mesmo, a orientação sexual e sua afirmação familiar. Verifiquemos:

- O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Doutrina. 

- O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.

- Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma idéia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e da Suprema Corte americana. Positivação desse princípio no plano do direito comparado. (BRASIL, 2011, p. 1).

Passemos, agora, a analisar a consideração do estado de coisas inconstitucional no âmbito do sistema penitenciário brasileiro.

2. A consideração do Estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro

Outra decisão marcante do STF se refere ao julgamento da Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 Distrito Federal, ocorrido no mês de setembro de 2015, em que este reconheceu o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, pela análise das ponderações de seu autor, o Partido Socialismo e Liberdade – Psol.

O STF, no “caso”, entendeu haver uma violação massiva a direitos fundamentais, incorrendo-se, assim, em grave afronta à Constituição Federal. Observemos o teor da ementa desse julgado:

CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. (BRASIL, 2015, p. 3).

Na petição inicial, o autor da ADPF sustentou que as prisões brasileiras, via de regra, se apresentam como verdadeiros infernos dantescos, em “[…] decorrência de superlotações, proliferação de doenças infecto contagiosas, homicídios, espancamentos, tortura, violência sexual, entre outros pontos horrendos e aberrantes”. (DUARTE; COURA, 2018, p. s/p). Vejamos suas colocações exordiais à respeito: 

2. As prisões brasileiras são, em geral, verdadeiros infernos dantescos, com celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos. Homicídios, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos são frequentes, praticadas por outros detentos ou por agentes do próprio Estado. As instituições prisionais são comumente dominadas por facções criminosas, que impõem nas cadeias o seu reino de terror, às vezes com a cumplicidade do Poder Público. Faltam assistência judiciária adequada aos presos, acesso à educação, à saúde e ao trabalho. O controle estatal sobre o cumprimento das penas deixa muito a desejar e não é incomum que se encontrem, em mutirões carcerários, presos que já deveriam ter sido soltos há anos. Neste cenário revoltante, não é de se admirar a frequência com que ocorrem rebeliões e motins nas prisões, cada vez mais violentos. (PSOL, 2015, p. 2).

Além disso, frisou-se o caráter seletivo do sistema penal, pois as estatísticas referentes aos níveis educacionais do custodiado informam que: “só 0,47 % dos presos têm curso superior completo, 5,1% são analfabetos, 12,1% são apenas alfabetizados e 44% possuem somente o ensino fundamental incompleto”. (PSOL, 2015, p. 2).

O Psol ofereceu argumentação, também, “[…] acerca do fato de que essa quase total anomalia é conhecida tanto pela sociedade civil quanto por variadas autoridades estatais”. (DUARTE; COURA, 2018, p. s/p). Inclusive, a Câmara do Deputados assim se pronunciou acerca do tema:

“Apesar da excelente legislação e da monumental estrutura do Estado Nacional, os presos no Brasil, em sua esmagadora maioria, recebem tratamento pior do que o concedido aos animais: como lixo humano. Ao invés de recuperar quem se desviou da legalidade, o Estado embrutece, cria e devolve às ruas verdadeiras feras humanas”. Desde agosto de 2008, o CNJ realiza mutirões carcerários em presídios de todas as unidades da federação e divulga os respectivos relatórios, que oferecem um diagnóstico claro da dramática situação prisional do país e das graves e massivas violações aos direitos fundamentais dos presos. Mais recentemente, o Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo admitiu publicamente que as prisões brasileiras são verdadeiras “masmorras medievais”, confessando que preferia até morrer a ser preso numa delas. (PSOL, 2015, p. 3).

Outro ponto destacado pelo autor da ação comentada relaciona-se “[…] ao conhecimento do próprio STF, à época, acerca da situação calamitosa vivenciada nos cárceres brasileiros”. (DUARTE; COURA, 2018, p. s/p). 

Nesse ínterim, ainda segundo o Psol, o Ministro Ricardo Lewandowski, atuando no Conselho Nacional de Justiça – CNJ, enquanto presidente do STF, aludiu considerar “[...] a situação como um dos dois grandes problemas com que se depara o Poder Judiciário brasileiro na atualidade”. (PSOL, 2015, p. 3). Enquanto Ministro Marco Aurélio aprofundou sobre o 

“[...] descaso, negligência e total indiferença do Estado” em relação à situação extrema das penitenciárias brasileiras, destacando que “a pessoa sentenciada acaba por sofrer penas sequer previstas pelo Código Penal, que a nossa ordem jurídica repudia”. […]. (PSOL, 2015, p. 3).

Ademais, o Psol retratou as palavras do Ministro Gilmar Mendes, segundo as quais:

[...] “as péssimas condições dos presídios, que vão desde instalações inadequadas até maus-tratos, agressões sexuais, promiscuidade, corrupção e inúmeros abusos de autoridade, verdadeiras escolas do crime controladas por facções criminosas”. […]. (PSOL, 2015, p. 3).

O partido em vértice lembrou, igualmente, as palavras do saudoso Ministro Teori Zavascki e do Ministro Luís Roberto Barroso sobre a situação caótica do sistema prisional em nosso país. 

O primeiro enfatizou que “em nossas prisões as condições de vida são intoleráveis”, e que, na prática, “os presos não têm direitos”. […]. (PSOL, 2015, p. 3). Já o segundo sugeriu especial atenção ao fato de que:

[...] “a superpopulação e a precariedade das condições dos presídios correspondem a problemas estruturais e sistêmicos de grande complexidade e magnitude, que resultam de deficiências crônicas do sistema prisional brasileiro.” […]. (PSOL, 2015, p. 4).

Para finalizar seus argumentos, o Psol lembrou a condenação do Estado brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, termos em que medidas provisórias deveriam ser satisfeitas a fim de

[…] providenciar a proteção à vida e à integridade pessoal, psíquica e moral de pessoas privadas de liberdade em várias penitenciárias do país. Foi o caso do Centro Penitenciário Professor Aníbal Bruno, de Recife/PE,9 da Penitenciária Urso Branco, de Porto Velho/ RO,10 do Complexo do Tatuapé, de São Paulo/SP,11 da Penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira, de Araraquara/ SP,12 e do Complexo de Pedrinhas, de São Luiz/MA.13 A Comissão Interamericana, por sua vez, concedeu medidas cautelares contra o Estado Brasileiro para salvaguardar a vida e a integridade pessoal dos internos do Presídio Central de Porto Alegre/ RS. (PSOL, 2015, p. 4).

Por todo o exposto, não restam dúvidas, encontramo-nos diante de “[…] gravíssimas violações ao art. 41 da Lei de Execução Penal, aos incisos III e XLIX art. 5º, e, em última instância e principalmente, ao inciso III do art. 1º, todos da Constituição Federal”. (DUARTE; COURA, 2018, p. s/p). 

Mas o que há de mais espantoso e repugnante, nossos Poderes são sabedores das problemáticas que envolvem o tema e nada fazem para eliminar e/ou eliminar as ofensas a direitos concernentes à dignidade da pessoa humana aqui explanadas. 

3. A constitucionalidade da lei de cotas raciais para concursos públicos em âmbito federal 

Para finalizar as análises acerca dos principais precedentes do STF envolvendo a dignidade da pessoa humana, passemos, neste momento, a analisar o desfecho da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 41. 

As informações a seguir, serão apresentadas com base no sistema de notícias do STF. 

Na ação mencionada supra, o plenário da Corte entendeu, por unanimidade, pela constitucionalidade da Lei 12.990/2014, a qual reserva 20% das vagas “[…] oferecidas em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta, no âmbito dos Três Poderes”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017: s/p). 

No feito, quando do início do julgamento em maio do ano de 2017, seu relator, o Ministro Luís Roberto Barroso pugnou pela constitucionalidade da norma motivando, principalmente, que a lei objeto da ação que gerou aquele ato judicante “[…] é motivada por um dever de reparação histórica decorrente da escravidão e de um racismo estrutural existente na sociedade brasileira”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017: s/p). O relator foi acompanhado pelos “[…] ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber e Luiz Fux”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017: s/p).

Como não se pôde colher os votos necessários para encerrar o julgamento naquela data, no dia 8 (oito) de junho do mesmo ano, o STF se reuniu novamente para encerrar a questão.

Iniciando os trabalhos, votou o Ministro Dias Toffoli, aludindo que a previsão legal apreciada, “[…] mais do que compatível com a Constituição, trata-se mesmo de uma exigência do texto maior, em decorrência do princípio da isonomia prevista no caput do artigo 5º”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p). Prosseguindo:

Esse entendimento, inclusive, prosseguiu o ministro, está em sintonia com a jurisprudência do STF, que já confirmou a constitucionalidade da instituição da reserva de vaga para portador de deficiência física, bem como a constitucionalidade do sistema de cotas para acesso ao ensino superior público.

O ministro explicou, contudo, que seu voto restringe os efeitos da decisão para os casos de provimento por concurso público, em todos os órgãos dos Três Poderes da União, não se estendendo para os Estados, Distrito Federal e municípios, uma vez que a lei se destina a concursos públicos na administração direta e indireta da União, e deve ser respeitada a autonomia dos entes federados. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p). 

Ademais, o julgamento do próprio STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, quando foi confirmada a constitucionalidade do sistema de cotas raciais para ingresso nas universidades públicas, também foi citado pelo Ministro, quando se verificou a necessidade de haver desigualação dessa parcela da sociedade em nome da efetivação da dignidade da pessoa humana.

Em sequência, o Ministro Ricardo Lewandowski lembrou uma questão referente à sua gestão no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quando “[…] foi editada a Resolução 203/2015, que reservava 20% de vagas para os negros no âmbito do Poder Judiciário”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p). Essa iniciativa do CNJ, de acordo com o Ministro: 

[…] levou em conta, segundo ele, o primeiro censo do Judiciário realizado pelo Conselho, que apontou que apenas 1,4% dos juízes brasileiros se declararam negros, e apenas 14% pardos, dados que divergiam dos números do censo demográfico brasileiro de 2010, do IBGE, segundo o qual o percentual da população brasileira que se declarou negra foi de 7,6% e parda 43,1%. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p).

O Ministro Marco Aurélio, concordando com as estatísticas apresentadas pelo Ministro Ricardo Lewandowski, aduziu ser notória a falta de oportunidade para os negros, tendo recordado que entre 2001 e 2002, anos em que ocupou o posto de presidente da Suprema Corte brasileira, “[…] determinou que fosse inserida em edital para contratação de prestadores de serviço a exigência de reserva de 30% das vagas para prestação de serviços por negros”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p).

Por seu turno, Celso de Mello arguiu, de início, a história de um advogado, o Luiz Gama, que dentre os anos 1830 e 1882 ficou conhecido como “militante” dos escravos, no intuito de enfatizar que é longa a trajetória dos negros, em nosso país, “[…] na busca não só de sua emancipação jurídica, como ocorreu no século XIX, mas de sua emancipação social e de sua justa, legítima e necessária inclusão”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p). 

Ao defender as políticas de inclusão, o decano salientou que de nada valerão os direitos e de nenhum significado serão revestidas as liberdades se os fundamentos em que esses direitos e liberdades se apoiam, além de desrespeitados pelo Poder Público ou eventualmente transgredidos por particulares, também deixarem de contar com o suporte e o apoio de mecanismos institucionais, como os proporcionados pelas políticas de ações afirmativas. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p).

No tocante às obrigações do Estado impostas pela Carta Magna de 1988, Celso de Mello aludiu que se deve reconhecer aqueles situados à margem do sistema de conquistas em nosso país na condição “[…] essencial de titulares do direito de serem reconhecidos como pessoas investidas de dignidade e merecedoras do respeito social […]”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p). E se isso não for satisfeito, será impossível conquistar-se a igualdade e “[…] realizar a edificação de uma sociedade justa, fraterna e solidária, frustrando assim um dos objetivos fundamentais da República, a que alude o inciso I do artigo 3º da Carta Política”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p). 

Para concluir suas ponderações, o Ministro Celso de Mello, com base no direito à busca da felicidade, manifestou-se “[…] pela constitucionalidade de medidas compensatórias como a inserida na lei em questão”. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p). 

Finalizando o julgamento, a Ministra Cármen Lúcia, à época, Presidente da Corte, aduziu que, em regra, o preconceito contra negros e outras “minorias” se apresenta extremamente perigoso e camuflado, sendo as “[…] ações afirmativas como a que consta da Lei 12.990/2014 demonstram que "andamos bem ao tornar visível o que se passa na sociedade". (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. s/p).

Considerações finais 

Para finalizar esse texto, afirmaremos, primeiramente, que concordamos com Sarlet para quem a dignidade da pessoa humana é uma condição intrínseca ao ser humano, conteúdo a ser preenchido com a cuidadosa análise das mais diversas questões, dos fatos da vida e de suas importâncias coletivas e individuais.

Entendemos também, junto a Daniel Sarmento, que uma das principais funções do instituto, enquanto viés moral, é legitimar o Estado, a criação e a aplicação do direito positivo.

Por outro lado, sabemos que no mundo contemporâneo, marcado pela complexidade, pluralidade e heterogeneidade, o preenchimento apriorístico do que seja afeto à dignidade da pessoa humana, materialmente dizendo, mereça maiores e profundos debates.

De todo modo, e, enfim, pela análise dos precedentes aqui expostos, pode-se dizer que se teve um elevado grau de acertos, pois sem dúvidas, questões sexuais e de coabitação, o mínimo de condições no sistema carcerário e as cotas raciais para concurso público, enquanto critério de desigualação imediata, são facetas do conceito da dignidade da pessoa humana. 

Referências 

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no recurso extraordinário nº 477.554 – Minas Gerais. Rel. Ministro Celso de Mello. Decisão em: 16/08/2011.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.

DUARTE, Hugo Garcez; COURA, Francisco de Assis. O sistema prisional brasileiro e a dignidade humana: um estado de coisas inconstitucional. JURIS PLENUM OURO, v. 60, p. s.n., 2018.

DUARTE, Hugo Garcez; OLIVEIRA, Juliana Silva. Uma análise do direito à liberdade de profissão frente ao princípio da dignidade da pessoa humana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 96, jan 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11053>. Acesso em nov 2018.

NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 10. ed. Salvador: JusPODIVM, 2015. 

PSOL. Petição inicial da Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347/DF. Disponível em: https://jota.info/wp-content/uploads/2015/05/ADPF-347.pdf. Acesso em: nov. 2018.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias do STF: Plenário declara constitucionalidade da Lei de Cotas no serviço público federal. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346140&fbclid=IwAR1w_7mk4OQUneFsQiYLLWJ1z_7jqA9OrG3WylwlGmmgcyiDvmnPf1nfpj0. Acesso em: nov. 2018. 

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Data da conclusão/última revisão: 14/11/2018

 

Como citar o texto:

DUARTE, Hugo Garcez; LAUREANO, Bruno Gonçalves Baia..O conceito de dignidade humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1576. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/4249/o-conceito-dignidade-humana-jurisprudencia-supremo-tribunal-federal. Acesso em 19 nov. 2018.

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