A Constituição brasileira de 1988 foi nomeada como “Constituição cidadã” por resultar de uma ampla participação popular, revelando um profundo compromisso com os direitos humanos fundamentais, vez compilar o que talvez seja o mais amplo leque desses direitos do constitucionalismo mundano.1 Não é por outra razão, essa Carta Política-Jurídica tornou-se responsável por simbolizar o processo de redemocratização do país. Trata-se, portanto, de uma Constituição “arrojadamente preocupada” em garantir que os tempos atuais e os vindouros sejam de profunda transformação social, pautados nos ideais da justiça corretiva.2 Mais, esse modelo constitucional permite que o administrando exija do Estado o cumprimento das normas constitucionais, pouco importando a natureza do direito consagrado, pois constitucionalizar, como lembra o ministro do STF Luís Roberto Barroso, “é transformar Política em Direito”. (BARROSO, 2009, p. 5). 

É bem verdade, desde Konrad Hesse,3 o reconhecimento da força normativa da Constituição remete à lembrança de tratar-se o Brasil de um Estado Democrático de Direito (caput do art. 1º da Constituição Federal) que agrega “um círculo muito amplo de participantes do processo de interpretação pluralista, processo este que se mostra muitas vezes difuso [...]” (HÄRBELE, 2002, p. 11), em que questões coletivas e individuais se encontram em constante tensão. Noutros dizeres, a Constituição Federal de 1988 consagrou um regime jurídico-político-estatal-governamental de convivência social que pode ser definido como aquele que congrega os anseios dos Estados liberal e social, sem, contudo, deixar de contemplar, se legítimas, as reivindicações sociais, políticas, filosóficas, econômicas e culturais oferecidas por este tempo, cujas características de extrema pluralidade e heterogeneidade ganham mais relevo. Isso porque o Estado Democrático de Direito sucedeu os dois regimes anteriores, sem, entretanto, abandonar as suas conquistas, quando se tem como paradigmas os direitos normativamente reconhecidos e a busca por sua efetivação. Ora, sob certa perspectiva, o Estado liberal é marcado por uma revolução cujo resultado tem como lema direitos humanos fundamentais individuais e políticos como vida, liberdade, igualdade, propriedade, votar e ser votado (dentro de certos requisitos), entre outros, enquanto as revoluções provindas do Estado Social tiveram como “pano de fundo” a conquista normativa de direitos fundamentais sociais como, por exemplo, trabalho, saúde e educação, entre outros, além dos direitos econômicos. 

O Estado Democrático de Direito possibilita, logo, além da busca pela consecução dos direitos ora descritos, maior liberdade ao indivíduo no sentido de se autodeterminar, de buscar a realização, desde que legítimo, daquilo que desenvolva plenamente suas capacidades, enquanto pessoa dotada de preferências próprias e, imersa, por outro lado, em um ambiente coletivo.4 Não se pode abandonar, nesse ínterim, inclusive sob o manto da Carta Magna de 1988, a concepção de que “[...] a história e a cultura são as fontes de uma imensa variedade de formas simbólicas, da especificidade das identidades individuais e coletivas, bem como da grandeza do desafio representado pelo pluralismo epistêmico”. (HABERMAS, 2007, p. 09). Portanto, ainda nos passos de Habermas (2007), o mundo se revela e é interpretado de modo distinto e de acordo com as perspectivas dos diversos indivíduos e grupos. Ou seja:

Uma espécie de pluralismo interpretativo afeta a visão do mundo e a autocompreensão, além da percepção dos valores e dos interesses de pessoas cuja história individual tem suas raízes em determinadas tradições e formas de vida e é por elas moldada. (HABERMAS, 2007, p. 09).

Interessa pesquisar, então, qual seria, nesse contexto, o fundamento de validade do direito pós-positivista (não positivista) já que a Constituição brasileira contemporânea poderá ser encarada como sua condição de possibilidade e, como lembra Ricardo Lorenzetti, o direito parece ter sido “idealizado para ser aplicado a um Estado cujos habitantes tenham raízes e ideais em comum, ou seja, uma base cultural homogênea”. (LORENZETTI, 2010, p. 62).

O direito hoje conhecido por todos é identificado como aquele positivado pelo Estado por meio de representantes eleitos para esse fim, os quais deverão reproduzir, em normas jurídicas, tudo o que é necessário para a devida convivência social sob o norte do bem comum. Por outro lado, embora se verifiquem divergências e convergências acerca do nascimento e de seu significado, o direito vincula-se a uma série de símbolos que o antecedem, sendo preciso estabelecer nortes mais sólidos sobre o nascimento da ciência jurídica e quanto ao seu fundamento. No período anterior ao direito romano, cada comunidade detinha seu próprio sistema de normas (seu direito), resultando de suas instituições. Porém, com o advento do direito romano, a sociedade conheceu o nascimento da ciência jurídica, por se tratar do primeiro sistema jurídico capaz de ser aplicado para além do seio social onde foi criado, fazendo gerar, assim, a ideia de universalismo nessa seara, na qual (iurisprudentia ou ciência do direito) há “[…] análise do fenômeno jurídico mediante a elaboração de conceitos e princípios, tal como ocorreu com o saber dos filósofos gregos”. (COMPARATO, 2016, p. 120). 

A história denuncia, com as conquistas do império romano, tornou-se indispensável (para o mesmo) exterminar os particularismos jurídicos locais e se criar um direito que garantisse o sucesso das relações mercantis e entre as pessoas das diferentes províncias conquistadas e entre provincianos e cidadãos romanos. O que mais importa aqui, de toda maneira, é a assertiva de que esse direito, criado pelo pretor romano, sofreu grande influência do estoicismo, sendo, em razão disso, contemplado como aquele inspirado no direito ideal, que comum a todos os povos do globo terrestre, sobre os quais deveria se difundir. (COMPARATO, 2016).

Fortalecendo os signos da influência do estoicismo sobre esse direito, a partir dos anos 218-201 a.C. além do estabelecimento do método de análise dialética da realidade jurídica, o pensamento estoico introduziu, no direito romano, premissas como: a) a justiça corresponde à vivência do indivíduo em harmonia com a comunidade, o qual deverá agir com prudência, sendo a virtude da moderação, a razoabilidade ligada à tendência natural de respeito à dignidade própria e à das outras pessoas. Nesses termos, nada poderá existir de útil na vida que não seja, ao mesmo tempo, justo e honesto; b) o método dialético, o qual propugna que uma norma jurídica expressa textualmente somente entra em vigor quando interpretada e aplicada. Logo, o intérprete do direito exerce um papel fundamental, colocando a ideia de direito em movimento. c) a ciência jurídica romana foi criada por grandes jurisconsultos da época imperial que contemplaram interesses nem sempre vistos na era moderna;5 d) o direito autêntico, logo, nada mais é do que a realização da justiça e a finalidade da lei consiste na formulação pública da regras práticas de moralidade.

A partir dessas digressões, pôde-se perceber que a ciência jurídica nasceu sob dois viéses, um impositivo e outro ético. O primeiro, pelo fato de o império romano usurpar as concepções locais acerca do direito e instituir o próprio, afim de manter e expandir suas conquistas. O segundo, de cunho ético, premissa resultante do fato de a base do direito ser o pensamento estoico6

A propósito, por mais que se possa atestar haver uma descontinuidade do pensamento científico e, correlatamente, do direito enquanto ciência, já que o legado de Jesus Cristo7, tendo como cerne o fundamento do direito, rompeu com o pensamento ético grego e foi a base do direito até o advento do positivismo filosófico e do positivismo jurídico, a dignidade da pessoa humana passou a ocupar um papel proeminente nas Constituições dos mais diversos países após as experiências vivenciadas com o nazismo e na segunda guerra mundial, sem esquecer-se de sua consagração na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948. Nesse quadrante, a Constituição da República de 1988 a nomeou, junto à soberania, à cidadania, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e ao pluralismo político, como um dos fundamentos do Estado brasileiro, nos incisos de seu art. 1º.

O horizonte revela, acima de tudo, nas palavras de Flávia Piovesan, que o valor da dignidade humana, enquanto fundamento constitucional, “[...] impõe-se como um núcleo básico e informador do ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valorização a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional”. (PIOVESAN, 2002, p. 75). Reforçando a diretriz, Cleyson Mello e Nuno Coelho (2010) sustentaram ocupar a pessoa humana o centro das atenções do viver, devendo a relação jurídica ajustar-se a uma nova dinâmica social de inter-relação humana, de modo que o homem seja compreendido a partir do seu próprio acontecer histórica, política, econômica e culturalmente situado. Com efeito, estudiosos estrangeiros e brasileiros especializados na matéria muito debatem o conceito, a amplitude e as funções da dignidade da pessoa humana, não somente em âmbito nacional, mas também na seara internacional. A nível mundial, já no ano de 2002, Canotilho aliava sua função à defesa ou liberdade dos direitos humanos fundamentais em dimensões como: jurídico-objetiva; jurídico-subjetiva; de prestação judicial; de prestação social; de prestação perante terceiros; e de não discriminação. Analisemos seus desenvolvimentos à respeito:

A função de defesa ou de liberdade dos direitos fundamentais tem dupla dimensão: plano jurídico-objetivo: normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; plano jurídico-subjetivo: o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). A função de prestação social: os direitos fundamentais significam, em sentido restrito, o direito do particular a obter alguma coisa do Estado (saúde, educação, segurança social); A função de prestação social dos direitos fundamentais tem grande relevância em sociedades, como é o caso do Brasil, onde o Estado do bem-estar social tem dificuldades para ser efetivado. A função de proteção perante terceiros: os direitos fundamentais das pessoas precisam ser protegidos contra toda sorte de agressões. Esta função impõe ao Estado um dever de proteção dos cidadãos perante terceiros. A função de não discriminação: a função de não discriminação diz respeito a todos os direitos fundamentais. (CANOTILHO, 2002, p. 407).

No plano nacional e mais recentemente, Daniel Sarmento, em obra especialmente dedicada ao exame da dignidade da pessoa humana, salientou possuir a mesma, em termos de relevância, as seguintes funções: fator de legitimação do Estado e do direito; norte para a hermenêutica jurídica; diretriz para ponderação entre interesses colidentes; fator de limitação de direitos fundamentais; parâmetro para o controle de validade de atos estatais e particulares; critério para identificação de direitos fundamentais; e fonte de direitos não enumerados. Após o desenvolvimento de cada uma dessas funções, destacou Sarmento, todavia, que:

[…] o princípio da dignidade da pessoa humana desempenha múltiplas e relevantes funções na nossa ordem jurídica. Para que possa exercê-las, porém, é preciso que se atribua ao princípio da dignidade um conteúdo. Afinal, se não se souber em que consiste o princípio, fica difícil empregá-lo de modo consistente em qualquer das funções acima descritas. (SARMENTO, 2016, p. 89).

Algo a não se negar, no entanto, por maiores que sejam as variações, conforme se notou com os apontamentos de Plávia Piovesan mencionados supra, o instituto se apresenta como elemento nuclear “[...] axiológico do constitucionalismo contemporâneo, a dignidade é considerada o valor constitucional supremo [...]”. (NOVELINO, 2015, p. 292). A perspectiva indica, portanto, apresentar-se a dignidade da pessoa humana como o principal preceito do ordenamento jurídico atual, sendo conceituada por Ingo Wofgang Sarlet como

[…] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede de vida. (SARLET, 2011, p. 73).

Como, todavia, identificar, em concreto, contemporaneamente, o preceito dignidade da pessoa humana sem esvaziar seu conteúdo face à ausência de um fundamento moral absoluto para o direito no pós-positivismo? Embora reconheça que serão necessários maiores aprofundamentos em textos futuros, entendo, como Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno, que a teoria kantiana sobre a moral e o direito, baseada no imperativo categórico e em sua lei universal, se compatibilizam com o pós-positivismo e, portanto, poderá fundamentá-lo, por mais que Kant a tenha formulado em período anterior à sua criação. 

Afirmo isso pelo fato de ser possível, em Kant, superar o positivismo sem retornar ao dogmatismo jusnaturalista, pois seu fundamento de validade para o direito não é material, como neste último, e nem puramente formal, como naquele. Pode-se, com isso, à luz de Kant, atualmente, reavivar legalidade e legitimidade ou o “por que se deve obedecer ao direito e qual deve ser seu conteúdo”. (TRIVISONNO, 2015, p. 224). 

Conforme Travessoni (2015) a ideia de liberdade ou autonomia da vontade, e a propriedade da razão em si mesma, fundamentam o direito em Kant, e essa concepção de liberdade mesma:

[…] fundamenta a ética de um modo geral, que se divide em ética (stricto sensu) ou moral e direito. As leis éticas ou morais são internas e exigem, além do cumprimento do dever, a ação por dever. As leis jurídicas são externas e exigem apenas a conformidade com o dever. Não objetivo, aqui, desenvolver mais detalhadamente as distinções entre moral (ou ética stricto sensu) e direito em Kant. Quero apenas enfatizar que o direito, sendo parte da ética em Kant, se legitima no imperativo categórico, que tem por fundamento a ideia de liberdade. Isso significa que, ao colocar a liberdade, enquanto ideia, como fundamento de sua ética, Kant a está fazendo fundamento do Direito. Na introdução de A Fundamentação, Kant afirma expressamente estar desenvolvendo a busca e fixação do princípio supremo da moralidade. (1995a, p. 19). Kant quer, com isso, dizer duas coisas: (a) que as leis do agir só são possíveis sob o pressuposto da liberdade e (b) que essas leis, para um ser tanto racional quanto sensível, adquirem a forma de imperativos. (1995a, p. 47-48). (TRIVISONNO, 2015, p. 224).

Perceba-se, nesse sentido, a liberdade faz da pessoa humana, além de igual, um legislador, sendo o fundamento de validade do direito em Kant, portanto, transcendental, pois a ordem jurídica se fundamentaria na autoreflexão, significando que o imperativo categórico legitima o direito, ordena obediência à ordem jurídica e torna possível, pelo teste da universalização, chegar-se ao conteúdo jurídico justo. (TRIVISONNO, 2015). 

No tocante à essa determinação (do direito) no caso concreto à luz do pensamento kantiano, se faz imprescindível levar em consideração as limitações de seu tempo frente ao pluralismo oferecido pelos dias atuais. Mas nem por isso, poder-se-á negar a sua possibilidade, já que um senso determinado de adequação encontra-se presente na […] latitude das máximas dos deveres éticos imperfeitos e, no Direito Internacional, a lex permissiva). (TRIVISONNO, 2015, p. 233). Para melhor explicar, veja-se:

[…] para Kant, deveres não são gerais, não podendo alguém, numa situação, ter o dever de fazer alguma coisa e, ao mesmo tempo, o dever de não fazer. Aquilo que alguns chamam de dever é, para Kant, fundamento de obrigação; consequentemente, o que alguns chamam de “conflito de deveres” é, para Kant, conflito de fundamento de obrigação. Imaginemos a seguinte situação: alguém está em um barco que navega em mar revolto e, por acidente, uma pessoa cai na água. O que a pessoa que está no barco deve fazer? Por um lado, um fundamento de obrigação, nesse caso, é salvar a vida daquele que está em risco; por outro, há o fundamento de obrigação de manter-se vivo. Se a pessoa que está no barco constatar (após análise de diversas características da situação, como sua habilidade em nadar, as condições do mar, a distância que a pessoa em risco está, etc.) que salvará a pessoa em risco, deve ela pular e resgatá-la, pois aí pode, ao mesmo tempo, salvar aquele que está em risco e manter sua vida. No entanto, se avaliando as condições mencionadas, a pessoa que está no barco chega à conclusão de que não conseguirá de modo algum salvar a pessoa em risco, não deve pular e arriscar sua vida. Não há, pois, um dever geral como “devo sempre tentar salvar aquele que está em perigo”; o que há são fundamentos de obrigação que, aplicados a um caso específico, geram soluções diferentes para casos diferentes. A solução não é indeterminada, como nos positivistas, mas direcionada a um imperativo categórico, isto é, por um teste de universalização de máximas, as quais devem conter o(s) fundamento(s) de obrigação do(s) qual(is) fala Kant na passagem citada. (TRIVISONNO, 2015, p. 234-235).8

Esses desenvolvimentos demonstram que por meio da teoria de Kant pode-se aplicar o direito eticamente, pois baseando-se na autonomia da vontade, arbitrariedades poderão ser afastadas a partir de uma interpretação autêntica dos seus conteúdos. Para melhor explicar, citarei um precedente do STF. Em 2011, o plenário da Corte, apreciando a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, ajuizadas, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, reconheceu a união estável homoafetiva como entidade familiar. Irei focalizar, contudo, outro julgado, o proferido no seio do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 477.554 Minas Gerais, da relatoria do Ministro Celso de Mello. Segundo sua ementa:

E M E N T A: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO - ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: POSIÇÃO CONSAGRADA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (ADPF 132/RJ E ADI 4.277/DF) - O AFETO COMO VALOR JURÍDICO IMPREGNADO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO DESSE NOVO PARADIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO CONCEITO DE FAMÍLIA - O DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE, VERDADEIRO POSTULADO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E EXPRESSÃO DE UMA IDÉIA-FORÇA QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – ALGUNS PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA SUPREMA CORTE AMERICANA SOBRE O DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA FELICIDADE - PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA (2006): DIREITO DE QUALQUER PESSOA DE CONSTITUIR FAMÍLIA, INDEPENDENTEMENTE DE SUA ORIENTAÇÃO SEXUAL OU IDENTIDADE DE GÊNERO - DIREITO DO COMPANHEIRO, NA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA, À PERCEPÇÃO DO BENEFÍCIO DA PENSÃO POR MORTE DE SEU PARCEIRO, DESDE QUE OBSERVADOS OS REQUISITOS DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL - O ART. 226, § 3º, DA LEI FUNDAMENTAL CONSTITUI TÍPICA NORMA DE INCLUSÃO - A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO - A PROTEÇÃO DAS MINORIAS ANALISADA NA PERSPECTIVA DE UMA CONCEPÇÃO MATERIAL DE DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL – O DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO DE IMPEDIR (E, ATÉ MESMO, DE PUNIR) “QUALQUER DISCRIMINAÇÃO ATENTATÓRIA DOS DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS” (CF, ART. 5º, XLI) - A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E O FORTALECIMENTO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: ELEMENTOS QUE COMPÕEM O MARCO DOUTRINÁRIO QUE CONFERE SUPORTE TEÓRICO AO NEOCONSTITUCIONALISMO - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (BRASIL, 2011, p. 1).

Ora, se a liberdade sexual decorre do preceito liberdade e da autonomia da vontade/privada, sendo norma jurídica, impõe um dever, permitindo à toda pessoa a confirmação de suas características sexuais intrínsecas e extrinsecas desde passe por esse teste, e a obrigação de respeito e consideração por parte dos demais membros da comunidade para com dada opção. Sobre essa interpretação jurídica, relacionando a realização do fundamento dignidade da pessoa humana ao direito fundamental ao que se analisou, Daniel Sarmento escreveu:

[…] o Ministro Luiz Fux registrou que “compete ao Estado assegurar (...) que cada um possa conduzir a sua vida autonomamente, segundo seus próprios desígnios e que a orientação sexual não constitua óbice à persecução dos objetivos pessoais”, assentando ainda que “essa ordem de ideias remete à questão da autonomia privada dos indivíduos, concebida em uma perspectiva kantiana, como o centro da dignidade da pessoa humana”. (SARMENTO, 2016, p. 145).9

Mas qual(is) seria(m) a(s) razão(ões), embora tenhamos avanços como aquele enfrentado no precedente supra apontado, para haver tantas dificuldades no sentido de se efetivar os direitos coletivos e individuais no âmbito da Constituição Federal de 1988? Penso que os maiores obstáculos são a crise ética, o jeitinho brasileiro, a influência da mídia sobre as pessoas, o despreparo educacional e as premissas neoliberais. 

Referências

BARROSO, Luís Roberto. Retrospectiva 2008 – Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 18, abril/maio/junho, 2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo regimental no recurso extraordinário nº 477.554 – Minas Gerais. Rel. Ministro Celso de Mello. Decisão em: 16/08/2011.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 

DUARTE, Hugo Garcez. A felicidade no Estado Democrático de Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XX, n. 159, abr 2017. Disponível em: <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=18836>. Acesso em: 5. jan. 2019.

DUARTE, Hugo Garcez; LAUREANO, Bruno Gonçalves Baia. O conceito de dignidade humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 13, no 1576. Disponível em: Acesso em: 6. jan. 2019.

DUARTE, Hugo Garcez; COSTA, Igor Amaral da. Uma análise contemporânea da teoria da tripartição de poderes e dos conceitos de judicialização da política e ativismo judicial. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 151, ago 2016. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17702>. Acesso em: 5. jan. 2019.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. A paixão de trabalhar com Foucault. Disponível em:

HABERMAS, Jünger. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. Trad. de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

HÄRBELE, Peter. Hermenêutica constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.  

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. 

LORENZETTI, RICARDO Luis. Teoria da decisão judicial – fundamentos de direito. Trad. Bruno Miragem. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 10. ed. Salvador: JusPODIVM, 2015.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

___________. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. Kant e o pós-positivismo no direito. In: A moral o direito em Kant: ensaios analíticos. 2. ed. Caxias do Sul: Educs, 2015. 

Notas

1 Sobre a Constituição cidadã, vale conhecer os desenvolvimentos de Daniel Sarmento em: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

2 Escrevi sobre o tema, junto a Igor Amaral da Costa, em: DUARTE, Hugo Garcez; COSTA, Igor Amaral da. Uma análise contemporânea da teoria da tripartição de poderes e dos conceitos de judicialização da política e ativismo judicial. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIX, n. 151, ago 2016. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=17702>. Acesso em: 5. jan. 2019.

3 Importa ressaltar, nesse ponto, levando-se em conta, principalmente, o binômio legalidade-legitimidade, estes dizeres de Konrad Hesse: “b) Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concepção anteriormente por mim denominada vontade da Constituição (Wille zur Verfassung). Ela é fundamental, considerada global e singularmente. Todos os interesses momentâneos – ainda quando realizados – não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo, naquelas situações em que a sua observância revela-se incômoda”. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991, p. 21-22. 

4 Acerca do conceito de Estado Democrático de Direito, indico a leitura de: DUARTE, Hugo Garcez. A felicidade no Estado Democrático de Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XX, n. 159, abr 2017. Disponível em: <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=18836>. Acesso em: 5. jan. 2019.

5 A propósito, sobre os interesses da ciência jurídica romana, Fábio Konder Comparato, lembrando passagem de Ulpiano, jurista que exerceu altos cargos burocráticos para imperadores como Caracala e Alexandre Severo por volta do século III, colou: “Se se quiser entender a matéria jurídica, é preciso, antes de mais nada, saber donde vem a palavra direito (ius). Ora, essa palavra provém de justiça (iustitia): com efeito, como definiu limpidamente (eleganter) Celso, o direito é a arte do bom e do equitativo. E nós (juristas) podemos, com razão, ser chamados os sacerdotes do direito, pois de fato praticamos justiça, procuramos dar a conhecer o que é bom e equitativo, com a separação entre o justo e o injusto, a distinção entre o lícito e o ilícito; pretendemos que os homens de bem se conduzam não apenas por temor do castigo, mas também pelo desejo de recompensa, e esforçamo-nos, sinceramente, por alcançar, salvo engano, uma filosofia verdadeira”. COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 

6 Sobre essas premissas do direito romano, ler: COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 

7 Segundo Rosa Maria Bueno Fischer: “[...] para descrever a lenta e poderosa transformação de uma série de técnicas de si, que os gregos associavam a um necessário aperfeiçoamento físico e espiritual do cidadão, o qual era virtualmente constituído como um insuperável obra artística. Que sobrou disso quando o Cristianismo se apropriou de uma série de técnicas e procedimentos e cuidado consigo, aprendidos dos antigos? Muito pouco, se pensarmos em continuidades; mais rico será, então, compreender todo o complexo processo de transformação desse discurso de experiência de si. Se havia alguma austeridade, por exemplo, nas práticas propostas pelos gregos e romanos dos primeiros séculos da nossa era, os textos mostram que tal austeridade passava a tornar-se um valor em si, associada a uma infinidade de procedimentos de conhecimento de si; depois, com o Cristianismo, aparece um homem que já não buscava a si mesmo: ele precisa confessar-se para renunciar a si mesmo, a tudo aquilo que obscurece seu verdadeiro eu, em nome de uma prometida felicidade eterna, em um outro reino que não este”. FISCHER, Rosa Maria Bueno. A paixão de trabalhar com Foucault. Disponível em:

8 O autor se refere à seguinte passagem: “Um conflito de deveres (collisio officiorum, s. obligationum) seria uma relação recíproca na qual um deles cancelasse o outro (inteira ou parcialmente). Mas visto que dever e obrigação são conceitos que expressam a necessidade prática objetiva de certas ações, e duas regras mutuamente em oposição não podem ser necessárias ao mesmo tempo, se é um dever agir de acordo com uma regra, agir de acordo com a regra oposta não é um dever, mas mesmo contrário ao dever; por conseguinte, uma colisão de deveres e obrigações é inconcebível (obligationes non colliduntur). Entretanto, um sujeito pode ter um regra que prescreve para si mesmo dois fundamentos de obrigação (rationes obligandi), sendo que um ou outro desses fundamentos não é suficiente para submeter o sujeito à obrigação (rationes obligandi non obligantes) de sorte que um deles não é um dever. Quando dois fundamentos tais conflitam entre si, a fisolosofia prática diz não, que a obrigação mais forte tem precedência (fortior obligatio vincit), mas que o fundamento da obrigação mais forte prevalece (fortior obligandi ratio vincit). (2003, p. 67). TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. Kant e o pós-positivismo no direito. In: A moral o direito em Kant: ensaios analíticos. 2. ed. Caxias do Sul: Educs, 2015, p. 234. 

9 Essas ideias foram fomentadas em: DUARTE, Hugo Garcez; LAUREANO, Bruno Gonçalves Baia. O conceito de dignidade humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 13, no 1576. Disponível em: Acesso em: 6. jan. 2019.

Data da conclusão/última revisão: 27/1/2019

 

Como citar o texto:

DUARTE, Hugo Garcez..A Constituição Federal de 1988 como condição de possibilidade das premissas pós-positivistas. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1594. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/4305/a-constituicao-federal-1988-como-condicao-possibilidade-premissas-pos-positivistas. Acesso em 29 jan. 2019.

Importante:

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