SUMÁRIO: Resumo;  Abstract; Introdução; Cláusulas Pétreas e sua origem histórica; Teses desfavoráveis e favoráveis à alteração; Conclusão; Referências Bibliográficas

RESUMO

As cláusulas pétreas, conhecidas como normas imodificáveis, além de fazerem parte da Carta Magna brasileira, fazem parte da maioria das constituições de diversas nações. A primeira constituição com trechos imutáveis surgiu no século XVIII, com a Constituição norte-americana de 1787. No Brasil, a primeira cláusula pétrea foi estabelecida pela Constituição de 1824. A razão de existir dessas cláusulas se dá pela necessidade de preservar o ordenamento constitucional e sua estabilidade, evitando possíveis desgastes e os riscos inerentes a substituição. No entanto o Poder Constituinte Originário criou um paradoxo ao instituir as cláusulas pétreas, pois os costumes, a cultura e os anseios da humanidade não são eternos, e nessa lógica nenhuma norma deve ser eterna. Diante dessa contradição, muitos teóricos e cientistas discutem acerca do assunto, onde uns defendem a imutabilidade – por temerem a ruptura do Estado - e outros defendem a possibilidade de alteração por meio da dupla revisão e ou por participação direta do povo.

Palavras-chave: Constituição; Cláusulas Pétreas; Possibilidades de Alteração; Poder Constituinte Originário; Poder Constituinte Reformador; Dupla Revisão; Participação do Povo;

ABSTRACT

Stone clauses, known as unmodifiable norms, besides being part of the Brazilian Magna Carta, are part of most constitutions of various nations. The first constitution with unchanging passages appeared in the eighteenth century, with the American Constitution of 1787. In Brazil, the first stone clause was established by the Constitution of 1824. The reason for the existence of these clauses is the need to preserve the constitutional order and its stability, avoiding possible wear and the risks inherent to replacement. However, the Original Constituent Power created a paradox in instituting the stone clauses, since the customs, culture and yearnings of humanity are not eternal, and in this logic no norm should be eternal. Faced with this contradiction, many theorists and scientists argue about the subject, where some defend immutability - for fear of rupture of the state - and others defend the possibility of change through double review and or by direct participation of the people.

Keywords: Constitution; Stone Clauses; Possibilities of Alteration; Original constituent power; Reforming Constituent Power; Double Review; Peoples Participation;

 

INTRODUÇÃO

O homem, a partir do momento em que deixou de ser apenas um indivíduo e concretizou a sociedade, teve que abrir mão da vontade particular como condição de igualdade entre todos, estabelecendo dessa forma, um contrato social, que tem como pilar central um poder indivisível: a soberania do povo.

A história nos mostra que esse contrato social, que é decorrente da cultura, não é estático - pois sofre mutações de geração em geração - e a necessidade de o homem adequar as normas aos valores sociais o obriga a fazer transformações. Paulo Nader (2000, p. 15) explana que o homem, em seu permanente trabalho de adequação do mundo cultural, submete os objetivos materiais e espirituais a novas formas e conteúdos, buscando ao seu melhor aproveitamento, a sua melhor adaptação aos novos valores e aos fatos vigentes da época. Tal patrimônio não é resultado somente do esforço isolado de uma geração, visto que corresponde à soma das experiências vividas no passado e no presente. Os feitos científicos de hoje são acréscimos ao trabalho de ontem. Assim sendo, o entendimento pleno do significado de um objeto cultural exige o conhecimento de suas diferentes fases de elaboração. Esse fenômeno ocorre, com igual importância, na área do direito, onde a memorização dos acontecimentos jurídicos representa um fator secundário, mas necessário, de informação, para a definição do Direito no presente.

A Constituição é a lei maior, norma de ordem superior que normalmente dispõe sobre a organização do Estado e as garantias e direitos individuais, considerados fundamentais do cidadão, dentre outros temas assinalados como de maior relevância pelo contexto da sociedade em que é elaborada. A primeira ideia de Constituição nos remete à Inglaterra de 1215, onde a ideia de liberdade política e igualdade civil, como condições de vida social ganhou destaque, de forma tímida, onde se viu pela primeira vez a vontade de garantias e a limitação do poder real reclamada pelos nobres e religiosos. Esse primeiro vislumbre de constituição, com apenas 63 artigos, tem dois textos que merecem ser mencionados: §12 – nenhum imposto ou obrigação será estabelecido senão pelo conselho de reino; §39 – nenhum homem livre poderá ser preso, detido, privado de seus bens, posto fora da lei ou exilado sem julgamento de seus pares ou por disposição de lei. Aqui se vê uma primeira manifestação constitucional. Todavia, a primeira constituição escrita, de acordo com ANNA MUCCI PELÚZIO (Organização social e política do Brasil, 1984, UFV), que se tem noticia é a da Suécia, de 1722. Entretanto, a maioria dos autores apontam como primeira constituição escrita, a dos Estados Unidos, de 1787, que fora promulgada na Convenção da Filadélfia.

A Constituição é dotada de elementos rígidos, conhecidos como cláusulas pétreas. Essas cláusulas são essencialmente denominadas como obstáculos invulneráveis e, portanto, limitam material ou substantivamente o Poder Constituinte Derivado. Essa ideia faz referência à de existência de direitos imutáveis espalhados por todo corpo constitucional, especialmente os mencionados no Artigo 60, §4º da Carta Magna brasileira, sendo insuscetíveis de modificação pelo Poder Constituinte Reformador. Esse é o entendimento de parte majoritária dos atores do direito, pois concordam que a constituição é um documento acabado, finalizado e concluído – que alterar suas normas é romper com o poder normativo vigente, é afrontar as cláusulas pétreas e, consequentemente, o Poder Constituinte originário, o que torna essa ideia impraticável -  e que por ser assim, alguns princípios da carta magna tem status de invencibilidade. Mas o que é a Constituição, senão a regulamentação das ações do Estado, do querer dos cidadãos, de seus direitos para com a coletividade e da coletividade para com eles? Trata-se da própria vontade da sociedade, que estabelece o modus vivendi de seu país, sendo a expressão máxima da soberania. É o retrato fidedigno da vontade popular num país em que rege a democracia.

A mutabilidade das normas pétreas é defendida por parte minoritária, que entende que é sim possível alterar não só qualquer dispositivo da Constituição, bem como os princípios considerados imodificáveis, através de dupla revisão. Ainda há os que são favoráveis a tese de alterabilidade, que defendem a possibilidade de alteração com participação direta do povo: tal tese ainda é dividida entre aqueles que, mesmo com participação popular, defendem a dupla revisão, e outros que são adeptos da ideia de que é desnecessário a dupla revisão em caso de participação direta do povo, pois este é considerado o verdadeiro dono Poder Constituinte Originário.

Como se vê, a discussão em torno das normas invencíveis entre legisladores, doutrinadores e juristas tem sido intensa, rica e repleta de teorias.

Cabe pontuar que essa proteção da norma constitucional tem como finalidade o de preservar o ordenamento constitucional e sua necessária estabilidade. Pois o poder constituinte originário estabeleceu tais regras com o intuito de afastar os desgastes e os riscos inerentes a substituição. Porém, ao passo que estas garantias imutáveis se perpetuam no tempo, a sociedade perde a eficácia da garantia dos valores adquiridos. Pois entende-se que os costumes, a cultura e os anseios do homem não são eternos, o que significa dizer que a sociedade é dinâmica e, assim sendo, os valores também são. Não muito distante dos tempos atuais, o Brasil permitia escravizar negros, e hoje em dia tal conduta não é mais aceita. Ainda na mesma lógica, mesmo que não tenha sido totalmente abolida (pois ainda é prevista nos casos de guerra externa), a pena de morte, nos casos de guerra subversiva ou revolucionária, só deixou de fazer parte da constituição brasileira em 1978. Nesse sentido (de mudanças ao longo do tempo), as alterações nas constituições, bem como nas leis de uma forma geral, é um fenômeno inafastável da vida humana, não sendo possível deixar tais normas paradas no tempo, sob o perigo de se tornarem inaplicáveis.

Os modelos jurídicos estão longe de serem concebidos de modo abstrato, devendo ser resultados de formas típicas modeladas pelo contato permanente com a vida humana, mudando ou até mesmo desaparecendo em função dos fatos e valores da sociedade. Nesse aspecto, molda-se a formulação de regras, leis que servem para dar consistência à vontade geral. Como ventilado anteriormente, o homem não é um ser estático e, como consequência, as suas vontades, anseios, desejos e objetivos mudam.

A Norma Superior de 1988 foi concebida após um extenso período de instabilidade da democracia brasileira. Período em que a maioria dos historiadores contam que o contexto social era predominantemente autoritário. Daí a necessidade de o constituinte estabelecer cláusulas de intangibilidade à constituição vigente no Brasil, com o pretexto de perpetuar e assegurar a estabilidade da democracia. Todavia aqui cabe a indagação: até que ponto esses direitos são mesmo intangíveis? Eles vinculariam todas as gerações futuras, que permaneceriam escravas das escolhas do passado? Parte dos estudiosos afirmam que as cláusulas pétreas somente podem ser ultrapassadas com a ruptura da constituição vigente, ou seja, somente com uma nova assembleia constituinte e elaboração de uma nova Constituição. Contudo, não se pode negar que a aplicação de maneira incontestável e indiscutível dessas cláusulas, ao invés de assegurar a continuidade do sistema constitucional, pode antecipar uma ruptura do Estado.

 

CLÁUSULAS PÉTREAS E SUA ORIGEM HISTÓRICA

O significado “pétrea” faz referência à pedra. Nesse sentido, cláusula pétrea significa parte de um contrato ou disposição que é duro como pedra, ou seja, é imodificável, irreformável, intangível, imutável, intransponível. 

No geral, as cláusulas intangíveis têm relação íntima com o contexto histórico em que a Magna Carta é elaborada, sendo na maioria dos casos a limitação da intocabilidade da republica, afirma Guerzoni. Como exemplo pode-se citar a constituição da França de 1884, de Portugal de 1911, da Itália de 1947, da Tunísia de 1959 e do Brasil de 1891.

Como se vê, as cláusulas pétreas não são uma concepção inicial da República Federativa do Brasil. A primeira constituição com trechos imutáveis surgiu no século XVIII, com a Constituição norte-americana de 1787, que estabeleceu a impossibilidade de alteração na representação paritária dos estados-membros no Senado Federal. Em se tratando de Brasil, a primeira cláusula pétrea foi estabelecida pela Constituição de 1824, que não trouxe de forma explicita nenhuma limitação material ao poder de reforma. Todavia, trazia em seu preâmbulo, que Dom Pedro era o Imperador Constitucional e defensor perpétuo do Brasil, e que reinaria para sempre no país. Dessa forma, pode-se considerar esse reinado como a primeira cláusula pétrea do direito brasileiro.

Quando se trata de cláusulas pétreas explicitas no Brasil, Frederico Augusto Leopoldino Koehler (Reflexões acerca da legitimidade das cláusulas pétreas.2009), afirma que as vimos primeiramente na constituição de 1891, a qual traz em seu artigo 90, §4º a proteção ao regime republicano, a forma federativa de Estado e a igualdade de representação dos Estados no Senado. A constituição de 1934, no seu artigo 178, §5º, retirou a igualdade de representação dos Estados no Senado, mantendo as demais cláusulas que foram estabelecidas na constituição anterior. A constituição seguinte, a de 1937, foi a única que não trouxe no seu corpo nenhuma previsão de cláusula invencível. A Carta Magna de 1946 trouxe as cláusulas intangíveis das constituições anteriores e outra a mais, que enfatizou a forma federativa e o regime republicano ao prever que propostas tendentes a abolir tais institutos não seriam aceitos como objeto de deliberação. Posteriormente, as constituições de 1967 e 1969 praticamente mantiveram as mesmas disposições anteriores concernentes à forma federativa, o regime republicado e a inadmissibilidade de propostas tendentes a abolir essas normas.

A constituição brasileira vigente, promulgada em 1988, é a que elenca a maior quantidade de cláusulas pétreas. Essas cláusulas, além de estarem espalhadas por todo o texto constitucional de forma implícita, estão fixadas explicitamente no artigo 60, §4º da carta magna:

Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. (BRASIL, 1988, Art. 60, §4º)

 

TESES DESFAVORÁVEIS E FAVORÁVEIS À ALTERAÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS

As limitações estabelecidas nos textos constitucionais ao redor do mundo vêm acompanhado da necessidade de proteção dos princípios e valores, com viés principal de manter a pujante engrenagem da democracia funcionando. No Brasil, com base no disposto no artigo 60, § 4º da constituição, a maior parte dos cientistas e especialistas defende a impossibilidade de modificações das normas constitucionais pétreas pelo Poder de Emenda e Poder de Revisão, pois são poderes instituídos e derivados. Defendem que tais normas não podem ser simplesmente alteradas, haja vista que os poderes instituídos e derivados são instrumentos de mudança constitucional de segundo grau, os quais são submetidos ao centro comum de imputação estabelecidos pelo Poder Originário. Além de essas modificações serem vetadas explicitamente pelo Poder Constituinte Originários ao Poder Reformador, caso o Poder Derivado afronte as proibições, este pode colocar em risco a estabilidade do Estado.

Assim compartilha Raul Machado Horta (2003, p.88), um dos cientistas que defendem essa tese:

Do centro de imputação, que limita a atividade do órgão de revisão constitucional, dimanam, inicialmente, as matérias incluídas na cláusula de irreformabilidade do art. 60, §4º, I a IV, da Constituição. São improponíveis no Congresso Nacional, em sessão apartada de cada Casa, os temas irreformáveis, que não podem ser objeto de Emenda à Constituição: a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, os direitos e garantias individuais. Se não podem ser objeto de emenda para aboli-las - e a abolição não se circunscreve às formas grosseiras e ostensivas, mas também alcança as formas oblíquas, dissimuladas e ladeantes – as matérias irreformáveis não poderão constituir objeto de proposta de revisão. Poder de emenda e poder de revisão são poderes instituídos e derivados, instrumentos de mudança constitucional de segundo grau, submetidos um e outro ao centro comum de imputação, que assegura a permanência das decisões políticas fundamentais reveladas pelo poder constituinte originário.

Ainda segundo Horta, as limitações constantes do §4º, do artigo 60 da constituição não exaurem a demarcação instransponível do poder de emenda. Nesse caso, o autor se refere às normas imodificáveis implícitas que estão espalhadas por todo corpo da Norma Superior.

Por outro lado, Jorge Miranda (1996, p. 206-207; 2002, p. 422-423) defende que é possível alterar as cláusulas invencíveis por meio da tese da dupla revisão:

As normas de limites expressos não são lógica e juridicamente necessárias, necessários são os limites; não são normas superiores, superiores apenas podem ser, na medida em que circunscrevem o âmbito da revisão como revisão, os princípios aos quais se reportam. Como tais – e sem isto afectar, minimamente que seja, nem o valor dos princípios constitucionais, nem o valor ou a eficácia dessas normas na sua função instrumental ou de garantia – elas são revisíveis do mesmo modo que quaisquer outras normas, são passíveis de emenda, aditamento ou eliminação e até podem vir a ser suprimidas através de revisão. Não são elas próprias limites materiais. Se forem eliminadas cláusulas concernentes a limites do poder constituinte (originário) ou limites de revisão próprios ou de primeiro grau, nem por isso estes limites deixarão de se impor ao futuro legislador de revisão. Porventura, ficarão eles menos ostensivos e, portanto, menos guarnecidos, por faltar, doravante, a interposição de preceitos expressos a declará- los. Mas somente haverá revisão constitucional, e não excesso do poder de revisão, se continuarem a ser observados. Se forem eliminadas cláusulas de limites impróprios ou de segundo grau, como são elas que os constituem como limites, este acto acarretará, porém, automaticamente, o desaparecimento dos respectivos limites, que, assim, em próxima revisão, já não terão de ser observados. É só, a este propósito, que pode falar-se em dupla revisão”.

O jurista Louis Favoreu (2002, p. 108) explana que as proibições de revisar podem parecer paradoxais a alguns autores que a entendem somente como obstáculos condicionais, sendo que, para eles, se não é permitido revisar a forma republicana do governo francês, é aceitável revisar primeiramente o artigo 89 do texto constitucional, para em seguida modificar a forma de governo. A tese da dupla revisão teve aceitação minoritária na Alemanha. Mas para Favoreu, essa tese é equivocada, uma vez que a consequência é uma regressão ao infinito. Para o cientista, se fosse licito revisar primeiro o artigo 89, poderia o constituinte proibir diretamente a sua modificação.

Para Vital Moreira (1980, p. 106 – 108), a tese da dupla revisão se afigura teoricamente inconsistente, logicamente insustentável e juridicamente indefensável. Haja vista que em primeiro lugar, a norma proibitiva é dirigida pelo poder constituinte ao poder de revisão constitucional. Em segundo lugar, se o sentido da citada norma tivesse a única intenção de se fazer necessária uma “revisão em duas voltas”, então o constituinte teria dito isso. Em terceiro lugar, porque não tem sentido admitir que o poder constituído possa reapreciar o sistema essencial de valores da Constituição. Em quarto lugar, admitir a dupla revisão significa admitir que uma Constituição pode ser subvertida e transformada em outra, ou ainda substituída, por meio de seus próprios mecanismos, sem solução de continuidade constitucional. Moreira ainda explana que admitir tal tese seria o mesmo que permitir que um condutor de um veículo, ao deparar-se com uma sinalização de proibição, retirasse a sinalização e avançasse.

Na contramão dos pensamentos de Favoreu e Moreira, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1995, p. 15) aduz que não é fraude à Norma Constitucional admitir a supressão das cláusulas pétreas, tendo em vista que tais regras que disciplinam as alterações do dispositivo constitucional não são intocáveis. Para ele, somente deveria ser levado em conta se a Constituição normatizasse entre as clausulas pétreas o processo de modificação constitucional que consagrou.

Compactuando com a tese da dupla revisão, José Carlos Francisco (2003, p.98) endossa que “é mais do que uma saída honrosa para o paradoxo criado pelas limitações materiais, mas um critério que se legitima não pelo procedimento, mas pela ampla discussão a que sujeita o tema sobre o qual versa”. Com a dupla retificação, diminui-se os riscos de instabilidades institucionais a partir de um amplo processo constituinte, bem como os prejuízos decorrentes do esquecimento de uma constituição considerada “aperfeiçoada no tempo”.

A discussão em torno das normas invencíveis traz à tona uma outra ideia citada por Maunz-Dürig ( Kommentar zum Grundgesatz, art. 79, III, nº.21) em que “Uma concepção consequente da ideia de soberania popular deveria admitir que a Constituição pudesse ser alterada a qualquer tempo por decisão do povo ou de seus representantes”. Da mesma forma, assevera, Antônio Sant’Ana Pedra (2006, p. 144), que compreender a possibilidade de transcendermos a tais limitações materiais dentro de um paradigma de um Estado democrático-participativo, levando em consideração a participação direta do povo no processo de reforma da Constituição, é uma proposta viável.

Na mesma direção, o Ministro do Superior Tribunal Federal, Gilmar Ferreira Mendes (1994, p. 18-19) entende que constitui uma necessidade do processo de revisão total da Constituição  não só a fixação de procedimento mais restritivo, em relação ao processo de emenda, como também a necessidade de participação do efetivo titular do poder constituinte, o povo, seja mediante plebiscito, seja mediante referendo. Nesse sentido, o Ministro entende que a própria constituição, traz implicitamente a possibilidade de sua alteração, por meio de um procedimento especial que conte com a participação do povo.

se se entendesse – o que pareceria bastante razoável – que a revisão total ou revisão parcial das cláusulas pétreas está implícita na própria Constituição, poder-se-ia cogitar – mediante a utilização de um processo especial que contasse com a participação do Povo – até mesmo de alteração  das disposições constitucionais referentes ao processo de emenda constitucional com o escopo de explicitar a ideia de revisão total ou revisão específica  da cláusulas pétreas, permitindo, assim, que se disciplinasse, juridicamente, a alteração das cláusulas pétreas ou mesmo a substituição ou a superação da ordem constitucional por outra” (MENDES, 1994, p. 18-19).

A também Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia Antunes Rocha (1993, p. 181-182), converge para a possibilidade de revisão das normas pétreas com a participação direta do povo, pois o povo é o titular do poder constituinte e sendo assim, não haveria que se falar incompetência para modificar, reformar ou alterar o texto superior.

Penso – mudando opinião que anteriormente cheguei a externar – que as cláusulas constitucionais que contêm os limites materiais expressos não podem ser consideradas absolutamente imutáveis ou dotadas de natureza tal que impeçam totalmente o exercício do poder constituinte derivado de reforma. Pelo menos não em um outro ponto. (...) De outra parte, considero imprescindíveis que, num sistema democrático, a reforma deste ponto nodular central intangível, inicialmente, ao reformador dependerá, necessária e imprescindivelmente, da utilização de instrumentos concretos, sérios e eficazes de aferição da legitimidade da reforma, instrumentos estes de democracia direta, pois já então não se estará a cogitar da reforma regularmente feita segundo parâmetros normativos previamente fixados, mas de modificações de gravidade e consequências imediatas para um povo, que se insurge e decide alterar o que se preestabelecera como, em princípio, imodificável.

O então Ministro Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, foi favorável à relativização das cláusulas pétreas, ao se manifestar na ADin 3105-8 DF:

Com a devida vênia daqueles que têm outro ponto de vista, eu sempre vi com certa desconfiança a aplicação irrefletida da teoria das cláusulas pétreas em uma sociedade com as características da nossa, que se singulariza pela desigualdade e pelas iniquidades de toda sorte. (…) Vejo a teoria das cláusulas pétreas como uma construção intelectual conservadora, antidemocrática, não razoável, com uma propensão oportunista e utilitarista a fazer abstração de vários outros valores igualmente protegidos pelo nosso sistema constitucional.

Conservadora porque, em essência, a ser acolhida em caráter absoluto, como se propõe nesta ação direta, sem qualquer possibilidade de limitação ou ponderação com outros valores igualmente importantes, tais como os que proclamam o caráter social do nosso pacto político, a teoria das cláusulas pétreas terá como consequência a perpetuação da nossa desigualdade. Constituiria, em outras palavras, um formidável instrumento de perenização de certos traços da nossa organização social. A Constituição de 1988 tem como uma das suas metas fundamentais operar profundas transformações em nosso quadro social. É o que diz seu art. 3º, incisos III e IV. Ora, a absolutização das cláusulas pétreas seria um forte obstáculo para a concretização desse objetivo. Daí o caráter conservador da sua pretendida maximização.

Essa teoria é antidemocrática porque, em última análise, visa a impedir que o povo, por intermédio de seus representantes legitimamente eleitos, promova de tempos em tempos as correções de rumo necessárias à eliminação paulatina das distorções, dos incríveis e inaceitáveis privilégios que todos conhecemos. O povo tem, sim, o direito de definir o seu futuro, diretamente ou por meio de representantes ungidos com o voto popular.

Complementando, para Karl Loewenstein (1976, p. 164), a Constituição é um organismo vivo, sempre em movimento como a própria vida, e está sujeita às mudanças da realidade, impostas pela sociedade, que jamais poderão ser capturadas através de normas fixas. Uma constituição jamais será idêntica à outra e estará constantemente sujeita à inércia do homem, pois são as leis que devem se adaptar ao homem, nunca o homem às leis.

 

CONCLUSÃO

As cláusulas pétreas constituem o núcleo essencial de todo e qualquer ordenamento máximo. Na constituição brasileira, esse núcleo está explicitamente elencado no artigo 60, §4º da Carta Magna e defende que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais. No entanto, além das normas explicitas, existem no texto constitucional as normas pétreas implícitas, que estão espalhadas por toda norma magna. A exemplo das normas pétreas implícitas pode-se elencar a titularidade do poder constituinte originário, o procedimento de emenda constitucional, os sistemas e formas de governo, e também os princípios e tratados internacionais, que, ao passarem pelo Congresso Nacional, adquiram status de cláusulas pétreas.

A discussão acerca das cláusulas pétreas, do ponto de vista sociológico e técnico, mostra a preocupação tanto por parte dos defensores da imutabilidade bem como por aqueles que defendem a sua alteração. A partir de uma visão social, os defensores argumentam que o legislador instituiu as cláusulas pétreas, o núcleo essencial da Norma Máxima, com o propósito de assegurar que a Constituição sofresse modificações desenfreadas que viessem a desconfigurá-la ou até mesmo destruí-la. Essa destruição poderia significar até mesmo o desmembramento do Estado. Por outro lado, os que são favoráveis à modificação alegam que essa imutabilidade não garante a estabilidade do Estado, uma vez que a população, ao não se identificar mais com a norma vigente, encontraria a revolução como único meio fazer a adequação necessária as suas vontades. Do ponto de vista técnico, a principio vislumbrou-se a teoria da dupla revisão: que tem como ideia principal modificar as normas que elencam as chamadas limitações materiais, para depois rever as próprias cláusulas pétreas. Todavia, essa teoria é considerada atécnica, pois não é possível o Poder Reformador alterar preceitos direcionados pelo Poder Originário ao Poder Secundário.

Todavia, em se tratando de Brasil, acredita-se que a solução para esse paradoxo constitucional está fundamentada na própria Carta Magna, em seu artigo 1º, parágrafo único, que dispõe: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Esse dispositivo trata da soberania popular, que poderá ser feita de forma direta ou indireta. O artigo 14 da Constituição Federal dispõe que o exercício da soberania será feita pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos, mediante plebiscito, referendo ou iniciativa popular. Com base na constituição, não seria exagero dizer que a única cláusula, de fato imodificável, é o parágrafo único do artigo 1º do texto constitucional. Como seria possível um povo, que vive num regime democrático, abrir mão do direito de participar da democracia? Seria a mesma coisa que querer respirar e pedir para morrer. Só respira quem tem vida, da mesma forma que só há democracia se a sociedade tiver direito estabelecer os rumos da própria nação.

O direito de participação do povo é inerente à democracia, e o constituinte brasileiro deixou bem claro ao estabelecer a expressão da vontade suprema do povo no parágrafo único do artigo 1º. Sendo o povo o Constituinte Originário, pelo estabelecido na Carta Magna, é perfeitamente lógico concluir que, caso se queira modificar uma cláusula pétrea, deverá o Congresso Nacional, ao passar pelos trâmites de emenda constitucional, submeter tal proposta ao povo por meio de referendo. Pois sob a ótica liberal, o poder exercido pelo povo é caracterizado pelos manuais como sendo inicial, absoluto, soberano, ilimitado, incondicionado, permanente e inalienável. Dessa maneira, não é possível enxergar qualquer inconsistência na modificação ou alteração de uma cláusula pétrea, uma vez que o povo é o competente e detentor do poder de primeiro grau.

Por fim, é necessário salientar que as ideias postas aqui não têm o objetivo de por fim à discussão sobre o tema, tampouco abalar a ordem jurídica existente. As propostas colhidas, expostas e comentadas aqui têm o propósito único de encontrar formas para atualizar a carta magna conforme a vontade popular e sem precisar instituir uma nova constituição, uma vez que o processo para estabelecer uma nova assembleia constituinte é custoso e demorado de mais para a nação, além de significar um rompimento do Estado: objetivo no qual não se deseja alcançar.

 

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Data da conclusão/última revisão: 17/10/2019

 

Como citar o texto:

FRANÇA, Ancelmo Melo de; SILVA, Rubens Alves da..Cláusulas pétreas e suas possibilidades de alteração. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 1664. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/4608/clausulas-petreas-possibilidades-alteracao. Acesso em 5 nov. 2019.

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