Dissemos noutro lugar: “Em nossa concisa olhadela, notamos que a Emenda possui um pequeno erro de redação. No artigo 102, III, d, aponta que compete ao Supremo julgar válida lei local contestada em face de lei federal. Fica claro, deve-se ler “contestada em face da Constituição Federal”. Antes competia ao Supremo, em Recurso Extraordinário, “julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição”. Agora compete ao Supremo “a lei local contestada em face da Constituição”, e ao STJ, em Recurso Especial, “o ato de governo local contestado em face de lei federal”.

Aparentemente, trata-se de questão de pouco interesse prático, até um tanto bizantina, mas não é. Não é nossa seara profissional, mas curiosos e enxeridos que somos, e com tempo disponível, resolvemos enfrentar o desafio.

Chegamos àquela conclusão tendo em vista que no texto original da Carta de 1988 competia ao Supremo Tribunal Federal julgar em Recurso Extraordinário a validade de lei local e o ato de governo local contestados frente à Constituição. Era do alcance do Superior Tribunal de Justiça, a lei local e o ato de governo local contestados frente à lei federal.

Com a nova redação imposta pela Emenda Constitucional número 45, cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar, em grau de Recurso Extraordinário, “a lei local frente à lei federal” e ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em Recurso Especial, o “ato de governo local contestado frente à lei federal”. Portanto, pensamos, a partir de agora, quem é competente para julgar o recurso do acórdão que concluir pela validade de lei local contestada frente à Constituição? Por isso, no ensaio que escrevemos, dissemos que havia um erro de redação na novel Emenda.

Contudo, ouvimos opiniões no sentido da inexistência de qualquer erro. Na verdade, a mudança da Emenda 45 consistiria, justamente, em retirar da competência recursal do Supremo “o ato de governo local bem como a lei local contestados frente à Constituição.” Mais ainda, se tais atos ou leis não foram secionados da alçada da Corte Maior pela Reforma do Judiciário, pode-se entender a abrangência de ambos pelo artigo 102, III alínea “a” ( Compete ao STF julgar, mediante Recurso Extraordinário, as causas decididas em única ou última instância quando a decisão recorrida contrariar dispositivo desta Constituição). Logo, se a lei ou ato de governo local foram julgados válidos e contestados em face da Constituição, isso implica em ato ou lei de governo local que contraria dispositivo da Constituição (artigo 102, III, a). Ou seja, a redação da Emenda 45 extirpou uma alínea de nenhuma valia prática.

Observe-se que o texto da Emenda 45, no que tange ao R.E., é quase como a volta do antigo Recurso Extraordinário que atingia matéria da Lei Maior e de Lei Federal, antes da criação do Superior Tribunal de Justiça, ainda na égide da Carta de 67.

De fato, conta Raul Armando Mendes sob a Constituição de 1967, o artigo 119 tinha o seguinte texto, com alteração da EC n. 1/69:

Artigo 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal:

(...)

III- julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal; d) der à lei federal interpretação divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal” (texto transcrito de acordo com a emenda constitucional 7/7)”. -( grifei).

Raul Armando Mendes , citando Castro Nunes, lecionava : “a controvérsia aí pressuposta é sobre a validade de lei ou ato local em face de direito objetivo da União”. Assim, “se a Justiça local aplica lei local ou mantém o ato impugnado pondo de lado a norma federal, resolve contra esta a incompatibilidade controvertida, abrindo-se então a via extraordinária”.Finalmente: “Ensejará sempre o recurso extraordinário quando a controvérsia disser respeito à validade de lei ou ato local em face da Constituição Federal ou da lei federal, pois aí se configura a questão federal”. Na Carta atual, exemplo é questionar-se a validade de o Município legislar sobre proteção do meio ambiente e controle de poluição (Informativo 347 do STF).

Antigamente, anotou o eminente Theothônio Negrão :“o cabimento do Recurso Especial com fundamento na alínea b do artigo 105, III da CF, supõe que a impugnação à lei local não envolva sua inconstitucionalidade, mas simples incompatibilidade com a lei ordinária federal. E isso porque no sistema federativo consagrado pela Constituição, havendo possibilidade de legislação concorrente e cabendo à União estabelecer normas gerais, as leis estaduais, editadas no exercício da competência suplementar, haverão de se conformar àquelas diretrizes gerais. Assim, ainda agindo União e Estado nas respectivas esferas de competência, poderá ser inválida a lei estadual, em virtude de descompasso com a lei federal, verificada a hipótese do artigo 24 da Constituição” ( RSTJ 50/328). Mais adiante dispôs : “É preciso que a contestação seja relevante para ensejar o processamento do apelo extremo, quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face da Constituição Federal”. ( RTJ 136/373).(grifei)

 

Confira-se ainda outra anotação de Theotônio Negrão : “Fundamentação errônea. Se o recurso extraordinário é interposto sob invocação da letra ‘c’ do preceito constitucional, pode ser conhecido com base na letra ‘a’, embora não invocada, desde que atendidos os pressupostos constitucionais por esta exigidos”. ( STF-Pleno, RE 78.353-9, ES, rel. Min. Aldir Passarinho, j.23.11.82, conhecido por maioria de votos, vencido o relator, e provido, v.u., DJU 24.6.83, pg 9474, 1ª col, em).

Em sentido contrário: “Esta corte, em recurso extraordinário, examina a questão jurídica nele posta em face do dispositivo constitucional por ele tido por violado. Se houver equívoco na sua indicação, e se invocar outro dispositivo que não o que se pretende ofendido, há aplicação-como bem salientou o parecer da Procuradoria-Geral da República- da Súmula 284”. ( RTJ 141/1015) .

Veja-se, porém, recentíssimo trecho de Voto proferido pela excelsa Ministra Ellen Gracie no AI 375011, AgR/RS :

“Já manifestei, em ocasiões anteriores, minha preocupação com requisitos processuais que acabam por obstaculizar, no âmbito da própria Corte, a aplicação aos casos concretos dos precedentes que declaram a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de normas. Ao votar, na Primeira Turma no RE 222.874-AgR-ED, de que fui relatora, expressei-me da seguinte forma:

Entendo que este Supremo Tribunal deve evitar a adoção de soluções divergentes, principalmente em relação a matérias exaustivamente discutidas por seu Plenário. Manifestei esta posição no julgamento da Ação Rescisória 1.713, de que fui relatora (Plenário, unânime, DJ 19/12/2003):

‘Sobre a rescisória ajuizada com base no art. 485, V do CPC, quando em jogo a violação de dispositivo constitucional, asseverou o eminente Ministro Gilmar Mendes ao proferir seu voto no RE 235.794-AgR, que ‘a manutenção de soluções divergentes, em instâncias inferiores, sobre o mesmo tema, provocaria, além da desconsideração do próprio conteúdo da decisão desta Corte, última intérprete do texto constitucional, a fragilização da força normativa da Constituição.’ No presente caso, da mesma forma, a manutenção da decisão proferida por esta Corte, permitindo a majoração de alíquotas do FINSOCIAL recolhido por empresa seguradora, fragilizaria a força normativa dos art. 195 da CF e 56 do ADCT.’

A adoção no âmbito desta Corte de decisões contraditórias compromete a segurança jurídica, porque provoca nos jurisdicionados inaceitável dúvida quanto à adequada interpretação da matéria submetida a esta Suprema Corte.”

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, em recentes julgamentos, vem dando mostras de que o papel do recurso extraordinário na jurisdição constitucional está em processo de redefinição, de modo a conferir maior efetividade às decisões.

Recordo a discussão que se travou na Medida Cautelar no RE 376.852, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes (Plenário, por maioria, DJ de 27.03.2003). Naquela ocasião, asseverou Sua Excelência o caráter objetivo que a evolução legislativa vem emprestando ao recurso extraordinário, como medida racionalizadora de efetiva prestação jurisdicional.

Registro também importante decisão tomada no RE 298.694, rel. Min. Pertence, por maioria, DJ 23/4/2004, quando o Plenário desta Casa, a par de alterar antiga orientação quanto ao juízo de admissibilidade e de mérito do apelo extremo interposto pela alínea “a” do permissivo constitucional, reconheceu a possibilidade de um recurso extraordinário ser julgado com base em fundamento diverso daquele em que se lastreou a Corte a quo.

Esses julgados, segundo entendo, constituem um primeiro passo para a flexibilização do prequestionamento nos processos cujo tema de fundo foi definido pela composição plenária desta Suprema Corte, com o fim de impedir a adoção de soluções diferentes em relação à decisão colegiada. É preciso valorizar a última palavra – em questões de direito – proferida por esta Casa.

Destaco, outrossim, que o RE 251.238 foi provido para se julgar procedente ação direta de inconstitucionalidade da competência originária do Tribunal de Justiça estadual, processo que, como se sabe, tem caráter objetivo, abstrato e efeitos erga omnes. Esta decisão, por força do art. 101 do RISTF, deve ser imediatamente aplicada aos casos análogos submetidos à Turma ou ao Plenário. É essa a orientação firmada pela 1ª Turma desta Casa no RE 323.526, rel. Min. Sepúlveda Pertence, unânime, DJ 31/5/2002, resumido na seguinte ementa:

Declaração, pelo Plenário do STF, no julgamento do RE 251.238-RS (red. para acórdão Nelson Jobim, 7.11.2001, Inf. 249), de inconstitucionalidade do art. 7º e parágrafos da L. 7.428/94, com a redação dada pela L. 7.539/94, do Município de Porto Alegre, que previam o reajuste automático bimestral dos vencimentos dos servidores municipais pela variação do índice de entidade particular (ICV-DIEESE).

Aplicação do art. 101 RISTF, a teor do qual - salvo proposta de revisão por qualquer dos Ministros - a declaração plenária de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei será de logo aplicada aos novos feitos submetidos à Turma ou ao Plenário: recurso extraordinário do Município conhecido e provido.”(Informativo 365 do STF) (sublinhei).

Veja-se, agora, moderno e esclarecedor excerto de Voto do Ministro Gilmar Mendes no RE 395662 AgR/RS ( informativo 344 do STF). Trata-se de dois Recursos Extraordinários em que se sustentou violação aos artigos 5º, II, XXXV, XXXVI, LIV e LV e art. 93, IX, da Constituição Federal. De acordo com o corpo do acórdão, o Ministro Carlos Velloso negou seguimento aos recursos, sob os seguintes fundamentos :

Os recursos extraordinários não têm viabilidade. A uma, porque, quanto ao art. 5º, II, da Constituição, não se pode negar ao Judiciário o poder-dever de interpretar a lei, para fazer valer a sua vontade concreta. Se o Judiciário, nessa operação, interpreta a lei de forma razoável ou até desarrazoada, a questão continua sendo de legalidade, que se esgota no contencioso infraconstitucional e que, por isso mesmo, não autoriza o recurso extraordinário. A duas, dado que a alegação de ofensa ao princípio do devido processo legal não prescinde do exame da matéria sob o ponto de vista processual. Assim, se ofensa tivesse havido ao princípio - C.F., art. 5º, LIV e LV - seria ela indireta, reflexa, o que não autoriza a admissão do recurso extraordinário. A três, porque a alegação de ofensa aos arts. 5º, XXXV, e 93, IX, da C.F., perde-se no vazio, dado que o acórdão está razoavelmente fundamentado, sendo ainda certo que não há falar em negativa de jurisdição se o acórdão decide de forma contrária aos interesses da parte. Finalmente, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada encontram proteção em dois níveis: em nível infraconstitucional, na Lei de Introdução ao Cód. Civil, art. 6º, e em nível constitucional, art. 5º, XXXVI, C.F. Todavia, o conceito de tais institutos não se encontra na Constituição, art. 5º, XXXVI, mas na lei ordinária, art. 6º da LICC. Assim, a decisão que dá pela ocorrência, ou não, no caso concreto, de tais institutos, situa-se no contencioso de direito comum, que não autoriza a admissão do RE.

Do exposto, nego seguimento aos recursos (arts. 557, caput, do C.P.C., 38 da Lei 8.038/90 e 21, § 1º, do R.I./S.T.F.)”. (sublinhei)

 

Quando analisou os fundamentos dos recorrentes, (Há violação ao princípio da legalidade no momento em que não respeitada a lei proveniente do poder legislativo que não exige o que o intérprete da lei está a exigir) o Ministro Gilmar Mendes aduziu:

“Princípio da legalidade: supremacia e reserva legal

A Constituição Federal de 1988 estabelece ser admissível recurso extraordinário quando a decisão recorrida contrariar algum de seus dispositivos, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face do texto constitucional.

Assim, ao contrário do que se verifica em outras ordens constitucionais, que limitam, muitas vezes, o recurso constitucional aos casos de afronta aos direitos fundamentais, optou o constituinte brasileiro por admitir o cabimento do recurso extraordinário contra qualquer decisão que, em única ou última instância, contrariar a Constituição.

Portanto, a admissibilidade do recurso constitucional não está limitada, em tese, a determinados parâmetros constitucionais, como é o caso da Verfassungsbeschwerde na Alemanha (Lei Fundamental, art. 93, n. 4a), destinada, basicamente, à defesa dos direitos fundamentais.

Assinale-se, porém, que, mesmo nos sistemas que admitem o recurso constitucional apenas com base na alegação de ofensa aos direitos fundamentais, surgem mecanismos ou técnicas que acabam por estabelecer uma ponte entre os direitos fundamentais e todo o sistema constitucional, reconhecendo-se que a lei ou ato normativo que afronta determinada disposição do direito constitucional objetivo ofende, ipso jure, os direitos individuais, seja no que se refere à liberdade de ação, seja no que diz respeito ao princípio da reserva legal.

A Corte Constitucional alemã apreciou pela primeira vez a questão no chamado Elfes-Urteil, de 16.1.1957, deixando assente que uma norma jurídica lesa a liberdade de ação (Handlungsfreiheit) se contraria disposições ou princípios constitucionais, tanto no que se refere ao aspecto formal quanto no que diz respeito ao aspecto material (BverfGE 6, 32 (36 s.; 41).

No referido julgado explicitou a corte Constitucional alemã orientação que seria repetida e aperfeiçoada em decisões posteriores: “De tudo o que se afirmou, resulta que uma norma jurídica somente pode restringir, eficazmente, o âmbito da liberdade individual (allgemeine Handlungsfreiheit) se corresponder às exigências estabelecidas pela ordem constitucional. Do prisma processual, significa dizer: todos podem sustentar, na via do recurso constitucional, que uma lei que estabelece restrição à liberdade individual não integra a ordem constitucional, porque afronta, formal ou materialmente, disposições ou princípios constitucionais; (...)” (LF, art. 2, I) (BverfGE 6,32 (33)).

Tal como assinalado, essa decisão permitiu que o Bundesverfassungsgericht apreciasse, na via excepcional da Verfassungsbeschwerde (recurso constitucional), a alegação de afronta não apenas aos direitos fundamentais, mas a qualquer norma ou princípio constitucional.

É que, como observa Hans-Jürgen Papier, qualquer inconstitucionalidade de lei restritiva de direito configura, também, afronta aos direitos fundamentais: “O significado dos direitos fundamentais nos termos da Lei Fundamental não se limita mais exclusivamente a garantir a legalidade (Gesetzmässigkeit) das restrições impostas à liberdade individual pelo Executivo e pelo Judiciário. Mediante a vinculação do Poder Legislativo aos direitos fundamentais não se suprime, mas se reforça e se completa a função de proteção dos direitos fundamentais. Administração e Justiça necessitam para a intervenção nos direitos fundamentais de uma dupla autorização: Além da autorização legal (gesetzliche Ermächtigung) para a intervenção, deve-se exigir também uma autorização constitucional para a limitação dos direitos fundamentais. Se os direitos fundamentais da Lei Fundamental não se exaurem na legalidade do segundo e do terceiro Poder, surge, ao lado da reserva legal, a idéia de uma reserva da Constituição. Então afigura-se lícito admitir que, de uma perspectiva jurídico-material, os direitos fundamentais protegem contra restrições ilegais ou contra limitações sem fundamento legal levadas a efeito pelo Poder Executivo ou pelo Poder Judiciário. A legalidade da restrição ao direito de liberdade é uma condição de sua constitucionalidade; a violação à lei constitui uma afronta aos próprios direitos fundamentais (Die Gesetzmässigkeit des Freiheitseingriffs ist eine Bedingungseiner Verfassunmässigkeit, sein Gesetzesverstoss ist auf ieden Fall Grundrecht, svestoss) (PAPIER, Hans-Jürgen. “Spezifisches Verfassungsrecht’ und ‘Einfaches Recht’ als Argumentationsformal des Bundesverfassungsgerichts”, in Bundesverfassungsgericht un Gundgesetz, Tübingen, 1976, vol. I, p. 432 (433-434)).

Orientação semelhante é enfatizada por Klaus Schlaich, ressaltando que também a incompatibilidade entre as normas regulamentares e a lei formal enseja a interposição de recurso constitucional sob alegação de afronta a um direito geral de liberdade (SCHLAICH, Klaus. Das Bundesverfassungsgericht, Munique, 1985, p. 108).

Tal como enunciado por Pestalozza (PESTALOZZA, Christian. Verfassungsprozessrecht, 2ª ed., Munique, 1982, pp. 105-106), configuram-se hipóteses de afronta ao direito geral de liberdade (Lei Fundamental, art. 2, I) ou a outra garantia constitucional expressa:

? a não observância pelo regulamento dos limites estabelecidos em lei (Lei Fundamental, art. 80, I)(BverfGE 41, 88 (116); 42, 374 (385));

? a lei promulgada com inobservância das regras constitucionais de competência (BverfGE 38, 288 (298 s.); 40, 56 (60), 42, 20 (27));

? a lei que estabelece restrições incompatíveis com o princípio da proporcionalidade (BverfGE 38, 288 (298)).

Embora essa orientação pudesse suscitar alguma dúvida, especialmente no que se refere à conversão da relação lei/regulamento numa questão constitucional, é certo que tal entendimento parece ser o único adequado a evitar a flexibilização do princípio da legalidade, tanto sob a forma de postulado da supremacia da lei, quanto sob a modalidade de princípio da reserva legal.

Do contrário, restaria praticamente esvaziado o significado do princípio da legalidade, enquanto princípio constitucional em relação à atividade regulamentar do Executivo. De fato, a Corte Constitucional estaria impedida de conhecer eventual alegação de afronta, sob o argumento da falta uma ofensa direta à Constituição. Especialmente no que diz respeito aos direitos individuais, não há como deixar de reconhecer que a legalidade da restrição aos direitos de liberdade é uma condição de sua constitucionalidade.

Não há dúvida, igualmente, de que esse entendimento aplica-se integralmente ao nosso modelo constitucional, que consagra não apenas a legalidade como princípio fundamental (art. 5o, II), mas exige também que os regulamentos observem os limites estabelecidos pela lei (CF, art. 84, IV).

Decisão judicial sem base legal (ou fundada em uma falsa base legal) e Recurso Constitucional

Problema igualmente relevante coloca-se em relação às decisões de única ou de última instância que, por falta de fundamento legal, acabam por lesar relevantes princípios da ordem constitucional.

Uma decisão judicial que, sem fundamento legal, afete situação individual revela-se igualmente contrária à ordem constitucional, pelo menos ao direito subsidiário da liberdade de ação (Auffanggrundrecht) (SCHLAICH. Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 108).

Se se admite, como expressamente estabelecido na Constituição, que os direitos fundamentais vinculam todos os poderes e que a decisão judicial deve observar a constituição e a lei, não é difícil compreender que a decisão judicial que se revele desprovida de base legal afronta algum direito individual específico, pelo menos o princípio da legalidade.

A propósito, assinalou a Corte Constitucional alemã: “Na interpretação do direito ordinário, especialmente dos conceitos gerais indeterminados (Generalklausel) devem os tribunais levar em conta os parâmetros fixados na Lei Fundamental. Se o tribunal não observa esses parâmetros, então ele acaba por ferir a norma fundamental que deixou de observar; nesse caso, o julgado deve ser cassado no processo de recurso constitucional” (Verfassungsbeschwerde) (BverfGE 7, 198 (207); 12, 113 (124); 13, 318 (325) (BverfGE 18, 85 (92 s.); cf., também, ZUCK, Rüdiger. Das Recht der Verfassungsbeschwerde, 2ª ed., Munique, 1988, p. 220).

Não há dúvida de que essa orientação prepara algumas dificuldades, podendo converter a Corte Constitucional em autêntico Tribunal de revisão. É que, se a lei deve ser aferida em face de toda a Constituição, as decisões hão de ter a sua legitimidade verificada em face da Constituição e de toda a ordem jurídica. Se se admitisse que toda decisão contrária ao direito ordinário é uma decisão inconstitucional, ter-se-ia de acolher, igualmente, todo e qualquer recurso constitucional interposto contra decisão judicial ilegal (SCHLAICH. Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 109).

Enquanto essa orientação prevalece em relação à leis inconstitucionais, não se adota o mesmo entendimento no que concerne às decisões judiciais.

Por essas razões, procura o Tribunal formular um critério que limita a impugnação das decisões judiciais mediante recurso constitucional. Sua admissibilidade dependeria, fundamentalmente, da demonstração de que, na interpretação e aplicação do direito, o Juiz desconsiderou por completo ou essencialmente a influência dos direitos fundamentais, que a decisão se revela grosseira e manifestamente arbitrária na interpretação e aplicação do direito ordinário ou, ainda, que se ultrapassaram os limites da construção jurisprudencial (Cf., sobre o assunto, SCHLAICH. Das Bundesverfassungsgericht, cit., p. 109). Não raras vezes, observa a Corte Constitucional que determinada decisão judicial afigura-se insustentável, porque assente numa interpretação objetivamente arbitrária da norma legal (Sie beruth vielmehr auf schlechthin unhaltbarer und damit objektiv willkürlicher Auslegung der angewenderen Norm) (BverfGE 64, 389 (394)).

Assim, uma decisão que, v.g., amplia o sentido de um texto normativo penal para abranger uma dada conduta é considerada inconstitucional, por afronta ao princípio do nullum crimen nulla poena sine lege (LF, art. 103, II).

Essa concepção da Corte Constitucional levou à formulação de uma teoria sobre os graus ou sobre a intensidade da restrição imposta aos direitos fundamentais (Stufentheorie), que admite uma aferição de constitucionalidade tanto mais intensa quanto maior for o grau de intervenção no âmbito de proteção dos direitos fundamentais (ZUCK, Rüdiger. Das Recht der Verfassungsbeschwerd, 2a ed., Munique, 1968, p. 221).

Embora o modelo de controle de constitucionalidade exercido pelo Bundesverfassungsgericht revele especificidades decorrentes sobretudo do sistema concentrado, é certo que a idéia de que a não-observância do direito ordinário pode configurar uma afronta ao próprio direito constitucional tem aplicação também entre nós.

Essa conclusão revela-se tanto mais plausível se se considera que, tal como a Administração, o Poder Judiciário está vinculado à Constituição e às leis (CF, art. 5o, § 1o).

Por isso não se pode banalizar a invocação de suposta aplicação de direito infraconstitucional como forma de evitar o conhecimento da questão em sede extraordinária.

Na espécie, porém, não se faz mister aprofundar a discursão a propósito de lesão ao princípio da legalidade. É que, parece devidamente questionada a lesão ao princípio da prestação jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV)”. (sublinhei).

No sentido “clássico”, contrário ao controle de lei infraconstitucional pelo Supremo, em grau de Recurso Extraordinário, Parecer da Procuradoria da República proferido no RE 407190/RS, relator Ministro Marco Aurélio (Informativo 368)

“A Procuradoria Geral da República, no parecer de folha 172, preconiza o não-conhecimento do recurso. Refere-se ao parecer exarado no Recurso Extraordinário nº 399.705, assim resumido (folha 173):

Recurso extraordinário. Questões de índole infraconstitucional. Não conhecimento. No mérito. Matéria reservada à lei complementar não pode ser regulada por lei ordinária. Improvimento do apelo.

1 - “...é pacífica a jurisprudência do S.T.F., no sentido de não admitir em R.E., alegação de ofensa indireta à C.F., por má interpretação e/ou aplicação e mesmo inobservância de normas infraconstitucionais.”

2 - Determina o art. 106, II, c, do Código Tributário Nacional, que a aplicação retroativa da norma mais benéfica sempre que resultar em redução da penalidade cominada. O art. 35 da Lei nº 8.212/91, modificado pela Lei nº 9.528/97, por sua vez, restringe a aludida retroatividade benigna, com a expressão “a partir de 1º de abril de 1997”. A limitação assim posta fere o sistema constitucional, por se tratar de regra sobre matéria reservada à Lei Complementar, não podendo ser modificada mediante Lei Ordinária.

3 - Recurso que não comporta conhecimento. No mérito, pelo improvimento.” (sublinhei)

 

Portanto, partindo dos ensinamentos dos excelsos Ministros Gilmar Mendes e Ellen Gracie, ao que tudo indica ,com a nova redação conferida à Emenda Constitucional 45, o ato de governo local e a lei local cujas validades são contestados frente à Constituição Federal estão abrangidos pelo artigo 102, III, “a”. A lei local contestada frente à lei federal também compete ao Supremo. Para o STJ, restou julgar em Recurso Especial a validade do “ato de governo local frente à lei federal”.

O Supremo é o guardião da Constituição. Nos parece que o ingresso na análise da validade de legislação infra-constitucional, acaba atingindo competência do Superior Tribunal de Justiça. Atente-se que o artigo 105, III, “a” refere competir ao STJ o julgamento do Recurso Especial, nas hipóteses que menciona, quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal. Como fica esse dispositivo agora? Devemos entendê-lo “salvo em se tratando de lei local cuja validade é contestada frente à lei federal, quando a competência é do STF?” Isso nos parece mais complicado que admitir um pequeno erro de redação.

Por isso, como escrevemos antes, até um pouco açodadamente, a redação que aparenta mais escorreita é “competir ao Supremo a decisão recorrida que julgar válida lei local contestada em face da Constituição Federal”. Daí podemos crer que o “ato de governo local contestado frente à Constituição Federal” é, a partir de então, com respaldo nos precedentes citados, abrangido pelo mencionado artigo 102, III , “a”.

Contudo, se usarmos o raciocínio acima, grosso modo, o que antes era alínea “c” agora é alínea “a”, no Recurso Extraordinário, mas, a “lei local contestada em face da lei federal” não teria que estar,também, na alçada do artigo 105, III, “a”, ou seja, aquilo que a Emenda disse competir ao Pretório Excelso não competiria analogicamente ao Superior Tribunal de Justiça?

De modo que ainda não estamos plenamente convencidos da inexistência do erro de redação. Pensar diferente é transformar o Supremo Tribunal Federal em Corte de controle constitucional e Corte de controle infraconstitucional, afastando-o do comando de guardião da Constituição, o que na escola, digamos clássica, acima esposada pelo eminente Ministro Carlos Velloso, é inviável.

Talvez seja até possível dizer que a Emenda 45 é inconstitucional, nesse ponto, a teor do artigo 102 ,cabeça, o qual menciona peremptoriamente competir ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição” e a teor do artigo 105, III, “a” para quem compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência.

No atual direito constitucional brasileiro, se o Supremo puder declarar a validade de uma lei local frente a uma lei federal, retrocedemos à vigência da Carta de 1967. Hoje existe o Superior Tribunal de Justiça. Se não houve o erro de redação, a Emenda 45 acabou transformando o Supremo também em guardião da lei federal,em controle difuso de constitucionalidade, que em termos concretos, não se alega ofensa à Constituição.

(Elaborado em abril/2005)

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Como citar o texto:

Hélder B. Paulo de Oliveira.Competências do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça ,em grau de recurso, diante da Emenda Constitucional 45. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 122. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-constitucional/561/competencias-supremo-superior-tribunal-justica-grau-recurso-diante-emenda-constitucional-45. Acesso em 12 abr. 2005.

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