A exibição de imagens de crianças, adolescentes e até bebês sofrendo toda a sorte de sevícias, especialmente de cunho sexual, chocou muitos participantes brasileiros de redes de relacionamento na Internet, como o Orkut. Mas, nem de longe, a questão da divulgação e publicação de pornografia infantil na rede mundial de computadores na rede mundial de computadores é nova: desde a sua popularização no mundo todo, na década de 80, milhares de páginas com este tipo de conteúdo foram criadas e ainda mantém os seus negócios ilícitos na Internet, aproveitando-se de brechas nas legislações, especialmente a brasileira, que até 1990, ano que marcou a vigência do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente - lei 8.069/90) não dispunha de qualquer regulamentação legal sobre o assunto.

Ocorre que, após o dispositivo legal, a pena prevista no artigo 241 (atualizado pela lei nº 10.764/03), que ampliou o rol de verbos típicos (apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente), passou de 1 a 4 anos para 2 a 6 anos e multa, com a qualificadora prevista no § 2º, incisos I e II, que a aumentou para 3 a 8 anos de reclusão (se o agente comete o crime prevalecendo-se do exercício de cargo ou função ou se comete o crime com o fim de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial).

No entanto, efeito contrário ao intencionado surgiu: páginas com tal conteúdo que estavam hospedadas ilegalmente em portais e hotpages brasileiros migraram para outras partes do mundo, que ainda não possuem legislação específica para esse fim, como ocorre na Rússia (2° lugar na classificação efetuada pela Arcobaleno, entidade italiana de combate à pornografia infantil na Internet, em 2003).

Segundo essa classificação, os Estados Unidos ainda ocupam o 1º lugar (principalmente pelas medidas de não-intervenção no tráfego de informações no ambiente virtual) com 4.480 websites desse teor. O Brasil, graças à repressão do artigo 241, deixou a 1º posição e caiu para o 10º lugar, entre 32 países, ainda mantendo 47 dessas páginas, em 2003. Uma queda considerável para apenas um ano, mas que denota a substituição dos portais brasileiros, cada vez mais cooperativos com as autoridades judiciárias (como o acordo feito entre vários portais nacionais e o Ministério Público Federal, em 10 de novembro de 2005), por outros livres de qualquer tipo de investigação e punição.

De acordo com o artigo 70, § 2º do Código de Processo Penal, se a consumação do ato criminoso se der fora do Brasil, a competência se dará pelo último ato de execução realizado em território nacional. A questão é que, na maioria das vezes, como o Brasil deixou de ser um país receptivo para essa modalidade de crime, ainda que muito tenha a melhorar, os criadores de tais páginas preferem simplesmente abrigá-las diretamente nos provedores estrangeiros, não ocorrendo assim qualquer etapa de execução do crime no país (ainda que as vítimas sejam brasileiras, o que ocorre, quando muito, são os atos preparatórios, não puníveis na nossa legislação).

Note-se que o comércio de tais imagens, muitas vezes utilizando crianças de tenra idade em representações pornográficas com adultos ou entre elas, inclusive com a captura de imagens de sexo explícito, chega a valer US$6.000 no chamado “mercado negro”! Esse tipo de empreendimento, tal como o tráfico de entorpecentes, de seres humanos ou órgãos, é responsável pela movimentação de milhões de dólares anualmente. Este é um dos motivos da ineficiência de legislações esparsas no combate a esse tipo de comércio mundial.

O procurador da República e coordenador do Grupo de Combate aos Crimes Cibernéticos do Ministério Público Federal em São Paulo, Sérgio Suiama, relatou em entrevista concedida ao site “IDG Now”, o que são os paraísos cibernéticos utilizados pelos criminosos na divulgação das imagens pornográficas infantis:

São lugares que hospedam e protegem estes sites criminosos de acesso a seus dados. Um exemplo disso é uma ilha chamada Tokelau, que tem 10.800 km ²e mais sites hospedados do que muitos países da Europa. O sujeito hospeda a sua página .tk, paga com cartão de crédito e tem a garantia de que não vai ser perturbado. Um grande problema que enfrentamos hoje é a internet ser um sistema anárquico e transacional”.

São, portanto, ilhas sem controle de fluxo informacional, que, mediante pagamento para acesso e disponibilidade, buscam assegurar a livre divulgação de conteúdo, sem sequer verificar a sua legalidade ou procedência. Assim, é absolutamente insatisfatória uma legislação brasileira combativa, quando não há similar ou equivalente em outros espaços territoriais potencialmente atrativos para esse tipo de criminoso, como era o Brasil até há pouco tempo.

Segundo Luciana Boiteux, em seu artigo “Crimes Informáticos: reflexões sobre política criminal inseridas no contexto internacional atual”, publicado na RBCCRIM (edição 47, ano: 2004):

... para tornar eficazes as investigações nesse campo, faz-se necessária a previsão legal de procedimentos específicos de busca e apreensão, coleta, congelamento e interceptação de dados de computadores, assim como a busca no ambiente em rede de sistemas”.

Devido ao pouco espaço, somente algumas sugestões apontadas por especialistas na área serão abordadas, notando que o tema é extremamente complexo e possui vários outros desdobramentos, como a questão da não

punibilidade do consumidor de material pornográfico infantil, que só detenha a sua posse, beneficiado pelo esquecimento do legislador sobre esse assunto, no já citado artigo 241, dentre outros, que não são objetos de nossa discussão.

Diferentemente da maioria dos estudiosos sobre o assunto, acredito que as mensagens contendo tais arquivos, enviadas via e-mail, mereçam também ser alvo de investigação criminal ou instrução processual penal, pois, se prevista constitucionalmente (artigo 5º, XII) a hipótese de quebra de sigilo de correspondência, telegráfico, de dados e telefônico, de tal sorte deverá a comunicação efetuada via correio eletrônico, por intermédio de internet discada (ou seja, através da utilização de uma linha telefônica) ou por banda larga (contratada através de servidores de acesso ilimitado), também ser analisada, desde que se submeta às exigências do inciso acima citado, a saber, ordem judicial e indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal.

Ouso concordar também que, apesar da relutância dos que se encaminham em sentido contrário, o e-mail é um importante meio de disseminação, divulgação de tal material e, conseqüentemente, publicação do crime previsto no 241 (ou seja, tornar público o acesso), já que a publicidade referente aos arquivos enviados a um certo número de destinatários poderá ser ampliada pela possibilidade desses que a receberam também encaminhá-las (como ocorre com as correntes, spams e vírus, por exemplo), o que certamente aumentará em muito a circulação de tais imagens, tornando-as conhecidas. Esse também é o entendimento compartilhado no RE. 617.221-RJ (2003/0210233-5, relator: Min. Gilson Dipp):

V. Hipótese em que o Tribunal a quo afastou a tipicidade da conduta dos réus, sob o fundamento de que o ato de divulgar não é sinônimo de publicar, pois “nem todo aquele que divulga, publica”, entendendo que os réus divulgavam o material, “de forma restrita, em comunicação pessoal, utilizando a internet”, concluindo que não estariam, desta forma, publicando as imagens.

VI. Se os recorridos trocaram fotos pornográficas envolvendo crianças e adolescentes através da internet, resta caracterizada a conduta descrita no tipo penal previsto no artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que permitiram a difusão da imagem para um número indeterminado de pessoas, tornando-as públicas, portanto”. (grifo nosso)

Importante se faz também, além do reaparelhamento estatal contra essa modalidade de crime informático, é a assinatura de tratados, acordos e convenções internacionais de colaboração recíproca, envolvendo vários países, de modo a se formar uma espécie de rede de contatos, para que se possibilite a efetiva identificação do criminoso virtual e a posterior instauração do processo competente, seguindo critérios de fixação de competência territorial, de distribuição ou de prevenção, conforme estabelecido contratualmente entre as partes acordantes.Também é necessária a rápida adaptação dos operadores do Direito brasileiro para que possam identificar e lidar com essa nova realidade, de consumo e comércio desenfreado de material pornográfico envolvendo crianças, adolescentes e até mesmo montagens realizadas com o auxílio de programas de computador, com o propósito de dificultar as investigações (como o Photoshop).

Outra medida essencial ao combate da pornografia infantil na rede é a inclusão deste crime dentre os elencados na lei 9.034/95, visto que se trata de clara organização criminosa desenvolvida com propósito de lucro decorrente de sistema estruturado em atividades ilícitas seqüenciais, como a seleção e convencimento fraudulento das vítimas (quando não coagidas, mediante violência ou ameaça de mal injusto e grave), a produção das imagens, a veiculação delas na rede mundial de computadores e a busca por recursos que financiem a organização, como os recursos decorrentes das vendas do material, efetuadas geralmente por cartão de crédito aos consumidores interessados, o que não é possível de ser concretizado por um único indivíduo.

Por fim, é absolutamente indispensável a atualização instrumental dos órgãos públicos, mediante cursos de capacitação para os seus operadores e equipamentos de última geração, que possibilitem a coleta de dados e imagens, mediante a colaboração dos provedores e portais dos países assinantes dos tratados (que se responsabilizariam, nessa situação hipotética, pela prévia verificação do conteúdo a ser veiculado, passariam a exigir a identificação de seus usuários, como a utilização obrigatória de RG ou CPF para acesso à rede e forneceriam material de prova para a instauração de processos criminais), responsabilizando-se penalmente pelo descumprimento de tais obrigações assumidas.

Enfim, em esforço comum entre autoridades brasileiras e estrangeiras, entidades e organizações de combate ao crime exposto e a colaboração essencial da própria população, no sentido de denunciar, com fundadas suspeitas ou meros indícios da prática de tal crime (e aqui se aplicariam as vedações contidas na lei 9.034/95 aos condenados por esse delito e os benefícios nela previstos aos informantes e testemunhas), o crime de divulgação ou publicação de imagens pornográficas infanto-juvenis, por seu caráter transnacional e transgressor dos Direitos Humanos, certamente impossível de contenção por medidas e decisões isoladas, deve ser repensado, de modo a se garantir a essas pequenas vítimas, que sofrem a constante violação de sua intimidade, imagem e honra, garantidas no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal e a cessação de uma conduta abominada pela sociedade, de um modo geral, que fere profundamente a sua base ética e moral, por isso tão chocante, mas que se revela carente de maiores cuidados por parte dos legisladores, nacionais ou estrangeiros.

(Texto artigo elaborado em janeiro de 2007)

 

Como citar o texto:

PEREIRA, Carla Toloi..Inocência roubada: a questão da disseminação de imagens pornográficas envolvendo crianças e adolescentes na internet. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 218. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-da-infancia-e-juventude/1738/inocencia-roubada-questao-disseminacao-imagens-pornograficas-envolvendo-criancas-adolescentes-internet. Acesso em 25 fev. 2007.

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