INTRODUÇÃO

 

A atual realidade das crianças e dos adolescentes brasileiros é o retrato do egoísmo social, a responsabilidade descrita e imposta ao Estado, sociedade e a família, não foi suficiente para garantir o desenvolvimento digno das crianças e dos adolescentes. Estes clamam por ajuda, ajuda esta que mesmo assegurada na Constituição Federal de 1988, não está sendo atendida pela sociedade em geral. As crianças e os adolescentes são órfãos de pai, mãe, sociedade e Estado.

Com o intuito de “adotar” estas crianças e adolescentes, a fórmula de proteção foi a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual trouxe de forma expressa os direitos fundamentais das pessoas em desenvolvimento. Tais direitos fundamentais foram considerados específicos da criança e do adolescente em razão da capacidade física e cognitiva destas. Os direitos fundamentais especiais, em parte já assegurados pelo artigo 5.º da Constituição Federal, foram repetidamente previstos no Estatuto com a finalidade de expressar a relevância e excepcionalidade própria das crianças e dos adolescentes.

Ocorre que, num Estado com tantos grupos de pessoas com prioridades garantidas pela Constituição, as minorias se tornaram maiorias, e os direitos fundamentais especiais previstos no ECA somente se tornaram possíveis de serem implementados da forma assegurada constitucionalmente, através da utilização das medidas judiciais, como a Ação Civil Público. Para tanto, nos tópicos que seguem será abordada a questão da prioridade das crianças e dos adolescentes, bem como a diferenciação dos direitos fundamentais e direitos fundamentais especiais. E por fim, após a configuração especifica de cada direito fundamental específico, observar-se-á a utilização da Ação Civil Pública como meio processual de efetivar os direitos fundamentais específicos das crianças e dos adolescentes.

A PRIORIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Antes do advento da Constituição Federal de 1988, o Estado se preocupava com a forma de concepção da família, para tanto, esta somente recebia a proteção daquele quando concebida pelo casamento, marginalizando quaisquer outras formas de uniões conjugais. Ocorre que a preocupação do Estado não estava em sincronia com os interesses da sociedade, a qual já não se importava mais com a forma em si, mas com os laços afetivos que uniam os casais. A sociedade passa a se preocupar com os membros integrantes da família, e não mais para a forma que esta é concebida. A mudança do pensamento social a respeito da família acarreta na positivação do pluralismo das entidades familiares por intermédio da atual Constituição.

A democratização do Direito prevista na Constituição Federal de 1988 alcançou a família brasileira e, consequentemente, todas as pessoas que a complementam, inclusive as crianças e adolescentes, que receberam, além dos direitos fundamentais assegurados a todos, também, direitos fundamentais próprios, como esclarece Rodrigo da Cunha Pereira (2006, p. 129) ao se referir as crianças e adolescentes: “[...]. Estes, além de detentores dos direitos fundamentais ‘gerais’ – isto é, os mesmos a que os adultos fazem jus -, têm direitos fundamentais especiais, os quais lhe são especialmente dirigidos. Garantir tais direitos significa atender ao interesse dos menores. [...].”

A justificativa para a previsão de direitos fundamentais especiais para as crianças e adolescentes, está no fato de faltarem a estas a capacidade cognitiva que é própria dos adultos. Assim, em razão da fragilidade das crianças e dos adolescentes, o Estado atribui a estes a dupla proteção, combinando direitos fundamentais gerais e específicos, pois conforme explica Maria Berenice Dias (2006, p. 57): “[...]. A maior vulnerabilidade e fragilidade dos cidadãos até os 18 anos, como pessoas em desenvolvimento, os faz destinatários de um tratamento especial. [...].”

Na verdade, parte dos direitos fundamentais assegurados no artigo 227 da Constituição Federal são os mesmos previstos em seu artigo 5.º. Todavia, essa repetição é necessária para não deixar qualquer dúvida a respeito da prioridade que as crianças e os adolescentes têm sobre os referidos direitos. A prioridade ora citada também se fundamenta na falta da maturidade das crianças e dos adolescentes, sabiamente descrita por Martha de Toledo Machado (2003, p. 119):

É ela, outrossim, que autoriza a aparente quebra do princípio da igualdade: porque são portadores de uma desigualdade inerente, intrínseca, o ordenamento confere-lhes tratamento mais abrangente como forma de equilibrar a desigualdade de fato e atingir a igualdade jurídica material e não meramente formal.

Desse modo, com a exigida prioridade absoluta são assegurados à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, os quais são implementados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n.º 8.069/1990 – “[...], microssistema que traz normas de conteúdo material e processual, de natureza civil e penal, e abriga toda a legislação que reconhece os menores como sujeitos de direito. [...].” (DIAS, 2006, p. 58).

Assim, enquanto as crianças e os adolescentes não têm discernimento adequado para gerir os atos da vida civil, o artigo 227 da Constituição Federal estabelece à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar àqueles os direitos fundamentais especiais, com o objetivo de viabilizar a construção da personalidade de forma responsável, o que lhes garante o destaque especial no ambiente familiar.

DIREITOS FUNDAMENTAIS ESPECIAIS E OS MEIOS JUDICIAIS PARA SUA PROTEÇÃO

Conforme referido acima, as crianças e os adolescentes são detentores de direitos fundamentais duplicados, ou seja, a elas são assegurados os direitos fundamentais gerais e os direitos fundamentais especiais. Os direitos fundamentais gerais são aqueles garantidos a todos indistintamente, logo, também são garantidos às crianças e aos adolescentes. Acerca dos direitos fundamentais especiais, apenas são assegurados às crianças e aos adolescentes em virtude da vulnerabilidade intrínseca.

Observa-se que os direitos fundamentais direcionados à criança e ao adolescente têm uma carga de especificidade que não corresponde aos adultos, sendo este o critério diferenciador dos direitos fundamentais gerais dos especiais, os quais têm por finalidade proporcionar o desenvolvimento da personalidade das crianças e dos adolescentes.

Todavia, por vezes, apenas garantir direitos fundamentais especiais para as crianças e os adolescentes não é suficiente, faz-se necessário, em certas situações concretizá-los mediante a utilização de medidas judiciais adequadas, pois sem as quais a tutela do interesses e direitos difusos da criança e do adolescente serve somente para vender livros.

Portanto, nos itens a seguir observados, serão examinados os direitos fundamentais especiais, com o intuito de identificá-los como tais, bem como demonstrar os meios processuais apropriados para efetivar os direitos fundamentais especiais das crianças e dos adolescentes.

DIREITO À EDUCAÇÃO

O direito à educação, embora previsto no artigo 205 da Constituição Federal como um direito de todos, abrangendo adultos, criança e adolescentes, não ilide a configuração desse direito fundamental como especial, uma vez que tal direito é indispensável para a formação da personalidade da criança e do adolescente. Para tanto, afirma-se indispensável porque será por intermédio dele que as crianças e os adolescentes se tornaram capacitados intelectualmente.

Assim, verifica-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente repetiu nos incisos dos artigos 54 e 208 alguns dos incisos do artigo 208 da Constituição Federal, no sentido de preservá-los como garantias ao direito à educação. Desse modo, é dever do Estado garantir ensino fundamental obrigatório, atendimento educacional especializado as pessoas com deficiências, bem como atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade, sem esquecer-se do ensino noturno regular e de programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando do ensino fundamental. Contudo, o Estado não é o único responsável pela educação das crianças e dos adolescentes, pois os pais ou responsáveis também têm o dever de matricular seus filhos ou pupilos na rede de ensino, conforme estabelece o artigo 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Quanto à concretização do direito à educação, de forma exemplificativa, cita-se a seguinte situação: o artigo 11, V da Lei n.º 9.394/96 estabelece que é de incumbência dos Municípios oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental. Ocorre que, alguns Municípios apenas oferecem educação infantil e ensino fundamental na cidade, o que resulta no necessário deslocamento das crianças e dos adolescentes residentes na zona rural do Município, ou seja, o transporte dessas crianças e adolescentes se faz indispensável, e tal ação é também um encargo do Município, expresso no inciso VI do citado diploma (FEIJÓ, 2006), e para efetivá-la, o ordenamento jurídico dispõe de medidas judiciais, como a Ação Civil Pública. Portanto, nesses casos, o cabimento da referida medida se presta para que o Município ofereça escolas na zona rural, quando não puder transportar os alunos para a cidade.

No entanto, conforme afirmado anteriormente, a responsabilidade pela educação não se limita apenas ao Estado, ou especificamente ao Município, mas se estende à família. Dessa forma, quando o Município oferece escolas, cabe aos pais matricularem seus filhos. Caso a escola seja distante, deve o Município oferecer o transporte escolar, realizando trajeto que atenda a maioria dos alunos. Logo, por vezes será necessário que os pais levem seus filhos até as proximidades da parada de ônibus, cumprindo desse modo, a parte que lhes cabe na responsabilidade em oferecer educação. Nesse sentido, o julgado a seguir apresenta entendimento semelhante:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRANSPORTE ESCOLAR. MUNICÍPIO DE CRISTAL. ALUNOS RESIDENTES EM ZONA RURAL. O art. 1°, § 3º, da Lei nº 8.437/92 veda a concessão de medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação. Ressentindo-se o feito, neste momento processual, de elementos suficientes a amparar o pedido liminar e levando-se em consideração que o transporte escolar é fornecido pelo município às crianças que dele necessitam, em cumprimento aos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que regulam a matéria, há necessidade, por ora, de cooperação da família, a fim de incentivar e implementar o acesso ao ensino, o que pode se dar pela condução das crianças, pelos pais ou responsáveis, até a parada de ônibus mais próxima. DECISÃO MONOCRÁTICA. RECURSO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70012962114, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 18/11/2005)

Verifica-se na decisão em comento, a falta de objeto para o ingresso de ação civil pública, uma vez que o Município oferece o transporte escolar. A final, nem sempre será possível atender a coletividade de forma plena, ocasião em que a responsabilidade dever ser dividida com a família, à qual caberá realizar ações para implementar o acesso à educação de seus filhos, ou seja, quando for necessário, deverá, de acordo com o referido julgado, levá-los até a parada de ônibus mais próxima.

A ação civil pública seria cabível contra o Município nos casos em que este limitasse o acesso efetivo da criança à escola, como exemplifica Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira (2005, p. 171): “Ex.: se uma Delegacia Regional de uma cidade mudar a escola para 7 km distante, em estrada de terra, sem linha de ônibus, em lugar perigoso, inacessível, portanto, neste caso a Ação pode ser veiculada para não mudar a escola de lugar.”

Portanto, pode-se afirmar que a omissão do Município em oferecer escola ou transporte escolar motiva o cabimento da Ação Civil Pública por se tratar de interesses individuais homogêneos. Do mesmo modo, no que diz respeito a limitação ao acesso a escola quando esta existe, também implica no cabimento da ação civil pública como meio de forçar o Município a fazer com que os alunos tenham escola próxima a sua residência, ou através de transporte possam usufruir do ensino proporcionado pelo Município.

DIREITO À SAÚDE

O direito à saúde também é considerado um direito fundamental geral e especial, entretanto, “[...], as diferenciações que, no plano constitucional, existem em relação a crianças e adolescentes, estão mais ligadas é com a conformação estrutural especial – estrito senso ou no aspecto qualitativo dela [...].” (MACHADO, 2003, p. 193). Ou seja, trata-se de direito imprescindível para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.

O direito à saúde, quando relativo à especificidade, incide desde a concepção, garantindo à saúde do nascituro, para que este possa nascer com vida, momento em que se dá o começo da personalidade. Nesse sentido, o artigo 8.º do Estatuto dispõe sobre o atendimento da gestante para a realização do pré e perinatal. Assim, nota-se, de forma clara, a prioridade que o Estado atribui às crianças e aos adolescentes, ao impor às instituições e aos empregadores o dever de proporcionarem condições adequadas para o aleitamento materno; ou, quando estabelece ao Poder Público o dever de fornecer, gratuitamente, medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação da criança e do adolescente; e determina que estabelecimentos de atendimento à saúde proporcionem condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável para acompanhar a criança e/ou adolescente nos casos de internação.

A prioridade das crianças e dos adolescentes para atendimentos hospitalares está expressa na Constituição Federal, porém, por vezes faz-se necessário, para implementar o direito à saúde, que o Ministério Público interfira junto aos hospitais firmando termos de ajustamento da forma como ocorreu nas cidades do Estado do Rio Grande dos Sul:

As Promotorias de Justiça da Infância e da Juventude e de Defesa dos Direitos Humanos de Porto Alegre, através, respectivamente, dos Doutores Luciano Dipp Muratt e Angela Salton Rotunno, firmaram quatro termos de ajustamento com o Estado do Rio Grande do Sul, o Município de Porto Alegre e os Hospitais Divina Providência, Moinhos de Ventos e Mãe de Deus, de Porto Alegre, e Regina, de Novo Hamburgo, através dos quais definiu-se que, sempre que esgotada a capacidade de leitos em UTIs na rede conveniada ao SUS, realizarão as Secretarias de Saúde a aquisição de leitos particulares, tanto neonatais quanto adultos, junto aos quatro nosocômios. O procedimento representará economia aos cofres públicos, pois os leitos serão adquiridos com preço reduzido. (CIRCULAR INFORMATIVO, 2005, p. 03).

Verifica-se no caso supra exposto, que embora o atendimento integral à saúde da criança e do adolescente esteja assegurado por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), o que garante o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, fez-se necessário utilizar-se do termo de ajustamento para cumprir direito que já estava, de modo geral, implementado pelo artigo 11 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O termo de ajustamento é considerado título executivo, portanto, uma vez não cumprido poderá ser objeto de execução.

Ocorre que, o referido termo de ajustamento era dispensável, haja vista que o Ministério Público tem legitimidade para ingressar com a Ação Civil Público contra a Administração dos Municípios envolvidos naquela situação anteriormente vislumbrada, para que estes comprem vagas em hospitais particulares, quando não houver leitos disponíveis em hospitais públicos ou conveniados ao SUS para o atendimento de crianças e de adolescentes, sujeitos de direitos, aos quais é assegurada a prioridade de atendimento conforme decisão jurisprudencial:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO À SAÚDE ASSEGURADO COM ABSOLUTA PRIORIDADE À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE. EFICÁCIA PLENA E APLICABILIDADE IMEDIATA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DEFENSORIA PÚBLICA. CONDENAÇÃO DO ESTADO. CONFUSÃO. IMPOSSIBILIDADE. 1. O direito à saúde, superdireito de matriz constitucional, há de ser assegurado, com absoluta prioridade às crianças e adolescentes e é dever do Estado (União, Estados e Municípios) como corolário do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana. Direito fundamental que é, tem eficácia plena e aplicabilidade imediata, como se infere do §1º do art. 5º da Constituição Federal. 2. Considerando que a Defensoria Pública é órgão do Estado, a condenação deste em honorários advocatícios em favor daquela resulta inadmissível por configurar confusão entre credor e devedor, causa extintiva da obrigação, conforme prevê o art. 381 do Código Civil. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO DO ESTADO, NEGARAM PROVIMENTO AO DO MUNICÍPIO E NÃO CONHECERAM DO RECURSO NECESSÁRIO. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70015892979, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 23/08/2006)

Ou seja, os dispositivos constitucionais que tratam do direito à saúde são auto-aplicáveis e de incidência imediata, tendo em vista a prevalência do direito à saúde. Assim, o Estado tem obrigação de prestar atendimento as crianças e adolescentes de forma adequada e assegurada constitucionalmente.

DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

A justificativa para a configuração do direito à convivência familiar como direito especial se fez excessivamente clara em razão dos novos contornos que envolvem a família. Atualmente, a família se tornou espaço apropriado para o desenvolvimento da personalidade de seus membros, mas principalmente das crianças e dos adolescentes, os quais necessitam dos pais ou responsáveis para auxiliá-los até o amadurecimento completo.

A família, ou a convivência familiar, significa a fruição dos laços afetivos, indispensáveis para o desenvolvimento da criança e do adolescente. Maria do Rosário Leite Cintra apud Martha de Toledo Machado (2003, p. 155) tem entendimento semelhante ao mencionado acima, quando explica que: “[...]. Realmente, a família é condição indispensável para que a vida se desenvolva, para que a alimentação seja assimilada pelo organismo e a saúde se manifeste. [...].” Ademais, é possível afirmar que os demais direitos especiais surtirão os efeitos objetivados quando a criança e o adolescente estiverem integrados à família.

É certo que a mudança ocorrida no conceito de família se deve a elevação da convivência familiar a direito fundamental descrito no artigo 227 da Constituição Federal, e implementado no Estatuto da Criança e do Adolescente com fulcro no artigo 19, o qual de forma expressa estabelece que: “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, [...].”

Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira (2005, p. 83) define família natural e substituta:

Também têm direito a convivência com sua família NATURAL: aquela formada pelos pais e seus descendentes ou um dos pais e seus descendestes (monoparental), lembrando que a ordem constitucional iguala casados e companheiros.

[...]

Família substituta é aquela adquirida por guarda, tutela ou adoção.

Assim, mesmo o Estado admitindo a família substituta apenas excepcionalmente, reconhece a importância das crianças e adolescentes desfrutarem da convivência familiar, pois, indiferentemente, se a família é natural ou substituta, as pessoas em desenvolvimento necessitam do afeto, que somente é concedido pelos familiares. Portanto, o vínculo afetivo, certamente, é o “fermento” para o sadio desenvolvimento da criança e do adolescente.

Dessa forma, levando em consideração os vínculos afetivos e a formação das pessoas em desenvolvimento, por vezes verifica-se que a família biológica não está apta a proteger e representar os interesses de tais pessoas, oportunidade em que surge o instituto da família substituta, a qual pode ser implementada pela guarda, tutela e adoção. Embora diferentes entre si, as referidas formas de colocação em família substituta guardam como semelhança a finalidade de proteger a criança e o adolescente.

O instituto guarda é previsto no ECA como uma forma antecipatória para a posterior integração da pessoa em desenvolvimento na família substituta por intermédio da tutela e adoção. Todavia, a guarda também pode ser concedida sem a necessidade de iniciar o procedimento de tutela e adoção, e como estabelece o § 2.º, do artigo 33 do ECA, a referida concessão será para suprir a falta dos pais ou responsáveis. Para a colocação de criança ou adolescente em família substituta através da guarda, deve-se observar os requisitos descritos no § 2.º do artigo 28 do ECA, quais sejam, grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade entre a criança/adolescente e o futuro guardião.

A tutela, outra forma de colocação da criança e do adolescente em família substituta, diferentemente da guarda, acarreta a perda do poder familiar, ou parental como alguns doutrinadores preferem, para tanto, faz-se necessário, antes da concessão da tutela, ingressar com ação para suspensão ou destituição do poder familiar. As situações que levam à suspensão e à destituição estão expressas nos artigos 1.637 e 1638 do Código Civil. Os mencionados dispositivos estabelecem os requisitos para a suspensão e a destituição do poder familiar, mas de forma geral, pode-se afirmar que a perda do poder familiar ocorrerá sempre que os pais demonstrarem inaptidão para proteger seus filhos.

A adoção é a forma definitiva para a extinção do poder familiar dos pais naturais, pois ela atribui status de parentesco civil, recebendo pessoa estranha na qualidade de filho do adotante. A diferente entre a adoção, tutela e guarda, está na característica de irrevogabilidade da adoção, pois tanto a tutela quanto a guarda podem ser revogadas, e quando não, ao completar 18 (dezoito) anos de idade, o adolescente se torna capacitado para exercer seus atos da vida civil, e passar a administrar seu próprio patrimônio, implicando na extinção da relação jurídica mantida com o tutor ou guardião. No que diz respeito a adoção, mesmo ao completar 18 (dezoito) anos, o adotado não perde os vínculos jurídicos nascidos com a sentença transitada de adoção.

Com exceção da adoção, a guarda e a tutela podem ser promovidas pelo Ministério Público, as quais são denominadas de ações civis públicas, conforme explicação de Hugo Nigro Mazzilli (2004, p. 75): “Doutrinariamente, ação civil pública é a ação do objeto não penal, movida pelo Ministério Público. Nesse sentido, são ações civis públicas as de investigação de paternidade, de alimentos, de defesa do patrimônio público ou quaisquer outras delas, quando movidas pelo Ministério Público.”

Logo, uma vez que o Ministério Público tem legitimidade para ingressar com a suspensão e destituição do poder familiar dos pais, em virtude de infrações aos artigos 1.637 e 1.638 do Código Civil, esta ação, bem como as ações de guarda e tutela, quando iniciadas por ele, devem ser consideradas como ações civis públicas, as quais têm por objetivo evitar lesão cometida, pelos pais ou responsáveis, contra crianças e adolescentes, colocando-as em famílias substitutas no sentido de efetivar o direito fundamental especial à convivência familiar.

DIREITO AO NÃO-TRABALHO

O direito ao trabalho, além de ser um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito inserido no artigo 1.º, IV da Constituição Federal de 1988, também é reconhecido como um direito fundamental, e está previsto no artigo 5.º, XIII, daquele diploma, o qual assegura o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão.

Contudo, o referido direito fundamental é restringido pela própria Constituição ao estabelecer no artigo 227, § 3.º, I a proibição ao trabalho para as pessoas com idades inferiores a 14 (quatorze) anos. Martha de Toledo Machado (2003, p. 181) elucida a questão a respeito do direito ao não-trabalho para as crianças e adolescentes até 14 (quatorze) anos de idade, conforme texto a diante transcrito:

Daí por que, entre tantas outras razões, visando proteger crianças e adolescentes, o ordenamento veda o trabalho antes dos “dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos”, nos termos do inciso XXXIII, do artigo 7.º da CF, na redação que lhe deu a Emenda n.º 20, de 25 de dezembro de 1998.

Note-se que essa vedação expressamente compõe o sistema especial de proteção constitucional de crianças e adolescente, como se vê do artigo 227, § 3.º, I, da CF.

A vedação ora examinada se explica em razão dos efeitos negativos que o trabalho infantil acarreta as pessoas em formação, pois, além de ser um limitador do próprio crescimento físico das crianças, haja vista que determinadas atividades representam esforço físico superior as possibilidades daquelas também interferem no que diz respeito à saúde – especialmente quando a atividade desempenhada pela pessoa em formação é realizada em locais insalubres ou de risco, bem como porque a criança não tem habilidades para executar certas tarefas – a final, é fato, que pessoas em formação, como o próprio termo sugere, não estão aptas a realizar tarefas que somente devem ser realizadas por adultos, os quais têm condições físicas e intelectuais para usufruir do direito fundamental assegurado na Constituição. (MACHADO, 2003, p. 178).

Assim, é preciso clarificar que o direito ao não-trabalho se trata de um direito fundamental especial da criança, pois como foi visto, restringe que esta exerça atividades incompatíveis com sua estrutura física e cognitiva. Porém, com relação ao adolescente, a este é permitido desempenhar certas atividades na função de aprendiz, o que enseja a denominação de direito fundamental ao trabalho protegido, uma vez que também impõe determinadas limitações, tais como a proibição ao trabalho noturno, perigoso e insalubre, previsto no artigo 7.º, XXXIII; e, ao trabalho penoso disposto no artigo 67, II, do ECA.

Entretanto, as limitações ao trabalho infanto-juvenil permanecem apenas no papel, haja vista que a realidade se apresenta de forma diferente, pois o Brasil ainda é palco do desrespeito aos direitos fundamentais especiais da criança e do adolescente, para tanto Rosa Ângela S. Ribas Marinho (1998) repassa algumas informações sobre a exploração da mão-de-obra infantil: “Segundo dados do IBGE o Brasil é palco da exploração de 3,5 milhões de crianças menores 14 anos de idade trabalhando em diversos setores da economia.” O número expressivo de crianças e adolescentes trabalhando em lugares inapropriados, justifica a preocupação de criar medidas preventivas no sentido de abolir o trabalho infantil. Mas, enquanto tais medidas não são criadas, os meios judiciais são os mais adequados para impedir que o trabalho infantil se perpetue.

Não se tem dúvidas de que o trabalho infantil é decorrente da pobreza. As crianças e adolescentes começam cedo a trabalhar, realizando tarefas como: “Catar papelão, limpar pára-brisas e a venda de todo tipo de produtos fazem parte da rotina trabalhista desses pequenos miseráveis sem quaisquer perspectiva de futuro. Todo o lucro é levado para casa, isto quando não é entregue a seus exploradores.” (MARINHO, 1998). Contudo, por intermédio de Ação Civil Pública é possível diminuir o número de crianças e adolescentes que trabalham nas ruas, e que são exploradas pelos pais ou terceiros. Através da referida medida, o Ministério Público pode fazer com que as crianças e adolescentes sem família sejam colocados em abrigos; aos que tem pais ou responsáveis, fazer o encaminhamento com termo de responsabilidade; realizar a inclusão das crianças, ou da família em projetos federais, estaduais ou municipais para erradicação do trabalho infantil; e requerer a determinação da matrícula e freqüência obrigatória das crianças e adolescentes em estabelecimento oficial do ensino fundamental.

Vantuil Abdala apud Consultor Jurídico (2003) explica que “[...] a ação civil pública serviria de veículo para caracterizar a existência de vínculo de trabalho das crianças ou menores. A parir daí, [...], seria possível não apenas proibir empregadores de admitir a mão-de-obra infantil, mas também estabelecer multas para os que a exploram.” Nestes casos, enquanto o governo e a sociedade não encontram soluções com resultados mais abrangentes para a erradicação do trabalho infanto-juvenil, a melhor resposta para o combate desta forma de exploração é a atuação do Ministério Público através da utilização da Ação Civil Pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 dedicou o artigo 227 à proteção das crianças e dos adolescentes ao garantir o principio da prioridade absoluta. O referido princípio representou a criação de direitos fundamentais específicos, além dos direito fundamentais gerais previstos no artigo 5.º da Constituição. Os direitos fundamentais especiais foram elaborados com a finalidade de elevar a importância e a fragilidade das pessoas que estão nessa fase de desenvolvimento.

Entre os direitos fundamentais expressos no Estatuto da Criança e do Adolescente, o direito à educação, também assegurado pela Constituição como um direito fundamental geral, ganhou a relevância de especial para as crianças e adolescentes, por ser entendido como um direito indispensável para o crescimento intelectual dessas pessoas, sem o qual não poderiam se desenvolver de forma digna.

A saúde garantida pela Constituição, também recebeu status de direito fundamental especial para as crianças e adolescentes, haja vista o desenvolvimento físico destas, prioridade absoluta para que possam crescer estruturalmente. Verifica-se que tal direito foi assegurado a eles desde quando ainda estão no ventre da mãe, mesmo não tendo nascidos, o nascituro recebe toda a atenção legal para que possa nascer com vida, bem como receber todo o tratamento médico-hospital adequado para sua condição.

O direito à convivência familiar foi reconhecido como direito fundamental para as pessoas em formação, exatamente porque a família foi entendida como o núcleo da sociedade, e como tal, o ser humano necessita dos laços afetivos de seus familiares para que desenvolva a sua personalidade. Nesse sentido, o Estatuto, para assegurar uma família a toda criança e/ou adolescente, fez previsão da possibilidade de colocá-las, quando órfãos, em famílias substitutas.

As crianças e os adolescentes até os 14 anos de idade, não têm estrutura física para trabalharem, e por tal motivo, mesmo o trabalho sendo reconhecido como um direito fundamental, o direito ao não-trabalho e o direito ao trabalho protegido se tornaram direitos fundamentais especiais para aqueles. A finalidade é proteger as pessoas em desenvolvimento que sejam utilizadas pelos pais ou responsáveis em trabalhos considerados perigosos, insalubres e inadequados àquelas.

Embora os direitos ora citados estejam expressamente assegurados, alguns de forma dúplice – tanto na Constituição, quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente – a utilização da Ação Civil Pública se tornou indispensável para efetivar aqueles direitos. Os direitos fundamentais são normas aplicáveis diretamente, sem precisar de regulamentação, contudo, em certas situações a alternativa é provocar o Poder Judiciário com a Ação para que as crianças e/ou adolescentes recebam a prioridade a eles garantida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CIRCULAR INFORMATIVO. Assunto especial. Ed. n.º 81. 28 de dezembro de 2005. Disponível em: . Acesso em: 06 set. 2007.

CONSULTOR JURÍDICO. Convênio para combater trabalho infantil. 02 de maio de 2003. Disponível em: . Acesso em: 05 set. 2007.

CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. Belo Horinzonte, BH: Del Rey, 2006.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 3.ª ed. ver., atual., ampl. São Paulo, SP: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

FEIJÓ, Patrícia Collat Bento. Transporte escolar: a obrigação do poder público municipal no desenvolvimento do programa. Aspectos jurídicos relevantes. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1259, 12 dez. 2006. Disponível em:

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MARINHO, Rosa Angela S. Ribas. A exploração da mão-de-obra infantil. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em:

. Acesso em: 05 set. 2007.

MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003.

MAZZILLI, Hugo Nigro. Ministério Público. 2. ed. São Paulo, SP: Dam

 

Data de elaboração: agosto/2008

 

Como citar o texto:

LANDO, Giorge André..A tutela dos interesses e direitos difusos e coletivos da criança e do adolescente: uma análise crítica acerca de seus principais aspectos.. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 14, nº 752. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-da-infancia-e-juventude/2105/a-tutela-interesses-direitos-difusos-coletivos-crianca-adolescente-analise-critica-acerca-seus-principais-aspectos-. Acesso em 20 dez. 2010.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.