Resumo

A renovação programada é um mecanismo criado pelas empresas para manter, ainda que não autorizado pelo consumidor, a prestação de um serviço periódico que teve seu período exaurido. Suas finalidades podem tanto a praticidade para o consumidor quanto o impedimento de um tipo de evasão de consumidores. Pode ter como consequência impelir o consumidor a renovar o pacote sem que ele o deseje. Geralmente as cláusulas que preveem a renovação estão em contratos de adesão, que são feitos unilateralmente pelas empresas e que, por isso, podem ter cláusulas abusivas contestadas ainda que assinados pelos consumidores. Os serviços prestados após a renovação programada sem autorização devem servir como amostra grátis. A cobrança indevida por esses serviços deve ser ressarcida em dobro.

Palavras-chave: renovação programada; cláusulas abusivas; ressarcimento.

1 Introdução

1.1.1 O que é a renovação programada

1.1.2 Finalidade do instituto

2 Desenvolvimento

2.1 Contratos de adesão e a flexibilização do princípio Pacta Sunt Servanda

2.2 Danos materiais em decorrência dos serviços prestados após o vencimento do período contratado (Ressarcimento em dobro e amostras grátis)

2.3 Em danos morais

3 Jurisprudência

4 Conclusão

5 Referências

A ilegalidade da renovação programada

1 Introdução

1.1.1 O que é a renovação programada

A renovação programada de serviços periódicos é uma prática largamente utilizada pelas fornecedoras de serviços e produtos - por exemplo, uma editora presta serviços periódicos oriundos da assinatura de um contrato de adesão de uma determinada revista. Este mecanismo tem como finalidade imediata a manutenção da prestação de serviços pela empresa, mesmo sem a autorização do consumidor, que ainda assim deverá arcar com o pagamento do serviço que não renovou. A empresa contratada fundamenta a renovação apontando as cláusulas do contrato que preveem uma renovação automática do pacote de serviços.  

No exemplo citado, o consumidor assina um contrato com a editora a fim de que sejam fornecidas revistas periodicamente a ele durante um intervalo determinado de tempo (ano, semestre, trimestre). Ao final desse período, caso o consumidor não manifeste sua vontade de cancelar a assinatura, o pacote assinado por ele é automaticamente renovado e ele continua a receber as revistas e a ter uma quantia debitada mensalmente em sua fatura de cartão ou de sua conta corrente.

1.1.2 Finalidades do instituto

            As empresas responsáveis pelos serviços alegam que as cláusulas possuem a finalidade de proporcionar maior conforto aos consumidores, pois, ao renovar automaticamente o pacote de serviços, poupa o consumidor do ônus de ligar para a empresa e passar por um trâmite necessário à renovação. Embora faça sentido, há quem defenda que essa finalidade é questionável, uma vez que seria mais confortável que, antes da renovação, o consumidor fosse contatado e que lhe fosse feita uma simples pergunta sobre o seu desejo de continuar usufruindo do serviço. Ademais, em um suposto contexto criado pelo inexorável funcionamento do dispositivo em epígrafe, os consumidores seriam obrigados a conferir débito por débito em sua fatura do cartão; prazo por prazo de exaurimento das parcelas; e prazo por prazo do exaurimento da data de prestação dos serviços contratados. Tal situação geraria enorme desconforto, o que superaria o benefício alegado pelas empresas.

            Analisando esse artifício sob o prisma comercial e estratégico da empresa, também fica claro que a hipótese que visa ao conforto dos consumidores não se sustenta. Sabe-se que o momento em que mais se perdem clientes nesse tipo de negócio é no momento da renovação da prestação de serviços. É simples pensar na situação em que o consumidor, ao final de um ano de recebimento semanal de revistas, recebe uma ligação de uma empresa indagando sobre seu desejo de renovar o pacote. Aqui, o consumidor será naturalmente incentivado a fazer uma avaliação crítica sobre o uso daquele produto. Para responder a supracitada questão, ele deverá se perguntar se fez bom uso do produto, se gostou do conteúdo e se, portanto, quer renovar. Pode também relembrar que não usufruía do produto ou que simplesmente que não gostava da abordagem do conteúdo pela revista – no caso em que o produto seja uma revista - e que, por conseguinte, não irá renovar.

            Para evitar que o consumidor pense criticamente sobre as duas últimas hipóteses, a renovação programada é uma saída satisfatória para a empresa, visto que muitos consumidores certamente se acomodariam e simplesmente deixariam passar o episódio. Fica evidente que a empresa aplica tal estratégia no Brasil sem grandes resistências, visto que o perfil de consumidores brasileiros, em geral, ainda não é o de quem conhece os seus direitos ou acha que uma querela judicial seria infrutífera.

            As últimas hipóteses são ratificadas ainda quando, ao entrar em contato com as empresas para reclamar da renovação, os clientes são tratados como se tivessem aceitado claramente o que aconteceu e recebem a resposta de que eles assinaram um contrato cujas cláusulas previam uma renovação automática, por isso não poderá ser desfeito.

2 Desenvolvimento

2.1 Contratos de adesão e a flexibilização do princípio Pacta Sunt Servanda

No cotidiano da atual sociedade brasileira, os contratos são majoritariamente de adesão. São exemplos os contratos feitos quando da assinatura de uma revista, assinatura de TV a cabo, da contratação de um produto de capitalização oferecido no banco. Nesses casos, à época da assinatura do contrato, o consumidor não discute bem as cláusulas e nem mesmo as modifica de acordo com suas necessidades.

A definição de contrato de adesão é encontrada no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, conforme segue:

Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

Quando se fala em cláusula de renovação programada, geralmente se está a falar de um contrato de adesão. Esta cláusula é tipicamente aquela que passa despercebida pelo consumidor. Mais ainda por, por vezes, ele não possuir o costume nem a obrigação de contar quantas revistas faltam para acabar o pacote ou conferir débito por débito e prazo por prazo que há em suas fatura de cartão.

Vale observar que o contrato de adesão é formulado unilateralmente e, conforme dito no início do tópico, sua inexorabilidade seria prejudicial à parte mais fraca da relação consumerista. Sobre isso, Orlando Gomes lecionou que:

[...] essa submissão de uma parte a outra numa cláusula de contrato de adesão, e que, antes de constituir ato de autonomia de vontade, é, pelo contrário, negação desta, esbarra na tendência humanitária do Direito moderno, orientado no sentido de evitar abusos do poder econômico pelo economicamente mais forte.

Ainda em linha com o parágrafo anterior, Alberto do Amaral Júnior aduz que:

[...] o controle das cláusulas contratuais abusivas, tal como instituído pelo Código de Defesa do Consumidor, em absoluto se choca com o princípio da liberdade contratual, pela simples razão de que este princípio não pode ser invocado pela parte que se encontra em condições de exercer o monopólio de produção das cláusulas contratuais, a ponto de tornar difícil ou mesmo impossível a liberdade contratual do aderente.

Não se referindo especificamente a cláusulas de renovação programada, mas apontada a necessidade de se cuidar do uso dos contratos de adesão, o professor Josimar Santos Rosa expôs:

Perante o contrato de adesão, o processo manipulador tem sido uma constante, fazendo-se por requerer até a intervenção do Estado para conter os abusos. Por meio das decisões, o Poder Judiciário vem prestando considerável contribuição, contando com competentes decisões que visam controlar a prática abusiva no contrato de adesão, meio supressor para a indefinição normativa.

2.2 Danos materiais em decorrência dos serviços prestados após o vencimento do período contratado

Nos casos em que a renovação programa tenha sido feita, os valores descontados indevidamente (repetição em dobro do indébito) da conta corrente do consumidor devem ser ressarcidos em dobro, conforme previsão do art. 42, §único do código de defesa do consumidor. In verbis:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

        Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Quanto às revistas – ou outros produtos a depender do ramo - que já foram entregues na residência do consumidor em decorrência da renovação indesejada, elas devem se tomadas como amostra grátis, pois a empresa as enviou por livre e espontânea vontade, sem que o consumidor tenha se obrigado de alguma forma. O Código de Defesa do Consumidor corrobora tal posição em seu art. 39:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

[...]

 III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço;

2.3 Danos morais

Quanto aos danos morais, Caio Mário da Silva Pereira os define como:

 [...]qualquer sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária e abrange todo o atentado à sua segurança e tranquilidade, ao seu amor-próprio estético, à integridade de sua inteligência, à suas afeições [...]

É nesse conceito que bem se enquadram os danos sofridos pelos indivíduos que passaram por uma renovação programada não consentida. Nesse contexto, questiona-se também a intrusão realizada pela editora ao utilizar as informações do cartão de crédito dos consumidores para realizar débitos não autorizados em troca de serviços não contratados. Esse elemento, junto aos outros já listados, culminam em transtornos e desgastes que excedem aos limites do mero dissabor e, por isso, são dignas de acarretar condenação das empresas por danos morais aos consumidores.

Além de reparar o dano moral infligido ao consumidor, a reparação por danos morais deve possuir o caráter punitivo que deve ser imputado à empresa, visando coibir esse tipo de prática desrespeitosa e de má-fé, que é a renovação programada sem uma autorização prévia.

Em linha com os dizeres do parágrafo anterior, leciona Antônio Jeová dos Santos:

Se a indenização não contém um ingrediente que obstaculize a reincidência no lesionar, se não são desmanteladas as consequências vantajosas de condutas antijurídicas, se renuncia à paz social. A prevenção dos prejuízos, que constitui um objetivo essencial do direito de danos, ficaria como enunciado lírico, privado de toda eficácia.

3 Jurisprudência

Em consonância com a posição do autor do texto, estão as ementas dos seguintes julgados:

CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSINATURA DE REVISTA. RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA NÃO AUTORIZADA. DÉBITO EM CONTA CORRENTE. UTILIZAÇÃO DE DADOS JÁ CONHECIDOS DO CONSUMIDOR. PRÁTICA ABUSIVA. NECESSIDADE DE DIVERSAS RECLAMAÇÕES DO CONSUMIDOR. DESGASTE DO CONSUMIDOR E DESRESPEITO DA EDITORA. DEVER DE INDENIZAR CARACTERIZADO. FUNÇÃO DISSUASÓRIA DA RESPONSABILIDADE CIVIL. QUANTUM INDENIZATÓRIO REDUZIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (Recurso Cível Nº 71002841872, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Eduardo Kraemer, Julgado em 28/04/2011).

AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CANCELAMENTO DE ASSINATURA DE REVISTA. DESCONSIDERAÇÃO À VONTADE DA CONSUMIDORA. RENOVAÇÃO DE ASSINATURA DE REVISTA SEM O CONSENTIMENTO DA AUTORA. DÉBITO AUTOMÁTICO EM CONTA CORRENTE. COBRANÇA DE ASSINATURA NÃO REALIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE DA RÉ. DANO MORAL OCORRENTE. Recurso parcialmente provido. (Recurso Cível Nº 71002649408, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em 17/03/2011).

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DÉBITOS EM CONTA INDEVIDOS NA FATURA DE CARTÃO DE CRÉDITO DEVER DE INDENIZAR. Na questão de fundo, tenho que a sentença mereça ser confirmada, pois bem apanhou os elementos de convicção produzidos pelas partes, que apontam para a efetiva ocorrência do ato danoso e necessidade de restituição das parcelas indevidamente debitadas no cartão de crédito da autora. DESPROVERAM AMBOS OS APELOS. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70030848907, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Léo Romi Pilau Júnior, Julgado em 28/04/2011)

RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. Renovação automática de assinatura de revista. Débito de valores do cartão do autor sem autorização. Devolução determinada. Ultrapassa o limite do desconforto na relação cotidiana situação em que o consumidor tem lançado no seu cartão de crédito débito de despesa desautorizada. Ausente sistema de tarifamento, a fixação do montante indenizatório ao dano extrapatrimonial está adstrita ao prudente arbítrio do juiz. Valor arbitrado em 1º Grau mantido. Apelação desprovida. Sentença mantida. Decisão unânime. (Apelação Cível Nº 70026481234, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em 29/10/2009)

RESPONSABILIDADE CIVIL. EDITORA GLOBO. ASSINATURA DE REVISTA. RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA. ANUÊNCIA DO CONSUMIDOR AUSENTE. REPETIÇÃO DO INDÉBITO. POSSIBILIDADE. DANO MORAL. A renovação automática de assinatura de revista pela editora configura ato ilícito, nos termos do artigo 39, III, do CDC. Demonstrada a cobrança indevida de valores, a repetição é medida que se impõe. A prática abusiva da demandada acarreta dano moral indenizável. As adversidades sofridas pela autora, a aflição e o desequilíbrio em seu bem-estar, fugiram à normalidade e se constituíram em agressão à sua dignidade. Fixação do montante indenizatório considerando o grave equívoco da ré, o aborrecimento e o transtorno sofridos pelo demandante, além do caráter punitivo-compensatório da reparação. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70033187774, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Túlio de Oliveira Martins, Julgado em 29/04/2010)

4 Conclusão

Embora a prática da renovação programada possa ser considerada como facilitadora do procedimento de renovação, é imprescindível que, antes da renovação, haja uma confirmação por parte do consumidor sobre a sua intenção de renovar o pacote, caso contrário, as empresas prestadoras dos serviços estariam utilizando uma artimanha para que, na falta de atenção do consumidor, ele fosse sorrateiramente impelido a comprar um produto.

Tal prática é notoriamente abusiva. É inadmissível que se imponha o ônus de cancelar o pacote ao consumidor, pois, ao assinar o pacote, o serviço tinha data para se exaurir. A empresa sim deveria arcar com o ônus da renovação, entrar efetivamente em contato com o cliente e indagar sobre a vontade de renovar a prestação dos serviços. Esta conduta seria mais transparente e honesta, não havendo assim infração dos princípios básicos que regem o código do consumidor.

Consumidores não têm o ímpeto e nem o dever de conferir quantas revistas eles já receberam ou quantas revistas faltam para ser recebidas até o final do pacote. A obrigação da empresa – que o fará, caso ela esteja de boa-fé – é de ligar para o cliente e informar sobre o exaurimento do pacote e sobre a vontade do cliente de renovar automaticamente a prestação de serviços.

As cortes devem coibir o uso de má-fé da renovação programada. Suas decisões são de grande valia para a proteção do consumidor na sociedade brasileira, visto que as punições visam não somente a reparar o dano causado ao consumidor, mas também a imputar pena educativa aos empresários que desrespeitam os consumidores. O papel do Judiciário guarda em seus gestos a importante missão como agente de exposição da efetividade das leis e da importância de seguir condutas retas nas atividades comerciais.

5 Referências

AMARAL JÚNIOR, Alberto do. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor; 1ª ed., Saraiva, São Paulo,1991.

GOMES, Orlando. Transformações Gerais do Direito das Obrigações. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1967, c I, §1º.

 

MUKAI, Toshio e outros; Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, 1ª ed, Saraiva, São Paulo, 1991, p.32.

PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. 1998, p. 54.

ROSA, Josimar Santos. Contrato de Adesão. 1ªed., Atlas, São Paulo, 1994.

SANTOS, Antônio Jeová dos. 2003, p. 159.

 

 

Elaborado em julho/2014

 

Como citar o texto:

FRANCO, Leandro dos santos..A Ilegalidade Da Renovação Programada. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 22, nº 1195. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-do-consumidor/3204/a-ilegalidade-renovacao-programada. Acesso em 16 set. 2014.

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