SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 Breves considerações sobre os direitos fundamentais. 3 Da inalienabilidade dos direitos fundamentais. 4 Intervenção do Estado na preservação da inalienabilidade dos direitos fundamentais. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo possibilitar a reflexão de um dos temas de maior relevância e complexidade da teoria dos direitos fundamentais: a característica de inalienabilidade destes direitos. Neste artigo abordaremos noções gerais de direitos fundamentais, para que possamos passar a analisar a inalienabilidade e sua abrangência, bem como o papel do Estado em face da violação da inalienabilidade dos direitos fundamentais.

DA INALIENABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

1 INTRODUÇÃO

A característica de inalienabilidade e sua abrangência tratam-se de um tema de suma relevância para a teoria dos direitos fundamentais. Já que estes são direitos históricos, conquistados em um lento processo de evolução do pensamento humano, devem ser resguardados e respeitados tanto pelo poder público quanto pelos indivíduos.

Assim, deve-se observar a inalienabilidade dos direitos fundamentais, cabendo ao Estado impedir a alienação de tais direitos, a fim de salvaguardar estes direitos mínimos, constitucionalmente consagrados, para garantir a existência digna das pessoas. 

2 Breves considerações sobre os direitos fundamentais

Durante muito tempo discutiu-se a fundamentação ideológica dos direitos fundamentais, no entanto, conforme ministra Norberto BOBBIO (2004, p. 52), “Sabemos hoje que [...] os direitos humanos são o produto não da natureza, mas da civilização humana”, uma construção jurídica, social e filosófica erigida para preservar elementos vitais para a harmonização entre indivíduos e Estado e entre os próprios indivíduos.

E é justamente esta construção teórico-prática dos direitos fundamentais que ocasiona sua dificuldade de conceituação, de forma a emitir um conceito sintético e preciso.

Ademais, torna-se imprescindível à positivação destes direitos, pois conforme a lição de CANOTILHO (1993, p. 497), “[...] sem essa positivação jurídico-constitucional, os direitos do homem são esperanças [...], mera retórica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas constitucionais”.

Com efeito, sabemos que os direitos não são imutáveis, mas sim aperfeiçoados à medida que os povos se tornam mais críticos e mais inclinados a identificar direitos e suas violações (BRITO, Internet), variando desta forma também seu conceito e sua terminologia.

Ao longo da história dos direitos fundamentais até os dias atuais, sempre se empregaram inúmeras expressões para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos públicos subjetivos, direitos individuais, direitos fundamentais do homem, direitos humanos fundamentais, entre outros.

Não nos cabe aqui refutar uma por uma estas nomenclaturas, mas apenas mencionar que o termo “direitos fundamentais” ou “direitos humanos fundamentais” encerra menores problematizações teóricas, já que se encontra na doutrina várias objeções de outros termos, tais como “direitos do homem”, repudiado  pelo feminismo (FERREIRA FILHO, 2000, p. 14).

Em que pese às dificuldades apontadas acima, como lembrado por Alexandre de MORAES, a UNESCO em 1978 apresenta a definição de direitos fundamentais, nos seguintes termos:

[...] considera-os por um lado uma proteção de maneira institucionalizada dos direitos da pessoa humana contra os excessos do poder cometidos pelos órgãos do Estado, e por outro, regras para se estabelecer condições humanas de vida e desenvolvimento da personalidade humana. (2003, p. 46-47)

Assim, são regras que devem ser respeitadas por todos e para todos os membros do grupo social.  Conforme lembrado por Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO (2000, p. 103), o Estado está no pólo passivo dos direitos fundamentais, mas não fica sozinho, visto que todos estão adstritos a respeitá-los.

Neste sentido, o conceito expresso pela doutrina que nos parece mais condizente com a história e a realidade social hodierna:

[...] facultad que la norma atribuye de protección a la persona en lo referente a su vida, a su libertad, a la igualdad, a su participación política o social, o a cualquier otro aspecto fundamental que afecte a su desarrollo integral como persona, en una comunidad de hombres libres, exigiendo el respecto de los demás hombres, de los grupos sociales y del Estado, y con possibilidad de poner en marcha el aparato coactivo de Estado en caso de infracción. (PECES-BARBA apud, José Afonso da SILVA, 2000, p. 182-183)

Destarte, evidencia-se que os direitos fundamentais consistem em uma construção do pensamento humano que vem evoluindo há vários séculos, caracterizando-se, essencialmente, por serem indispensáveis para a consecução de uma vida digna. Lembre-se, ainda, que estes direitos devem ser respeitados pelo Estado e pelos próprios indivíduos, conforme positivado nas declarações de direitos.

3 Da inalienabilidade dos direitos fundamentais

A inalienabilidade dos direitos fundamentais consiste na impossibilidade de transferência destes direitos, tanto a título gratuito, como a título oneroso.

Segundo Luigi FERRAJOLI (1999, p. 38-39), a inalienabilidade fundamenta-se no fato de que os direitos fundamentais são normativamente direitos de todos os membros de uma coletividade, por isso não são alienáveis ou negociáveis, já que correspondem a prerrogativas não contingentes e inalteráveis de seus titulares e a outros tantos limites e vínculos inarredáveis para todos os poderes, tanto públicos como privados.

Sendo assim, conforme veremos, cabe ao Estado impedir que o indivíduo aliene direitos insuscetíveis de alienação, haja vista que seu ato resultaria em desrespeito aos direitos consagrados a todos os indivíduos.

Deve-se mencionar que o poder hierárquico normativo dos direitos fundamentais dispostos na Constituição possui uma hierarquia superior, conforme preleciona o mestre português José J. G. CANOTILHO (p. 499): “Dizer que são direitos constitucionais fundamentais significa, precipuamente, que têm uma hierarquia de superioridade ante os outros direitos, mesmo os demais constitucionais [...]”.

Desta forma, não paira dúvida de estarem os direitos fundamentais hierarquicamente acima de outras normas infraconstitucionais e até mesmo dos demais dispositivos da Constituição.

Frise-se, ainda, que os direitos fundamentais possuem aplicação não só nas relações verticais, estabelecidas entre o Estado e os particulares, mas também nas relações horizontais, estabelecidas entre os particulares. Neste sentido é que se admite a prevalência destes direitos em face de normas e disposições contratuais, mesmo se pactuadas livremente pelas partes envolvidas na negociação.

Conforme o Dicionário Aurélio, o verbete “alienar” encontra a seguinte definição: “[Do lat. alienare] 1.Transferir para outrem o domínio de; tornar alheio; alhear”. Assim, se os direitos fundamentais são inalienáveis, estes em momento algum podem ser confundidos com os direitos patrimoniais.

Neste diapasão, Luigi FERRAJOLI (p. 47-48, 1999), afirma que, ao contrário dos direitos patrimoniais, os direitos fundamentais são inalienáveis, permanecendo invariáveis, já que ninguém pode ser, v.g., mais ou menos livre e, justamente por isto, ninguém pode vender o direito à vida, à integridade física ou os direitos civis e políticos.

O autor identifica a indisponibilidade dos direitos fundamentais sob dois aspectos: a) indisponibilidade ativa, referente à impossibilidade do titular de um direito fundamental vir a aliená-lo; e b) indisponibilidade passiva, a qual consiste na inadmissibilidade destes direitos serem expropriados ou limitados pelo Estado ou por outros indivíduos.

Caso esta ordem de inalienabilidade fosse subvertida, iríamos nos deparar com o triunfo da lei do mais forte, o fim de todas as liberdades e do próprio mercado e, conseqüentemente, a negação do direito e a regressão ao estado de natureza.

Assim, FERRAJOLI considera a característica de inalienabilidade, nos termos mencionados, como um dos fatores de diferenciação entre os direitos fundamentais e os direitos patrimoniais. O autor menciona (p. 46-50), ainda, outras três distinções essenciais entre os referidos direitos, fundamentais para compreender a estrutura do Estado constitucional de direito, conforme passamos a analisar.

A primeira diferença entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais consiste no fato daqueles serem universais, enquanto estes são direitos singulares, ou seja, para cada direito patrimonial há um titular, com exclusão de todos os demais.

Outra diferença apontada pelo autor, é que os direitos fundamentais são normas, são ex lege, dispostos imediatamente em lei de âmbito constitucional; já os direitos patrimoniais são predispostos por normas. Assim, estes são sempre atuações singulares e predispostas pelas normas que os prevêem.

Por fim, FERRAJOLI assinala a característica de distinção em que os direitos patrimoniais são direitos horizontais, enquanto os direitos fundamentais são horizontais e verticais. Deste modo, os direitos patrimoniais estabelecem relações intersubjetivas civilistas, ao revés, os direitos fundamentais encerram relações publicistas, conforme analisamos anteriormente.

 Ocorre que, o pressuposto de inalienabilidade dos direitos fundamentais não pode ser concebido em termos absolutos, já que nem mesmo os direitos fundamentais devem assim ser compreendidos, pois estes são históricos, relativos, ou seja, são conceitos dinâmicos e suscetíveis de alterações.

Desta forma, assim como os direitos fundamentais, a característica de inalienabilidade não é ilimitada, especialmente quando a impossibilidade de alienar entrar em conflito com o exercício de um outro direito igualmente fundamental, conforme veremos no item abaixo.

4 Intervenção do Estado na preservação da inalienabilidade dos direitos fundamentais

Como vimos, há certos direitos dos quais o indivíduo não possui autonomia de vontade para aliená-lo, visto que o Estado o impede de assim proceder.

Embora, nossa Constituição (art. 170) espose a ideologia da livre iniciativa como base da ordem econômica, não pode o Estado se eximir de seu dever de coibir abusos a estes direitos.

Aliás, acertadamente, Robert KURTZ (1992, p. 38; 222-223), lembra que o verdadeiro despotismo da modernidade é o absolutismo do dinheiro e, em tom quase profético, afirma a existência da chamada “era das trevas”, correspondente ao fim do século XX até boa parte do século XXI, onde nos deparamos com o caos e a decadência das estruturas sociais.

Diante deste quadro, o Estado, historicamente por muitas vezes protagonista do despotismo, não pode ficar inerte perante o absolutismo do dinheiro, devendo salvaguardar direitos mínimos invulneráveis para que o indivíduo viva com dignidade e o Estado possa perseguir sua busca pela consecução do bem comum dos indivíduos.

Vale ressaltar o disposto no segundo considerando, no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que afirma que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros ao longo da história, tendo estes atos ultrajado a consciência da humanidade.

Assim, o Estado não pode permanecer indiferente a essas opressões, devendo agir reprimindo-as. No entanto, como vimos anteriormente, esta regra deve ser entendida com certos abrandamentos (Celso BASTOS, 1999, p. 243), sem o que a intervenção estatal constituirá nada além do que outra forma odiosa de absolutismo.

Ademais, os direitos fundamentais foram conquistados mediante árduas rupturas institucionais (FERRAJOLI, 1999, p. 54), constituindo-se em genuíno fundamento do Estado, motivo pelo qual a ninguém é lícito aliená-los.

Sendo assim, diante da celebração dos contratos que tenham como objeto direitos fundamentais, capazes de comprometer a dignidade humana, deve o Estado negar validade a tais negócios jurídicos, a fim de preservar os direitos dos indivíduos, a ordem pública e a garantia do bem comum, funções precípuas de um Estado Democrático e de Direito.

5 CONCLUSÃO

Diante do exposto, pode-se observar que a inalienabilidade dos direitos fundamentais, embora não absoluta, deve ser respeitada e que cotidianamente nos deparamos com contratos que possuam tais direitos como objetos, muitas vezes passando despercebidos e sendo considerados juridicamente válidos.

Desta forma, não pode o Estado ficar indiferente em face das violações da inalienabilidade dos direitos fundamentais, sob pena de configurar-se um inadmissível retrocesso social-normativo.

NOTAS

1 – Sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, veja-se: SILVA, Luiz Fernando Martins da. A incidência e eficácia dos direitos fundamentais nas relações com particulares. Disponível em: .

2 - Destaque-se que FERRAJOLI, no texto ora citado, por diversas vezes utiliza os termos “indisponibilidade” e “inalienabilidade” com o mesmo significado.

3 – Sobre as restrições de direitos fundamentais, veja-se Robert ALEXY, 2001, p. 268-274.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. de Ernesto Garzón Valdés. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales: Madrid, 2001.

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BRITO, Bernardo de Azevedo. Os direitos humanos e a identidade cultural dos povos. Disponível em: . Acessado em: 21 jan. 2005.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías. La ley del más débil. Madrid: Trotta, 1999.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio versão 5.0. Grupo Positivo. 2005. CD-ROM

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 4. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2000.

KURTZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Trad. Karen Elsabe Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

SILVA, Luiz Fernando Martins da. A incidência e eficácia dos direitos fundamentais nas relações com particulares. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: . Acesso em 26 jan. 2005.

 

Como citar o texto:

ADORNO, Rodrigo dos Santos..Da inalienabilidade dos direitos fundamentais. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 136. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-do-consumidor/702/da-inalienabilidade-direitos-fundamentais. Acesso em 25 jul. 2005.

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