Sumário: 1. Introdução; 2. O papel do consumidor no cenário econômico; 3.Dumping; 4. O Dumping e as relações jurídicas de consumo; 5. Conclusão   

1. Introdução

            É muito comum a abordagem que se faz atualmente sobre os reflexos das práticas anticoncorrenciais nas relações jurídicas de consumo, porém, uma em especial nos chama atenção, a prática do dumping, pois aquilo que inicialmente aparenta ser benéfico para o consumidor, pode ao final, tornar-se extremamente oneroso seja do ponto de vista quantitativo ou qualitativo.

            Para tal análise, devemos considerar que a Constituição Federal ao estabelecer a ordem econômica nomeou como princípios, entre outros: a defesa do consumidor e a livre concorrência, como se vê:

“Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

 (...);

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

(...)”

            Ao estabelecer os dois princípios na ordem econômica, considerando-se a relação existente entre eles com a figura da empresa, é de se concluir que tanto a defesa do consumidor como a defesa da concorrência fazem parte de um mesmo sistema. Sendo eles integrantes do mesmo sistema, devemos fazer a interpretação dos direitos consumeristas à luz da disciplina das relações concorrenciais, o que se propõe aqui para a análise da prática do dumping.

            Isso até nos faz aqui pensar se o correto não seria nominar esse sistema de sistema de proteção do mercado de consumo e concorrencial, porém, trata-se apenas de uma sugestão que de qualquer forma não interfere no raciocínio que se pretende apresentar.

            Ademais, o CDC não pode ser analisado de forma exclusivamente jurídica, pois seria um grave erro descuidar essa análise de uma necessária interpretação dos fatos sociais, em especial, os de ordem política e econômica que circulam ao redor desse sistema normativo.

2. O papel do consumidor no cenário econômico

            O sistema econômico adotado pelo Estado brasileiro é o capitalista. Dessa forma, nosso sistema jurídico, em especial no que pertine a ordem econômica, gravita em torno dos quatro eixos desse sistema[1].

RENDA

            Assim sendo, o próprio sistema econômico capitalista cria um sistema único onde se encontra disciplinada a relação concorrencial e a relação jurídica de consumo, tendo como atores: as empresas; os trabalhadores; o Estado e os consumidores.

            Essa união dos atores em um mesmo sistema faz com que cada um tenha um papel distinto mais interrelacionado, fazendo com que, em especial o consumidor que aqui nos interessa, tenha direitos e obrigações perante o ideal funcionamento do sistema econômico.

            Com isso, não basta ao consumidor na relação jurídica de consumo apenas o papel de mera escolha do que melhor atenda as suas necessidades, possui ele uma responsabilidade muito maior, a de garantir a eficácia plena desse sistema, como veremos na construção proposta a seguir.

            De qualquer forma, o fato do CDC ser norma de ordem pública e interesse social que por sua vez justificam o papel intervencionista do Estado, por parte do consumidor mostra tratar-se de norma de caráter transindividual de direitos, não permitindo que o consumidor use-a apenas para atingir benefícios pessoais individuais.

3. Dumping

            A palavra dumping apesar de ser de uso muito comum no vocábulo econômico, ainda é de desconhecimento de grande parte da população brasileira, até porque, a nossa legislação interna de defesa da concorrência – Lei nº 8.884/94 não apresenta qualquer definição a respeito, e só faz uso do termo em seu antepenúltimo artigo ao dispor que “o disposto nesta Lei não se aplica aos casos de dumping e subsídios de que tratam os Acordos Relativos à Implementação do Artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, promulgados pelos Decretos nº 93.941 e nº 93.962, de 16 e 22 de janeiro de 1987, respectivamente” (grifei).

            O termo dumping quer dizer, de uma forma geral, a comercialização de produtos a preços abaixo do custo de produção[2]. O que se justifica basicamente para eliminar a concorrência e conquistar uma fatia maior de mercado.

            Porém, esse conceito traz uma contradição aparentemente normal na cabeça de qualquer consumidor, haja vista que nas campanhas publicitárias presentes nas relações de consumo é comum o uso da expressão “preços abaixo do custo”. Mas não podemos generalizar e entender que a venda de produtos abaixo do custo significa de forma automática a prática de dumping. 

            O dumping exige muito mais que a simples venda de produto abaixo do preço de custo, pois o que está por traz dessa prática comercial é a intenção de eliminar a concorrência. Assim sendo, verificamos que o dumping é uma forma de abuso do poder econômico, haja vista que só quem possui poder econômico pode expor o mercado concorrencial a tal sacrifício.

            Logo, verificamos que o dumping exige a venda de produtos abaixo do preço de custo com a intenção de minar a concorrência, viabilizado pelo abuso de poder econômico.

            A Lei nº 8.884/94 tipifica o dumping como infração da ordem econômica:

“Art. 21 – as seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no art. 20 e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:

(...);

XVIII – vender injustificadamente mercadoria abaixo do preço de custo;

(...)”.

            Com isso, devemos acrescentar ao conceito de dumping a prática de ato injustificado, pois caso o empresário esteja praticando preços abaixo de custo como forma de minimizar eventuais prejuízos, não teremos por conseqüência infração da ordem econômica.

            Todavia, a venda a preços baixos pode significar uma forma de acesso a produtos e serviços de uma parcela de consumidores que normalmente não poderiam ser por ela abrangidos. Será ?

4. O dumping e as relações jurídicas de consumo

            Quando nos colocamos na condição de consumidores queremos sempre “levar vantagem” e agimos de forma a procurar sempre aquilo que é melhor segundo nossos interesses (adequação, qualidade, quantidade e preço).

            Se o nosso interesse estiver voltado para a adequação, a aquisição de determinado produto ou serviço se dará de forma objetiva sem levar em consideração fatores de mercado.

Em princípio, da mesma forma ocorre quando a opção de aquisição do produto ou serviço se der em razão da qualidade de determinado produto ou serviço, exceto no caso em que o consumidor tendo definida a marca que melhor lhe convém em termos qualitativos, passa então a definir o fornecedor pelo critério de preço.

            Se o critério de escolha for o quantitativo ou exclusivamente o de preço, estará o consumidor agindo de forma mais vulnerável em relação às práticas comerciais indevidas que normalmente se verifica no mercado.

            Essa vulnerabilidade justificada pela vontade ou pelas condições econômicas do consumidor, aliadas a máxima cultural de “levar vantagem em tudo”, faz com que práticas como o dumping sejam perfeitamente utilizadas no mercado gerando efeitos não desejáveis.

            Embora em um primeiro momento o consumidor se sinta extremamente satisfeito com as condições economicamente favoráveis em que se deu o consumo, o reflexo futuro será extremamente danoso, pois o fornecedor que tenha feito uso do poder econômico para manipular o mercado naquele momento inicial, ao dominar de forma relevante essa mesma parcela voltará a fazer uso de outras práticas comerciais abusivas, só que agora em desfavor do próprio consumidor e não mais dos concorrentes. 

            As demais práticas a que nos referimos, podem se traduzir em: limitar ou impedir o acesso de novas empresas no mercado; regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços à sua distribuição; aumentar arbitrariamente os lucros; impor, no comércio de bens ou serviços, a distribuidores, varejistas e representantes, preços de revenda, descontos, condições de pagamento, quantidades mínimas ou máximas, margem de lucro ou quaisquer outras condições de comercialização relativos a negócios destes com terceiros; discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços; recusar venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais; subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem; impor preços excessivos, ou aumentar sem justa causa o preço do bem ou serviço.

            É por isso que ao definir a Política Nacional de Relações de Consumo o legislador defendeu também a proteção dos interesses econômicos do consumidor, assim estabelecida no art. 4º do CDC: “A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, (...)”.

            Assim, verificamos que além dos princípios estabelecidos no citado art. 4º do CDC, resta observarmos que a relação de consumo se pauta também pelo princípio da pluralidade fornecedores, pois só através de um mercado plúrimo é que o consumidor poderá continuar estabelecendo seus próprios critérios de consumo.   

            É claro que o consumidor pode concluir que o Estado através do CADE-Conselho Administrativo de Defesa Econômica estará presente no mercado garantindo não só a livre concorrência como também protegendo o consumidor. No entanto, esta não é verdadeiramente uma afirmativa, tanto que na Mensagem EM nº 00107-A – MJ/MF/MP da Subchefia de Assuntos Parlamentares que submete o Projeto Substitutivo da Lei de Defesa da Concorrência, seu item 6 informa que: “com a nova proposta, foi conferida maior autonomia à representação dos interesses dos consumidores no processo decisório” e o item 14 complementa: “o sistema (se referindo ao sistema atual-Lei nº 8.884/94)  tem conferido ênfase excessiva à análise de atos de concentração, em detrimento da repressão a condutas anticompetitivas, ao passo que internacionalmente existe o consenso a respeito de que um sistema de defesa da concorrência deve privilegiar a última vertente, tendo em vista seu maior potencial lesivo aos consumidores”. 

            Com isso, percebemos que o consumidor ainda não conta com um mecanismo de eficácia plena para garantir sua defesa no que pertine às relações anticoncorrenciais de mercado, defendo por enquanto, tal papel ser exercido inclusive, por ele próprio.

5. Conclusão

            Com isso, verificamos que de fato a proteção efetiva do consumidor não se faz apenas com a simples aplicação do Código de Defesa do Consumidor, pois como afirmamos anteriormente, tal proteção depende de um sistema que vincula todos os atores do processo: empresários, intermediários e consumidores, o que exige a aplicação das regras de proteção as relações de consumo e defesa da concorrência balizadas pelos princípios constitucionais estabelecidos na ordem econômica.

            Por outro lado, cabe lembrar que o consumidor deve considerar como fator de consumo, que nem tudo aquilo que aparenta vantagem possui eficácia plena, pois ainda que traduza vantagem imediata, pode gerar conseqüências futuras indesejáveis e entre elas, o fim da liberdade de escolha que é um dos seus principais direitos.

            Ademais, essa preocupação do consumidor deve estar no tempo presente, pois a eventual prática concorrencial depende de reconhecimento pelo Poder Público a partir de denúncia que resultará em processo administrativo junto ao CADE. Sendo o julgamento proferido em processo administrativo, estará o mercado sujeito ainda a eventual provocação judicial, o que poderá de certa forma arrastar a decisão final por longos anos em prejuízo do mercado e do próprio consumidor.

Notas:

 

 

[1] Sobre o papel da empresa no sistema econômico capitalista sugerimos a leitura do artigo “A Lei de Recuperação de Empresas como instrumento de desenvolvimento econômico” de nossa autoria, disponível em: www.boletimjuridico.com.br.

[2] Revista Desafios do Desenvolvimento, janeiro de 2006, Ano 3, nº 18, p. 64.

(Artigo elaborado em janeiro de 2006)

 

Como citar o texto:

GABRIEL, Sérgio..A prática do dumping e seus reflexos nas relações jurídicas de consumo. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 3, nº 166. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-economico/1050/a-pratica-dumping-seus-reflexos-nas-relacoes-juridicas-consumo. Acesso em 20 fev. 2006.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.