A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, já há algum tempo, vem sendo admitida pela doutrina e jurisprudência, bem como por algumas legislações esparsas.

 

Essa teoria, traduz-se na possibilidade do Juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público, adentrar ao âmago da personalidade jurídica para responsabilizar seus sócios civilmente, sempre que se presenciar a fraude e o abuso do direito, com manifesto propósito de fraudar credores.

 

Agora, trouxe o Novo Código Civil o nobre instituto definitivamente para o lado das disposições de direito positivo, inserindo a respectiva teoria dentro da parte geral do Código Civil, de forma que a sua aplicação não mais ficará restrita a relações específicas, como a de consumo, ou em relação aos crimes ambientais.

Imperioso destacar, que a disregard doctrine tem por fim o aperfeiçoamento da própria teoria da personalidade jurídica, e não a sua revogação, como alguns tentam difundir. A superação da autonomia patrimonial ocorre somente em casos episódicos, e nunca de forma geral.

 

A fim de desconsiderar o fenômeno da personificação, de modo que o patrimônio dos sócios, responda pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, é necessário que se configure a fraude ou abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial. Além disso, é necessária a existência de uma pessoa jurídica (sociedades limitadas ou S.As ), e que não se trate de responsabilização direta do sócio, por ato próprio.

 

Uma das formas mais eloquentes que permitem ao Juiz trazer para a lide em curso, a pessoa dos sócios, é quando se observa o encerramento das atividades da sociedade de forma irregular. Para tanto, é necessário esclarecer as fases que antecedem ao encerramento da sociedade.

 

Com efeito, a Lei exige inúmeras formalidades para que a empresa possa existir, da mesma forma que exige formalidades para as atividades serem encerradas. O artigo 1.033 do Novo Código Civil (artigo 1.399 do Código Civil de 1916) regula a matéria, determinando as hipóteses de dissolução da sociedade, a saber:

Artigo 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer:

I - o vencimento do prazo de duração, salvo se, vencido este e sem oposição de sócio, não entrar a sociedade em liquidação, caso em que se prorrogará por tempo indeterminado;

II - o consenso unânime dos sócios;

III - a deliberação dos sócios, por maioria absoluta, na sociedade de prazo indeterminado;

IV - a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de 180 (cento e oitenta) dias;

V - a extinção, na formada lei, de autorização para funcionar.

 

 

Analisando o dispositivo supracitado, lecionou o festejado mestre Fran Martins, que na extinção da pessoa jurídica, verificam-se períodos distintos, dispondo:

"Ora, a regra estabelecida pela lei civil, dispondo que a existência da pessoa jurídica termina com sua dissolução, merece ser devidamente compreendida. Na realidade, a extinção das sociedades comerciais compreende períodos distintos: um período em que se paralisam todas as atividades externas da sociedade, a que se dá o nome comumente de dissolução; um período em que a sociedade realiza o seu ativo e liquida o passivo, ou seja, transforma todo o seu patrimônio em dinheiro e satisfaz os compromissos assumidos, a que se dá o nome de liquidação; e um período final, que em verdade, não influi na extinção da sociedade, em que se faz distribuição entre os sócios convencional ou proporcionalmente, se não houve acordo no contrato social, dos lucros obtidos pela sociedade, tendo este o nome de partilha."

 

 

Da lição do culto mestre, podemos extrair que somente depois de satisfeitos os três distintos períodos e arquivados no Registro do Comércio os documentos relativos à extinção da pessoa jurídica, é que a sociedade se extinguirá.

 

Agora, imaginemos a seguinte hipótese: o credor de um título executivo extrajudicial em face de uma pessoa jurídica, ajuíza a ação de execução e cita o devedor para pagar ou nomear bens à penhora no prazo de 24 Hs (vinte e quatro horas). O devedor permanece inerte.

 

Assim, passa ao credor o dever de indicar os bens que sofrerão a constrição da penhora para a garantia do débito. Contudo, o oficial de justiça diligenciando para cumprir o mandado de penhora, verifica que a empresa não mais se encontra estabelecida no local de outrora.

 

O credor, desta feita, passa a diligenciar no sentido de localizar o atual paradeiro da pessoa jurídica. Ao solicitar certidão da última alteração contratual no Registro do Comércio, constata-se que a sede da empresa permanece no mesmo local onde o oficial de justiça se dirigiu, e certificou que a empresa não mais está estabelecida.

 

Nesse sentido, inegável afirmar que existem claros indícios de que a empresa encerrou irregularmente suas atividades, sobretudo pelo fato de que tal documento não fazia qualquer menção sobre o encerramento das atividades comerciais, medida basilar para o regular desfazimento de qualquer sociedade negocial. Acaso estivesse operando em outro local, tal endereço deveria estar expressamente consignada na última alteração contratual da sociedade.

 

Verifica-se neste caso, que o credor corre sério risco de não ver seu débito satisfeito e mais, que não se encontra patrimônio em nome da pessoa jurídica suficiente para extinguir a dívida.

 

Por outro lado, constata-se que os sócios utilizaram-se da autonomia patrimonial que goza a pessoa jurídica, para maquinar uma forma de não cumprirem com a obrigação assumida, cientes que as dívidas contraídas pela sociedade, a princípio, não poderiam ser cobradas diretamente das suas pessoas físicas.

 

Neste exemplo, vislumbra-se que os sócios e/ou administradores da sociedade, agiram com abuso da personalidade jurídica, embuídos do espírito de má-fé negocial, desvirtuando a finalidade pela qual o instituto da pessoa jurídica fora criado.

 

É inaceitável, sob qualquer hipótese, que a autonomia patrimonial das sociedades seja utilizada como pano de fundo para que, sejam maquinadas fraudes. Nesses casos, deve a regra da separação patrimonial ceder episodicamente para coibir a fraude e a lesão aos interesses dos credores.

 

A legislação pertinente determina a observação de solenidades no ato da criação e da dissolução da sociedade, conforme asseveram os artigos 338 do Código Comercial e o parágrafo 2º do artigo 51 do Novo Código Civil, a saber:

Art. 338. O distrato da sociedade, ou seja voluntário ou judicial, deve ser inserto no Registro do Comércio, e publicado nos periódicos do domínio social, ou no mais próximo que houver, e na falta deste por anúncios fixados nos lugares públicos; pena de subsistir a responsabilidade de todos os sócios a respeito de quaisquer obrigações que algum deles possa contrair com terceiro em nome da sociedade.

 

Art. 51. Nos casos de dissolução da pessoa jurídica ou cassada a autorização para seu funcionamento, ela subsistirá para os fins de liquidação, até que está se conclua.

§1º - Far-se-á, no registro onde a pessoa jurídica estiver inscrita, a averbação de sua dissolução

 

Todas as obrigações da sociedade devem ser cumpridas antes da sua extinção. A não observância desta norma, enquadra o ato como sendo uma dissolução irregular que, conforme asseverado pelo Desembargador. Antônio Felipe da Silva Neves²:

 

"...a não localização da empresa, ou sua extinção irregular, sem antes cumprir cabalmente todas as suas obrigações, é atentatório à dignidade da Justiça, devendo serem tomadas todas as providências para a obtenção de seus bens, sob pena de, com a ocultação dos mesmos, se abrir oportunidade à fraude, de legítimos créditos, que a executada e seus sócios objetivam frustrar."

 

Esse entendimento é compartilhado por inúmeros Tribunais, notadamente o do Rio de Janeiro. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, infelizmente, por ser extremamente apego às concepções clássicas do direito, quando indagado sobre a aplicação da teoria desconsideração da personalidade jurídica, nos casos de extinção da sociedade sem a inscrição no Registro do Comércio, mostrou-se desfavorável.

 

Para a Quarta Turma do Augusto Tribunal, tal extinção não conota indícios de fraude, a ensejar a adoção de atos executivos em face do patrimônio pessoal dos sócios. Contudo, estamos apenas no início da propagação desta vertente, pelo que podemos ter a convicção que o STJ, em outras oportunidades, buscará se adequar às realidades em que vivemos, adotando o pensamento aqui defendido.

 

Considerações de Direito Processual

Com os recorrentes casos de pedidos desconsideração da personalidade jurídica, surgiu uma dúvida na doutrina: a teoria pode ser aplicada incidentemente no processo em que foi requerida, ou necessita de uma ação autônoma, a fim de se provar as alegações suscitadas?

 

Parta parte da doutrina, existe a necessidade de um processo autônomo para desconsiderar a personalidade jurídica, que trará em seu bojo o devido processo legal, princípio estritamente necessário para justificar a ocorrência de fenômeno de tamanha magnitude. O rito da ação executiva é por demais restrito, e não comporta a dilação probatória que o requerimento da desconsideração requer.

 

Para os juristas que defendem a aplicação da disregard doctrine incidentemente no processo, a dispensa de propositura de ação autônoma para tal, decorre da própria lógica conceitual inerente à formulação da teoria.

 

Uma vez verificados os pressupostos de sua admissão - como visto antes, o abuso da personalidade jurídica para prejudicar terceiros - poderá o juiz, nos próprios autos do requerimento, levantar o véu da pessoa jurídica para que, seus sócios respondam pelas obrigações contraídas pela sociedade.

 

Ou seja, nada impede que a desconsideração seja aplicada nos próprios autos, inclusive no caso de ação execução. Exigir-se a propositura de outra ação, vai de encontro ao conceito da teoria, além de não coadunar com os princípios hoje defendidos por nosso ordenamento jurídico, como o da celeridade e o da efetividade da prestação jurisdicional.

 

No caso da ação executiva, o contraditório e o devido processo legal são resguardados via embargos do devedor, onde poderá se discutir se a inclusão no pólo passivo é legítima ou não, cabendo destacar que o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou favoravelmente à aplicação da teoria da desconsideração incidentemente no processo.

 

CONCLUSÃO

 

O Novo Código Civil trouxe a teoria da desconsideração da personalidade jurídica definitivamente para o lado do ordenamento positivo, inserindo o dispositivo correspondente dentro de sua parte geral. Frise-se que a aplicação da teoria permanece como sendo a exceção, enquanto a regra é o princípio da autonomia patrimonial.

 

Coube aos aplicadores e operadores do direito, a tarefa de verificar em quais casos práticos poderia a disregard doctrine ser aplicada. O caso mais eloqüente de abuso da personalidade jurídica, é o encerramento irregular das atividades, com o intuito de fraudar credores.

 

Determinando a lei certos requisitos para a dissolução de sociedade comercial, a inobservância destas normas pode acarretar prejuízo a terceiros, acaso restem obrigações pendentes.

 

Nesses casos, acaso não se localize bens para solver as dívidas da pessoa jurídica, deve o juiz a requerimento da parte, de forma incidente no processo, desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade devedora, para alcançar os sócios que agiram com manifesto intuito de fraudar credores.

 

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Notas:

Nas sociedades comerciais de cotas ilimitadas, os sócios respondem solidariamente pelos débitos auferidos em face da Empresa, não havendo, muitas vezes, como se distinguir o patrimônio dos sócios e da empresa que representam

2 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 11ª Câmara Cível, julgamento do agravo de instrumento nº 01990/2002, em 08/05/2002.

 

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: RT, 1989.

GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, São Paulo, v. 12, n. 46, out/dez, 1988.

 

KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

MARTINS, Fran, Curso de Direito Comercial, Ed Forense, 10ª edição

REQUIÃO, Rubens, Curso de Direito Comercial, v.1, 14ª ed., São Paulo, Saraiva, 1984.

REQUIÃO, Rubens, Abuso de direito e fraude através de personalidade jurídica ( Disregard Doctrine). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 410, n. 58, dez, 1969.

SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: Ltr, 1999.

Elaborado em 29.03.2003

 

Como citar o texto:

DAVI, Rogério.O encerramento das atividades da sociedade de forma irregular e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 31, nº 50. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-empresarial/131/o-encerramento-atividades-sociedade-forma-irregular-teoria-desconsideracao-personalidade-juridica. Acesso em 3 nov. 2003.

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