INTRODUÇÃO:

O presente artigo científico fará uma análise sobre o abuso de autoridade, estudando aspectos do direito comparado, a história do abuso de autoridade no Brasil e o panorama atual com a lei 13.869/19 em contraste com a antiga lei 4.898/65 e quais as expectativas com relação à primeira haja vista todo o contexto que cerceia tal questão.

Tendo sido feito uma pesquisa não apenas ao que tange os conceitos jurídicos brasileiros, mas também de sistemas conceituados como o francês e o italiano com o intuito de estabelecer parâmetros para comparação e bases para analisar tanto pontos positivos quanto negativos com relação ao nosso próprio sistema.

Porquanto, destaca-se novamente a amplitude que foi almejada neste artigo em se tratando de seu tema e da profundidade que o mesmo tem, buscando diversas vezes referências extrajudiciais mas de grande relevância como um todo, como a literatura, filosofia e história, com o intuito de enriquecer e abastecer o assunto a ser tratado neste artigo.

 

1) NOÇÕES GERAIS SOBRE ABUSO DE AUTORIDADE E DIREITO COMPARADO.

Antes de adentrarmos propriamente em “abuso de autoridade” dever-se-á realizar uma análise sobre o que é autoridade, ou poder, que nesse caso podem ser utilizados como sinônimos. Poder em um senso comum seria a força, tanto física quanto mental, ou seja, ter a capacidade de influenciar ou em alguns casos, comandar, por meio da força ou da moral, da dialética. Todavia o termo “Poder” é de extrema variabilidade, além de possuir diversas interpretações em diversos autores. Assume-se a partir disso, que não existem verdades em se tratando de uma concepção absoluta sobre o que é poder, em função disso, para a análise a ser feita a seguir, serão utilizados os pensamentos do francês Michel Foucault e da alemã Hannah Arendt.

 

2) O PODER EM MICHEL FOUCAULT.

O termo poder para o filósofo francês trata-se de um elemento que independe do Estado, e, de certa forma, até mesmo do homem, já que, para o pensador, o homem é apenas um objeto de transmissão de ideias, poder tem sua maior expressividade no meio das ideias, dessa forma, retificando o homem como sujeito em um Estado o poder dá credito ao homem.

Em seus estudos, desejando criar uma arqueologia das ciências humanas (“As palavras e as coisas” – Michel Foucalt 1966), afirmou que o homem como sujeito de estudo na modernidade estaria morto, e que o “saber” e o “poder” assumiriam tais postos, ou seja, há diante de nós uma estruturação de poder separada da relação homem-estado, a qual historicamente foi o pilar para a descrição de poder. Para Focault, o poder não é criado através dessas relações, pelo contrário, é o próprio criador delas.

Em sua estrutura básica, pode se dizer que o poder nasce nas bases sociais e assim ascende, corroborando com a assertiva de que ele independe do Estado. Foucalt descreve as chamadas “teias de poder” nas quais há uma ramificação do mesmo, distanciando-se da ideia de poder concentrado em uma figura líder ou de um Estado. É nessas “teias” que se situa e se origina o homem como elemento transmissor e usuário desse poder, assim, o poder não pode ser possuído, apenas utilizado.

 

3) O PODER EM HANNAH ARENDT.

Para a pensadora alemã, o poder é extremamente ligado à política, ao contrário dos ideais supra citados, Hannah Arendt estuda o poder como uma forma de consenso social que afunila e credita o Estado ou um líder, sendo uma ótica mais próxima à realidade dos Estados Democráticos atuais.

A democracia é alvo central de seus estudos, como já foi sugerido, em seu ensaio, “O estudo da Violência” de 1970 desenvolve uma crítica ferrenha à violência como matéria constituinte do poder. Pensando nisso, retoma seus estudos às culturas clássicas gregas e romanas (especialmente a grega) na qual o poder era instaurado através do consenso geral, afinal temos na região helênica o primeiro princípio de democracia firmemente estabelecido, tendo como principal exemplo a sociedade ateniense.

Em sua estrutura, nota-se que o Poder aqui não é criador, mas criatura das relações entre homem-estado, em uma inversão aos ideais foucaltianos, o poder não mais credita o homem para com o Estado, em Arendt, o homem não necessita do poder para ser por si só “homem”, mas toma posse do mesmo para agir em nome dos que o legitimaram para tal.

É de se destacar que, devido à grande diferença entres as teses, há uma complementação nítida entre elas, retomando a ideia de que, quando se trata de “poder” (E da mesma forma com diversos outros termos de estrutura simples mas que de extrema expansão interpretativa) não há verdades absolutas, apenas pontos de vista diferenciados, que em vários momentos se cruzam e se complementam.

 

4) O ABUSO DE PODER NO CÓDIGO PENAL FRANCÊS E NA CONSTITUIÇÃO ALEMÃ E NO CÓDIGO PENAL ITALIANO

Os Estados europeus são arcaicos se comparados com o Estado brasileiro, e não apenas o Estado, mas a cultura em si, sendo berço de incontáveis movimentos que mudaram o mundo em tantos segmentos, como os movimentos de romance na literatura; ou o movimento iluminista na filosofia; o movimento socialista na política; etc.

Em se tratando de abuso de poder a França também foi berço da maior e mais influente revolta contra o abuso dessa ferramenta com a chamada Revolução Francesa. Entre 1789 e 1799 uma das maiores potencias europeias se viu contra sua própria população devido ao abuso de regalias e benefícios que a corte e nobres detinham, em contraponto ao restante da população que vivia praticamente na miséria.

É em função disso que o abuso de autoridade possui uma maior importância no âmbito legislativo do país, tendo, diferentemente do Código Penal brasileiro, uma sessão exclusiva para sua manutenção e prescrição tratando sobre modalidades, um tanto quanto diversas, o que evidencia novamente a preocupação para com esse crime, como por exemplo, em seu artigo 432-3 (crimes de abuso de autoridade contra a administração), cujo texto nos diz:

Article 432-3

Le fait, par une personne dépositaire de lautorité publique ou chargée dune mission de service public ou par une personne investie dun mandat électif public, ayant été officiellement informée de la décision ou de la circonstance mettant fin à ses fonctions, de continuer à les exercer, est puni de deux ans demprisonnement et de 30000 euros damende.

Em tradução livre:

Artigo 432-3

O fato de uma pessoa confiada à autoridade pública ou de uma missão de serviço público ou de uma pessoa que ocupa um cargo público, tendo sido oficialmente informada da decisão ou da circunstância que encerra suas funções, continuar a exercê-los, é punível com dois anos de prisão e multa de 30.000 euros. (tradução livre)

Já a Alemanha viu o ápice do autoritarismo e o que o poder em demasia tem potencial para causar, durante o século XX, tendo como ponto máximo a implantação do nazismo e o início da segunda guerra mundial e todas as suas trágicas consequências, em contrapartida foi também a partir do século XX que o país pôs-se na vanguarda de movimentos e avanços científicos, filosóficos e culturais, em oposição à surpreendentemente prematuridade desse Estado se comparado com a própria França, Inglaterra e Itália.

Novamente o código penal traz artigos específicos em se tratando de abusos de autoridade, poucos artigos se comparados com o código penal francês, supracitado, porém com uma redação abrangente e ao mesmo tempo sólida coM pena relativamente alta, como pode ser visto na citação abaixo:

§ 302 StGB Mißbrauch der Amtsgewalt

(1)nbsp; Ein Beamter, der mit dem Vorsatz, dadurch einen anderen an seinen Rechten zu schädigen, seine Befugnis, im Namen des Bundes, eines Landes, eines Gemeindeverbandes, einer Gemeinde oder einer anderen Person des öffentlichen Rechtes als deren Organ in Vollziehung der Gesetze Amtsgeschäfte vorzunehmen, wissentlich mißbraucht, ist mit Freiheitsstrafe von sechs Monaten bis zu fünf Jahren zu bestrafen.

Em tradução livre:

§ 302 StGB abuso de poder oficial

(1) Um funcionário que pretenda prejudicar os direitos de outrem, em nome da Federação, de um estado, de uma associação municipal, de um município ou de qualquer outra pessoa de direito público, como seu órgão na execução das leis. Desempenhar funções oficiais, abusadas conscientemente, deve ser punido com prisão de seis meses a cinco anos.

Em consonância com os elementos jurídicos dos dois países citados acima, a Itália, um dos Estados mais antigos no próprio velho continente também trata do crime de abuso de poder com certa importância. Tendo em sua história recente, justas e proporcionais semelhanças com a Alemanha, em se tratando de governos autoritários.

Berço de um dos mais respeitados ordenamentos jurídicos no mundo inteiro, não seria de se surpreender a prescrição do crime de abuso de autoridade no código penal, mesmo excluindo-se o período de autoritarismo durante o século XX. Em seu texto no Código Penal Italiano, traz o seguinte dispositivo:

Aggravano il reato, quando non ne sono elementi costitutivi o circostanze aggravanti speciali [578nbsp;comma 3,579 comma 3], le circostanze seguenti:

9) laver commesso il fatto con abuso dei poteri, o con violazione dei doveri inerenti a una pubblica funzione o a un pubblico servizio, ovvero alla qualità di ministro di un culto(8);

Em tradução livre pode-se entender da seguinte forma:

O crime é agravado quando as seguintes circunstâncias não são elementos constitutivos ou circunstâncias agravantes especiais [nbsp;578 parágrafo 3,; 579 parágrafo 3]:

9) ter cometido o ato com abuso de poder ou com a violação dos deveres inerentes a uma função pública ou serviço público, ou como ministro de um culto(8);

Observa-se a partir da análise desses 3 diferentes ordenamentos jurídicos que, mesmo por vezes não se tratando de um crime independente e sim como uma circunstância agravante, há uma notável prevenção e punição para com os atos cometidos mediante abuso de autoridade.

Há devidamente vários motivos e fatores que contribuem para devida preocupação com essa forma penal, sejam fatores históricos como regimes absolutistas, sejam a proximidade com movimentos filosóficos que à sua forma se opuseram às autoridades.

5) RENASCIMENTO E ILUMINISMO.

Como dois dos maiores e mais importantes movimentos da história da humanidade alteraram os valores e paradigmas de suas épocas e como isso se conecta com o abuso de poder, essa será a análise que a seguir se fará.

Começando pelo renascimento, movimento este que deu seus primeiros passos no século XIV, é muito conhecido pela população geral como o cerne da divisão entre idade média e idade moderna, trazendo influências em várias áreas como na literatura com Dante Alighieri; Shakespeare; Luís de Camões. Na filosofia com Maquiavel; Nas artes com Leonardo Da Vinci, entre outras.

O Renascimento foi a introdução do pensamento antropocentrista moderno, excluindo-se o teocentrismo medieval, portanto, a autoridade suprema não seria mais a igreja e seus representantes; ora o Renascimento é de suma importância para este tema não por combate-lo, mas por instaurar o que por muito tempo foi o modelo de autoridade abusiva, modelo este que por exemplo resultou na famosa revolução francesa, já citada neste artigo; este modelo de autoridade abusiva pode ser descrito numa releitura de frase em Hamlet feita por Leandro Karnal que diz respeito à todas as variações dessa forma de abuso “Há algo de podre no reino da Dinamarca”.

Já assumindo um ponto de vista do historiador Leandro Karnal sobre o personagem shakespeariano, segundo o mesmo, a personagem principal percebe a corrupção desde os níveis mais primordiais de suas relações, não apenas na política mas em sua própria família, conceito que reforça a ideia de microfísica do poder do autor Michel Foucault.

Em contraponto com a podridão em Shakespeare, é no período renascentista que reis, príncipes, nobres assumem ou são assumidos, ironicamente, como figuras endeusadas, como ícones, como o ápice da sociedade, isso se dava principalmente através de pinturas e esculturas que refletem em uma instauração cultural de autoridades abusivas.

Ademais, em se tratando de instauração cultural de abuso de autoridade, há Maquiavel com “O Príncipe” no qual assume que o posicionamento perfeito para um governante que pretende se manter no poder é ser temido pela população. Não é de se impressionar que a famosa frase “os fins justificam os meios” é associada à esse autor e suas orientações políticas.

É possível observar realmente um novo nascimento cultural nesse período com novos autores, críticos e pensadores que à sua maneira guiaram o desenrolar da história, ora temos Shakespeare com uma crítica política, ora temos Maquiavel com um guia ao totalitarismo político, só ressaltando a importância que a literatura (e outras ciências de igual relevância histórica) teve nesse período para a reformulação cultural que a Europa viria a passar nessa época.

Já o Iluminismo, que ocorreu no século XVIII, muito influenciado pelos ideais revolucionários franceses: Liberdade, igualdade e fraternidade. Fez uma dura crítica ao absolutismo, modelo político predominante durante o período renascentista, com John Locke, Voltaire, Montesquieu e vários outros filósofos da época.

Se o Renascimento foi a introdução para os governos absolutistas e autoritários, o Iluminismo seria o fim deles, ou deveria ser, sendo um movimento puramente filosófico desta vez, buscava a reforma política em um Estado liberal. Ideais burgueses, liberalismo econômico, muito discorrido por Adam Smith, dando os primeiros passos do capitalismo como ideologia.

Já no meio de administração política foi com uma das teorias mais importantes no meio jurídico até hoje, que Montesquieu buscou combater a centralização do poder nas mãos de um governante com a teoria da tripartição dos poderes em: Legislativo; Executivo e Judiciário. Com isso, o pensador esperava ao menos diminuir os casos de abuso de autoridade e corrupção no governo, ao admitir a possibilidade de cada poder monitorar o outro, o que viria a ser chamado de sistema de freios e contrapesos.

Aliado à ideia de Montesquieu, Jean Jaques Rousseau também procurou combater o absolutismo, em sua obra “O contrato social” defende a instalação de um regime democrático como o único capaz de legitimar o poder do governante.

Portanto temos um modelo de governo com poderes e atribuições divididos, os quais são legitimados pelo povo através de um regime democrático, em contraponto com os governos absolutistas anteriores, nota-se a partir dos fatos apurados a importância do movimento iluminista na luta contra o abuso de autoridade, com obras que são discutidas e estudadas até hoje como “Ensaio sobre o entendimento humano” de John Locke; “O Espírito das Leis” de Montesquieu; e “A riqueza das nações” de Adam Smith.

 

6) COMO O BRASIL TRATA O ABUSO DE PODER.

Ao se analisar conteúdos jurídicos de outros países da forma que fora feito anteriormente neste artigo, percebe-se a qualidade dos juristas brasileiros, especialmente caso seja levado em conta o aspecto temporal do Estado, países como Itália e França são civilizações extremamente antigas (tomando como base a forma de Estado que conhecemos) e portanto “devem” ter um ordenamento jurídico mais complexo.

Em uma comparação mais profunda, tomando como base o primeiro princípio de Estado que o Brasil teve como sendo em 1808 com a vinda da família real portuguesa, resta-nos 211 anos de Estado passível de comparação com os Estados europeus, reforçando a partir disso a jovialidade do Estado brasileiro.

Alternando o prisma de análise, o histórico de abuso de autoridade é muito presente para com a população desses países, na França temos não só a maior revolta contra o abuso de autoridade na Revolução francesa, mas também a maior luta filosófica contra a mesma modalidade no iluminismo. Na Itália e na Alemanha houveram governos altamente autoritários e com direta influência em diversos confrontos, confrontos estes que não se mantiveram dentro da fronteira desses países.

Já no Brasil, os dois maiores exemplos e períodos de abuso de poder político ocorreram na Era Vargas (mais precisamente no Estado Novo) e no período de governo militar; períodos de extrema importância histórica no país e que são deveras recentes, ambos ocorrendo no século XX, mesma época dos governos absolutistas italiano e alemão.

Norteando-se a partir dos fatos elencados acima, espera-se desses países cujo histórico de abuso de poder é contundente, que tal crime tenha sua devida prescrição e penalidade em seus ordenamentos jurídicos, o que de fato acontece, à exceção do Brasil.

Excluindo-se artigos “largados” em constituições passadas e até na atual, além de uma lei (4.989/65) o país não tinha uma ferramenta para lidar com este crime, afinal não chegava nem ao patamar de crime, devido ao fato da falta de prescrição legal que outrora era presente; até a promulgação da lei nº 13.869/19, cuja efetividade e características serão avaliados futuramente.

 

7) HISTÓRICO SOBRE ABUSO DE AUTORIDADE NO BRASIL.

Para se estudar qualquer tipo de diploma normativo é necessário, antes de mais nada, analisar o seu histórico, o qual reflete o pensamento de época no qual o debate foi travado. Trata-se de analisar tanto a mens legislatoris, ou seja, O pensamento, a vontade, a intenção, o motivo e o fim que teve o legislador ao formular a lei, bem como, os seus impactos após a edição desta.

No que se refere ao abuso de autoridade, entende-se que quem usa de qualquer tipo de autoridade por delegação do Estado pode dela se desviar eventualmente abusando. Dessa maneira, devemos, antes de tudo, analisar as etapas históricas da normatização do tema até o seu ponto atual, que é a lei 13.869/19, a qual gerou debates intensos e por longos anos.

 

7.1) PROJETO BILAC PINTO:

O debate acerca do que se entenda por abuso de autoridade é antigo e remonta tempos imemoriais do direito. Informa-nos Daniel Almeida Westphal que a Bill of Rights de 1689 em seu artigo 5º, destaca-se por criar o direito do súdito de representar à figura do rei, por meio de petição, prisões e perseguições sofridas, nos seguintes termos “Que os súditos têm direitos de apresentar petições ao Rei, sendo ilegais as prisões vexações de qualquer espécie que sofram por esta causa. (on line, 2019)

Logo, se nota que no sobredito documento histórico, já se fazia menção a atos de autoridade que poderiam ser vistos como abusivos e violação dos direitos individuais, sendo que, em todas as leis posteriores do ocidente tal ideia ainda foi mantida.

No Brasil o Código Criminal do Império, aliás, um dos melhores textos penais da nossa história, já trouxe, embora de forma opaca, uma responsabilização de autoridades que cometem abusos, a saber:

Art. 2º Julgar-se-ha crime, ou delicto:

[...]

3º O abuso de poder, que consiste no uso do poder (conferido por Lei) contra os interesses publicos, ou em prejuizo de particulares, sem que a utilidade pública o exija. (BRASIL, 1830)

O histórico da normatização do abuso de autoridade remonta ao início do século XX com vários projetos de lei que tentavam regulamentar o uso da autoridade pública com a finalidade de se evitarem abusos que são distorções na atuação de qualquer pessoa que exerce qualquer tipo de poder em nome do Estado.

Especificamente, após tais elementos históricos já mencionados, o primeiro projeto de lei especial foi proposto pelo jurista Olavo Bilac Pinto (1908-1985). Formado em direito pela faculdade federal de Minas Gerais em 1929, desde esse momento constituindo uma carreira na qual exerceu cargos de importante relevância ao longo dela, como: Deputado Federal; Presidente da Câmara dos Deputados; Ministro do Supremo Tribunal Federal; Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF, 2019)

Especialista em criminologia, desenvolveu entre muitos projetos de lei, o projeto que originou a lei 4.898/65, que é de extrema relevância histórica para o presente artigo. O projeto n. 952, de 1956 trata da representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal em casos de abuso de autoridade (STF, 2019).

O devido projeto estabeleceu diversas características tanto processuais quanto conceituais, em se tratando de crimes de abuso de autoridade, além de definir as autoridades a que o tipo penal possa ser aplicado (Art. 5º), os atos que constituem o tipo penal (Arts. 3º e 4º), as sanções aplicadas em suas devidas instâncias: civis, administrativas e penais (Art. 6º). Além das circunstâncias de processo, desde a maneira como a representação se estabelece (Arts 1º e 2º), até no tempo para citar autoridade culpada e designar data de audiência, de instrução e julgamento (Art 17). (STF, 2019)

Nas palavras de seu Legislador, a proposta que futuramente se tornaria Lei Federal, tinha como objetivo “complementar a Constituição para que os direitos e garantias nela assegurados deixem de constituir letra morta”. (STF, 2019)

É portanto, uma respeitável tentativa de combater e punir os crimes que eram, e são até hoje, muito comuns, em todo o país. Foi revogada esse ano (2019) pela Lei 13.869 que apesar de ter, de fato, revogado, teve suas influências, devidamente extraídas e adaptadas, da Lei 4.898/65. (STF, 2019)

 

8) NOÇÕES GERAIS SOBRE A ANTIGA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE:

A lei 4.898/65 como dito anteriormente, fez uso praticamente literal do projeto de lei nº 952 elaborado por Bilac Pinto como base, portanto, traz em seu texto, direitos garantidos às autoridades acusadas de crime de abuso de autoridade, como a representação e processos de responsabilidade civil, penal e administrativo. Além de estabelecer quais são os crimes sancionados pela Lei, e a forma como a sanção ocorrerá, ou seja, o processo em todas as suas instâncias.

Grande parte do texto da Lei, trata na verdade das questões processuais, tais como prazos, representação, denúncia, e do próprio desenrolar da questão como a hora em que será aberta a audiência, tempo para o debate, e até para, no caso de atraso de mais de trinta minutos do juiz, que os presentes possam se retirar do local, caso queiram (Art. 20). E também exceções como nos casos do artigo 27, que trata da possibilidade de inobservância dos prazos estabelecidos pela lei, devido à empecilhos relacionados à mobilidade até as comarcas.

Nota-se portanto, um maior zelo para o devido cumprimento do processo legal, do que para com os próprios crimes de abuso de autoridade, que são tratados de forma um tanto quanto superficial, situação que se agrava ainda mais se observado pelos parâmetros atuais.

 

8.1) QUEM SE CONSIDERAVA AUTORIDADE PARA FINS DE APLICAÇÃO DA LEI:

O art.5º da Lei 4.898/65 diz: “Considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração”

Trata-se portanto, de uma norma de eficácia parcialmente vertical, pois na relação de abuso de autoridade entre Estado e população, que a lei pretender remediar, não estão inclusos certos cargos específicos de agentes públicos, portanto, não engloba todos a quem poderia englobar, reduzindo drasticamente a eficácia da Lei. Para maior entendimento sobre quem são os agentes públicos, adotamos o pensamento de Hely Lopes Meirelles.

O autor divide o termo “agente público” em: agentes políticos, administrativos, honoríficos, delegados e credenciados.

Os primeiros compunham os altos escalões do poder público, são os chefes do Executivo, e todos os seus auxiliares (Ministros de Estado, Secretários Estaduais e Municipais), membros do Poder Legislativo, magistrados, membros do Ministério Público, membros dos tribunais de contas e diplomatas.

Já os agentes administrativos são aqueles que exercem uma atividade de natureza profissional e remunerados, sendo subdivididos em:

Servidores públicos: mantêm relação funcional com o Estado, de caráter estatuário (A relação jurídica entre Estado e agente é estabelecida por Lei), são titulares de cargos públicos de provimento efetivos ou comissionados. Ex: fiscal do IBAMA.

Empregados públicos: mantêm a mesma relação com o Estado, porém com caráter trabalhista (regido pela CLT). Ex: Empregados do Banco do Brasil.

Temporários: são contratados por tempo determinado para atender necessidade de excepcional interesse público (previsto no art. 37, IX da CF). Ex: professor substituto em universidade federal.

Os agentes honoríficos são cidadãos designados para exercer função pública temporariamente, sem qualquer vínculo administrativo, ou remuneração, entretanto, enquanto a desempenham, se encontram inseridos na hierarquia do órgão. Ex: jurados, membros do Conselho Tutelar, etc.

Os agentes delegados são particulares contratados pelo Estado (como um processo de terceirização), que apesar de colaborarem com o mesmo, não agem em nome dele, por isso não são servidores públicos. Ex: tradutores públicos.

Os agentes credenciados são aqueles que recebem da administração a responsabilidade de representá-la em determinado evento ou atividade. São os casos de atletas que representam o Brasil nas olimpíadas.

É a partir desta conceituação que é possível aferir que, pelo uso de uma redação não específica, os agentes públicos políticos não podiam ser sujeito ativo no crime de abuso de autoridade, enquanto todos os outros agentes caracterizavam a descrição do tipo penal trazido pela Lei 4.898.

 

8.2) A POLÊMICA SOBRE OS MEMBROS DO PODER JUDICIÁRIO E DO MINISTÉRIO PÚBLICO:

Diz o texto da constituição em seu artigo 5º caput 1ª parte “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Partindo desse pressuposto é competente o pensamento de que, em uma lei cuja vigência se propunha a “combater” o abuso de autoridade não haja distinções entre as autoridades, este, infelizmente, não é o caso da lei nº 4.898/65 ou de outros textos de mesmo propósito anteriores à lei nº 13.869/19, essa última que desde seu status de Projeto de Lei, causou manifestações contra a sua promulgação.

O porquê dessas manifestações, segundo os próprios manifestantes (membros do MP, do Judiciário, magistrados, membros de tribunais superiores, etc.) É a suposta limitação que a dita lei traz para suas ações, como investigações e julgamentos; tal situação, anterior à lei nº 13.869/19 era realizada de forma praticamente livre, devido à falta de especificidade ou até de ignorância de leis e/ou códigos anteriores à lei que é tema principal deste artigo.

Voltando ao começo deste tópico, se todos são iguais perante a lei, tal conceito dever-se-á ser aplicado à todas as autoridades, em se tratando de crime de abuso de autoridade, afinal, caso não o seja, seria uma questão de inconstitucionalidade. As polêmicas então, são previsíveis, já que as ações de autoridades no geral deverão ser regulamentadas baseadas na nova tipificação penal, para a boa utilização do instrumento de poder que lhes é atribuído em prol de seus cargos. Por isso, é necessária a adaptação das respectivas autoridades que se viram, erroneamente, prejudicadas pela vigência da nova e competente lei.

 

9) ANÁLISE DA LEI 13.869/19:

Enfim foi sancionada no ano de 2019 a lei 13.869, visando combater e prevenir o abuso de autoridade no país. Traz mais especificidade, mais tipificação penal, e mais abrangência à esse crime; é notável que durante o processo de formação da lei foram levados em consideração vários fatores práticos que eram deixados de lado até então, como futuramente será visto.

Inicialmente, o texto já renova o conceito de autoridade às quais poderão e deverão ser aplicadas as normas presentes no mesmo, excluindo assim qualquer possibilidade de favorecimento de certas autoridades, sendo elas: servidores públicos e militares (ou pessoas equiparadas); membros do Poder Legislativo; membros do Poder Judiciário; membros do Poder Executivo; membros do Ministério Público; membros dos tribunais ou conselhos de contas; além daqueles que exercem cargos transitória ou temporariamente com ou sem remuneração por qualquer forma de investidura.

Outro fator que vale ser ressaltado é a preocupação com situações muito presentes na prática jurídica diária, que não tinham a mesma relevância anteriormente, como pode ser claramente observado no artigo 12 desta lei. Mais uma vez salientando que o abuso de autoridade não provém apenas da maior autoridade, mas pode se demonstrar mediante qualquer relação de poder.

Art. 12. Deixar injustificadamente de comunicar prisão em flagrante à autoridade judiciária no prazo legal:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem:

I - deixa de comunicar, imediatamente, a execução de prisão temporária ou preventiva à autoridade judiciária que a decretou;

II - deixa de comunicar, imediatamente, a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontra à sua família ou à pessoa por ela indicada;

III - deixa de entregar ao preso, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão e os nomes do condutor e das testemunhas;

IV - prolonga a execução de pena privativa de liberdade, de prisão temporária, de prisão preventiva, de medida de segurança ou de internação, deixando, sem motivo justo e excepcionalíssimo, de executar o alvará de soltura imediatamente após recebido ou de promover a soltura do preso quando esgotado o prazo judicial ou legal.

Sendo essas duas as características mais marcantes e relevantes à essa análise, já que em síntese, esse novo texto aperfeiçoou e adaptou tanto a lei 4.898/64 quanto conceitos sobre poder para o contexto atual do Brasil, tanto a especificidade aliada à uma abrangência; quanto a preocupação para as relações menores, muito mais práticas e corriqueiras, tornam essa lei genuinamente atual. É a lei que o sistema e a situação jurídica atual necessitavam. E talvez essa seja a frase que melhor defina este texto jurídico, era necessário.

Um veredito para a análise em questão, em poucas palavras seria: a prospecção futura para a Lei 13.869/19 é promissora. Como dito antes é uma lei que se encaixa às necessidades atuais e por isso deve ser deveras eficaz tanto no combate quanto na prevenção aos crimes de abuso de autoridade. Não tem como função, e nunca será a solução para os problemas que visa combater, é, como toda a lei, um instrumento, uma ferramenta para a manutenção e prevenção de um objeto, que no presente caso é o abuso de autoridade.

 

10) CONCLUSÃO

Com o presente artigo, o qual não tem a pretensão de se esgotar o tema, porquanto, da mais alta relevância, observamos que o conceito de autoridade para fins de caracterização da lei, tem passado por mudanças significativas.

Desde o projeto Bilac Pinto, o qual foi mencionado, verificamos que há a percepção da problemática do abuso de autoridade pelos juristas e a ação propriamente dita contra essa questão, não entrando no mérito de ter-se resolvido ou não. Vale constar a iniciativa e a preocupação que à época foram extremamente convenientes e que com toda a certeza motivou e inspirou a redação da nova Lei que tange sobre o mesmo assunto.

Segundo na mesma esteira, a antiga lei de abuso de autoridade, Lei 4898, se trouxe com mais clareza a responsabilização dos agentes públicos, entretanto com pouca clareza aos agentes políticos, principalmente do primeiro escalão dos poderes; sendo esse o ponto de partida da Lei 13.869/19 que complementa e implementa muitos dos erros cometidos na redação de sua antecessora, não apenas em se tratando da responsabilização, mas também na abrangência dos crimes tipificados na lei, e na maior diversidade deles.

Por fim, com a novíssima lei de abuso de autoridade, a qual ainda encontra muitas polêmicas e resistências, nota-se uma expansão dos conceitos, uma clareza para com a interpretação, não permitindo tantas brechas, além de uma vasta gama de novas tipificações criminais, entretanto, deve-se ter muita cautela ao julgá-la por hora, é um texto de direito extremamente benfeitor no papel, mas que antes de tudo deve ser aplicado corretamente pelos instrumentalistas do direito e respeitada por todos que agora, circulam sob seu radar.

 

REFERÊNCIAS

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STF. Ministros. encontrado em: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stfamp;id=224. acesso no dia 14/11/2019. nbsp;nbsp;

WESTPHAL, Daniel Almeida. VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO”: UMA ANÁLISE ACERCA DA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE, LEI Nº 4.898/65. encontrado em: https://jus.com.br/artigos/75789/voce-sabe-com-quem-esta-falando-uma-analise-acerca-da-lei-de-abuso-de-autoridade-lei-n-4-898-65. acesso no dia 14/11/2019.

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ANÁLISE RENASCIMENTO – encontrado em https://www.todamateria.com.br/renascimento-caracteristicas-e-contexto-historico/nbsp;nbsp; acesso 12/12/2019

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ERA VARGAS – encontrado em https://www.sohistoria.com.br/ef2/eravargas/nbsp;nbsp; acesso 16/12/2019

Data da conclusão/última revisão: 2/3/2020

 

Como citar o texto:

LIMA, Adriano Gouveia; MOLOSSI, João Victor Baccin..O abuso de autoridade e as modalidades de aplicação da Lei 13.869/19. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 972. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/10064/o-abuso-autoridade-as-modalidades-aplicacao-lei-13-869-19. Acesso em 4 abr. 2020.

Importante:

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