Um dos maiores tabus no Brasil faz referência à existência de um órgão de defesa dos Direitos Humanos nas organizações policiais. Isso se dá pelo fato de na instituição policial haver um preconceito contra a defesa dois Direitos Humanos, como se defender Direitos Humanos fosse defender bandidos. Investigar os direitos das pessoas é tema do qual a humanidade tem se ocupado desde os primeiros instantes do convívio em sociedade. Mas na polícia isso é um tabu. A história pode ser buscada com a atenção voltada apenas para os acontecimentos importantes registrados ao longo do tempo. Todavia, para compreender o presente e as perspectivas vislumbradas no futuro é preciso estudar e investigar o passado. Desta forma, este artigo tem por objetivo geral identificar as principais dificuldades à promoção e proteção dos Direitos Humanos nas organizações policiais brasileiras, além de especificamente entender o Papel do Estado e os conflitos de segurança; identificar ações de democratização das organizações policiais brasileiras; e, apresentar propostas concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural para implantação de Direitos Humanos nas organizações policiais brasileiras; identificar tação que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam a sua plena realização. O PNDH é resultante de um longo e muitas vezes penoso processo de democratização da sociedade e do Estado Brasileiro. A pesquisa considerou os aspectos da pesquisa qualitativa, bibliográfica e dialética. Qualitativa, pois procurou dimensionar apenas aspectos importantes deste recorte histórico e epistemológico, sem considerar números. Bibliográfica, por que foi realizada a partir de uma bibliografia selecionada a respeito do assunto. E, dialética, pois, procurou discutir argumentativamente os principais princípios da democratização da segurança pública.

INTRODUÇÃO

O tema deste artigo tem como finalidade demonstrar a extrema necessidade de que se tenha na estrutura organizacional das organizações policiais Programas de Direitos Humanos que tenham como vetor social de desenvolvimento técnico-profissional de todos os policiais.

Há muito tempo se discute no Brasil, uma Política séria de Direitos Humanos, mas uma concepção equivocada do que seja Direitos Humanos e um intenso combate de pessoas e instituições contrárias à defesa dos Direitos Humanos tem causado preocupações gerais. Para essas pessoas defender Direitos Humanos é defender bandidos. 

Já no governo Fernando Henrique Cardoso a discussão em torno dos Direitos Humanos ganhou corpo e causava estranheza ao então Presidente da República que o Brasil desenvolvesse um debate bastante superficial e insuficiente a respeito de um tema que no campo internacional ganhava corpo, inclusive no campo da implantação de órgãos de controle de Direitos Humanos nas organizações policiais.

Na verdade o tema “Direitos Humanos” não é um assunto que não é muito bem visto pelas organizações policiais que na maioria dos casos acredita que Direitos Humanos são direitos de bandidos, apresentando uma visão equivocada dos Direitos Humanos que também envolvem o direito das vítimas e os direitos dos policiais. Nas organizações policiais, existe uma verdadeira aversão a qualquer comissão de Direitos Humanos, seja esta oriunda da OAB ou qualquer outra ONG’s que trabalhe com controle da ação policial, inclusive das próprias corregedorias de policia. Houve no Brasil, uma verdadeira grita geral dos órgãos de segurança pública, quando da criação da Comissão Nacional da Verdade, estabelecida pela Lei nº 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012 cuja principal finalidade era de apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. È importante ressaltar que a Constituição de 1988 é signatária dos principais documentos de proteção dos Direitos Humanos internacionais, sendo considerado um compêndio normativo da cidadania e seu art. 4º diz que as relações internacionais brasileiras se regem pela “prevalência dos Direitos Humanos”. 

Desde ao advento da CF/1988 que o Estado brasileiro vem imprimindo várias ações nas esferas internacionais e interna em busca de garantir os preceitos constitucionais dos Direitos Humanos, por serem esses direitos de interesse de toda a Comunidade Internacional. O Brasil é signatário de mecanismos judiciais internacionais de proteção dos Direitos Humanos, como a Corte Interamericana e a Corte Europeia de Direitos Humanos, além de fazer parte de organismos que não tem cunho judicial como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ou Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Mas apesar do Estado brasileiro está neste caminho, desde 1988 com advento da Carta Constitucional, os Direitos Humanos ainda não fazem parte do vernáculo policial brasileiro. Neste sentido, este artigo discute as ideologias que sustentam as organizações policiais brasileiras. Desta forma, este artigo tem por objetivo geral identificar as principais dificuldades à promoção e proteção dos Direitos Humanos nas organizações policiais brasileiras, além de especificamente entender o Papel do Estado e os conflitos de segurança; identificar ações de democratização das organizações policiais brasileiras; e, apresentar propostas concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural para implantação de Direitos Humanos nas organizações policiais brasileiras; identificar tação que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam a sua plena realização. O PNDH é resultante de um longo e muitas vezes penoso processo de democratização da sociedade e do Estado Brasileiro.

 O Programa Nacional de Direitos Humanos elaborados pelo Ministério da Justiça em parceria com organizações da sociedade civil tem como foco os cidadãos brasileiros e é uma afirmativa do Estado brasileiro de sua condição de signatário dos compromissos internacionais do Brasil, na luta contra a violência em geral. 

Nesse programa brasileiro de Direitos Humanos (PNDH) são traçados diagnósticos da situação e das dificuldades para que os Direitos Humanos se afirme no Brasil como política pública, além de se elencar as prioridades para a promoção dos direitos humanos e propostas concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam a sua plena realização. 

Com isso queremos dizer que, conquanto reconheçamos como democráticas uma série de tarefas e ações pontuais de segurança pública no interior da sociedade, principalmente a partir do advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a Constituição da Cidadania, no interior da sociedade, essas não serão objetivo do nosso trabalho, por se tratarem de ações individualizadas, mesmo que possibilitem um telos democrático, mas que não se sustentam como política pública numa relação sistemática com o Estado brasileiro, característica fundamental de qualquer processo democrático.   

Há formas diferentes de se colocar a questão no interior da atividade sistemática de democratização da segurança pública. Nossa questão se refere àquelas atividades que não a democratização da segurança pública como fim, e sim como meio. Promove-se democratização da segurança pública para... O objeto da democratização da segurança a que estamos visando não se encontra no interior do processo, nem se constitui mesmo no seu objetivo específico. 

O ato de democratizar a segurança pública se reflete de fora do seu processo. É no mundo exterior que se reencontra o seu sentido completo. Com tal atividade se dimensiona preferencialmente na instituição, por exemplo, por excelência identificada e criada para tal fim, a polícia, é de sua atividade e de seu produto que estaremos tratados neste trabalho. 

Sabemos a dificuldade de tratar uma questão como essa realizando um corte na História, como se quiséssemos recusar a importância do processo que ultrapassa qualquer barreira de tempo e espaço, em mais de 500 anos de história da sociedade brasileira. Mas o importante é tratar da questão da democratização na segurança pública a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que rompeu definitivamente com todos os laços da autocracia existente no país, por mais que as instituições, até hoje, continuem enraizadas historicamente com os ranços do passado. 

Também, convém assinalar, desde já, que não nos filiamos a qualquer corrente teórica que julga poder analisar um fenômeno social isolado das determinações múltiplas que o produziram e são também por ele produzidas, acorrentando- nas amarras de um modelo que se quer supra-histórico. Então por que a partir da CF de 1988? O momento aqui assinalado como um recorte histórico deve ser reconhecido como um recorte epistemológico Assumiu ser possível à determinação de um momento epistemológico quando se pode identificar, pela prática do conhecimento, pela efetividade, um princípio norteador de um novo momento de conhecimento, de uma nova etapa nas políticas públicas de segurança. É novo na medida em que representa uma forma mais acabada de superação do momento anterior. O mesmo ocorre na história ou em qualquer dimensão. 

A pesquisa considerou os aspectos da pesquisa qualitativa, bibliográfica e dialética. Qualitativa, pois procurou dimensionar apenas aspectos importantes deste recorte histórico e epistemológico, sem considerar números. Bibliográfica, por que foi realizada a partir de uma bibliografia selecionada a respeito do assunto. E, dialética, pois, procurou discutir argumentativamente os principais princípios da democratização da segurança pública. 

 

1 O ESTADO BRASILEIRO, OS CONFLITOS E A SEGURANÇA

A análise do comportamento do Estado brasileiro, principalmente a partir da industrialização, fortalecida no Governo de Getúlio Vargas, vai indicar que sua presença se dá de modo efetivo e progressivo através dos setores estatais criados ou redefinidos em função dos interesses do projeto capitalista. Segundo Coutinho (2013, p. 33) pode definir a ação do Estado por dois setores básicos que viabilizam sua ação: 

O setor produtivo e o setor de investimentos públicos. Ambos procuram realizar objetivos basilares da ação do Estado, na sua dupla função técnica e política, procurando atender às exigências básicas do capital. Tanto no setor produtivo quanto no setor público convém, já assinalar que o que orienta a ação do Estado é a determinação de preenchimento das carências fundamentais que permitirão a expansão do capital. O setor produtivo se constitui nos Estados brasileiros, em razão da ampliação do nível de participação do Estado diretamente na economia primeiramente como força auxiliar e, em seguida, da própria necessidade de reorganizar a empresa do Estado, a fim de que a mesma possa gozar de certa margem de independência frente ao sistema, podendo assim funcionar dentro das exigências organizacionais do próprio modo de produção capitalista.   

Pode-se, no entanto, divisar riscos para o sucesso do projeto capitalista. Esses riscos podem ser tanto de ordem externa quanto de ordem interna, todos eles consubstanciados, mais tarde, na chamada política de segurança, que visa dotar o Estado de condições de autodefesa, primeiro do inimigo externo, identificado nos Estados defensores de uma economia não capitalista. Isso arrasta o Estado brasileiro a uma tácita e efetiva no chamado Bloco Ocidental, participando de alianças que garantam a segurança e defesa dos valores do mundo ocidental e cristão, cuja semântica aponta, na sua interpretação mais fiel, para os valores do mundo capitalista ocidental. 

Essa mesma concepção de segurança se reveste em segundo lugar, de princípios que nortearão as ações internas. O inimigo é o mesmo, isto é, todas as forças capazes de colocar em risco ao que Coutinho (2013) chama de “paz social”, identificada como resultante de uma ordem Interna coesa em torno dos interesses maiores dos valores “ocidentais e cristãos”, isto é, interesses igualmente traduzíveis pelos parâmetros do capital. E a segurança pública será o braço forte do desenvolvimento. Logo o binômio “Segurança e Desenvolvimento” serão não apenas o princípio, mas condição de um e de outro. Para Coutinho (2013, p. 34): 

A doutrina da segurança vai, assim, sendo elaborada e reinterpretada, pois, cada ação ameaçadora da ordem interna e da paz social, na realização do projeto capitalista, é assumida como ameaça à segurança. E assim, todos os movimentos que concorrem para desacelerar a política de acumulação – como as reivindicações salariais, que, na sua radicalidade, acabam por se expressar em forma de greve – são analisados como conturbações de ordem social que precisam ser tratados pela polícia. 

Do mesmo modo, na sua extensão maior, todas as iniciativas do Estado, capazes de interceptar desordens sociais (da repressão à política social) igualmente fazem parte da segurança, pois, procuravam garantir a ordem social. Nessa direção, o conceito de segurança acaba por tomar um sentido praticamente universal, podendo ser enquadrada no conceito todas as ações que produzem movimento social. E o conceito de segurança se torna, principalmente após 1964, a chave para compreender a ação do Estado brasileiro. 

Convém, então, enfocar, a questão central do desenvolvimento no sentido lato do conceito. Ao Estado se atribui a tarefa de manter as condições necessárias ao pleno desenvolvimento da sociedade. Deve, para isso, administrar as crises internas do bloco no poder, em função dos interesses econômicos e sociais conflitantes (capital agrário versus capital industrial, capital monopolista versus capital concorrencial, capital nacional versus capital multinacional), bem como os conflitos possíveis frente ao crescimento da concorrência, por parte das camadas subalternas, de que o desenvolvimento não se faz a seu favor, mas à custa de seus interesses. Tal consciência é despertada diretamente pela política de controle salarial, pela vinculação dos sindicatos ao poder central, pela concentração de renda, etc. 

Tais conflitos podem produzir, como consequência, prejuízos para o próprio projeto capitalista. Conflitos no interior dos grupos dominantes acabam por desorganizar a ação do Estado, tornado indefinido os projetos de suas iniciativas e responsabilidade. 

Isto pode ser notado, por exemplo, no setor siderúrgico, em que os interesses divergentes entre burguesias dominantes atrasaram o plano siderúrgico nacional, que acabou por ter uma definição apenas em 1941 com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, e com a Instalação da Usina de Volta Redonda, em 1943[1]

Da mesma forma, os interesses da oligarquia tradicional rural (do café e do açúcar, por exemplo) contra os das camadas urbanas e industriais mantiveram, ainda durante muito tempo, o Estado comprometido com a compra de excedentes de produção, ao mesmo tempo em que realizava o confisco cambial para transferência de renda para o setor industrial, política esta que se constituiria como via necessária para o equilíbrio do balanço de pagamentos. Ianni (2017, p. 137) diz: 

Em nível das camadas subalternas, o conflito se torna mais profundo. À medida que crescem as exigências de expansão da acumulação, a exploração intensiva do trabalho e a apropriação da mais-valia[2], cresce também a força do poder reivindicador das camadas subalternas, colocando em cheque o sistema de acumulação e, portanto, a reprodução ampliada do capital. Essa força de reivindicação das camadas subalternas é reforçada pela estrutura de poder, montada sobre os alicerces do pacto populista e liberal.     

Até 1961, O Estado se organiza segundo um compromisso de estilo populista, que mantém, de certa forma, sob controle só interesses conflitantes dos diversos segmentos, a partir de uma polícia repressora e violenta. De 1961 a 1964, o Brasil vive outro momento: um momento em que, procura-se instituir instrumentos democráticos no aparelho estatal. Essa proposta é esmagada pelos militares. 

Uma rápida passagem por essas questões permite divisar nos desdobramentos da história brasileira, os arranjos realizados no âmbito do Estado e da sociedade que permitiram o impulsionaram o crescente fortalecimento dos aparelhos políticos do Estado (especialmente, e de modo singular o poder executivo), na direção de manter o modelo econômico, nem que seja pelo uso da força. 

Esse fortalecimento do pode executivo faz convergir para ele, praticamente, todas as decisões do governo e, medida em que assume as funções próprias do Estado, possibilita confundir suas ações com as ações do Estado. Como consequência, as crises ocorridas em nível de poder executivo se refletem igualmente como crises do Estado.  Desta forma, a segurança pública se reflete exatamente na posição do poder executivo, que forma uma polícia militarizada, com atitudes repressoras e violentas que desrespeitam profundamente os direitos mais elementares do cidadão. 

 

2 DEMOCRATIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA   

A democratização da segurança pública tem sido encarada tem sido encarada sob diferentes ângulos. Os órgãos oficiais, por exemplo, embora proclamem, e mesmo favoreçam o acesso das população aos organismos de segurança pública das camadas mais pobres da população, na prática, não oferecem as condições mínimas de atendimento e atenção que a asseguram. 

Por outro lado, certa fração de colaboradores da segurança pública, mais críticos tem reduzido a luta pela democratização à mudança nos processos de tomada de decisões no âmbito do sistema de segurança. No primeiro caso, trata-se de um logro; em outro se passa ao lado essencial. Na verdade, não é suficiente a democratização do processo de tomada de decisão, é preciso democratizar as ações e atividades buscar uma adequação da participação popular. 

Dessa forma, a contribuição essencial da segurança para a democratização, também da sociedade consiste no cumprimento de sua função primordial: proteger. Valorizar, a instituição policial, não é apenas fornecer infraestrutura humana e material, mas realizar um trabalho diferenciado. Spencer (2015) informa que democratização da segurança pública deve “ser entendida como ampliação da participação popular no planejamento de ações coletivas de segurança e sua reelaboração crítica, aprimoramento das práticas visando à elevação do serviço policial e científica das atividades policiais      “. 

A democracia precisa ser entendida como um jogo de construção de direitos. A criação de direitos exige um ethos participativo, além de mecanismos eficientes de mudanças. Os grupos sociais devem exprimir seus interesses e reconhecê-los nas decisões governamentais e institucionais. Lopes (2016, p. 62) informa que:   

A Democracia ainda não chegou ao campo da Segurança Pública. As razões desta afirmação podem ser demonstradas por alguns fenômenos observáveis: - O Brasil não desenvolveu nenhum conceito de segurança pública para o Estado Democrático de Direito. Em verdade continuamos a formar os quadros das corporações segundo manuais fundamentados na doutrina de segurança nacional e na já revogada lei de segurança nacional. 

Não há cidadania nos quadros da segurança pública. Os servidores da segurança, além de não compreenderem a cidadania, também sofrem, no interior de suas corporações, graves cerceamentos de seus direitos fundamentais, o que os torna não-cidadãos. 

A disciplina rígida e meramente formal, os poderes constituídos para além do merecimento real, a hierarquia sem clareza de objetivos leva as pessoas a se tornarem obedientes por obrigação, não cônscios de seus problemas e ineficazes para compreender a sociedade a que deveriam servir. O não estabelecimento de políticas de segurança, a não construção coletiva de um conceito democrático de segurança pública abrirá o País para a segurança privada, o que significa a morte dos direitos civis de cada um de nós. O descaso com a segurança pública tem possibilitado o crescimento voraz de empresas privadas de segurança, que desenvolvem práticas perigosas de repressão e violência, além de serem altamente armadas e pouco preparadas para essa missão, levando-a, muitas vezes, a se confundir com grupos criminosos. Nessa onda perversa de privatização, a manutenção da ordem e as ações de coibição da criminalidade correm o risco de se transformarem em atividades cada vez mais amplamente desenvolvidas por essas empresas privadas, desvirtuando o caráter desse trabalho, que é essencialmente público.

 

3 SEGURANÇA PÚBLICA A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Em 1988 foi incluída pela primeira vez, na Constituição Federal, a composição da Segurança Pública e a definição da missão de cada órgão que a integra. A Constituição – Cidadã de 1988, avançou no aspecto da cidadania, mas manteve as instituições policiais dentro do titulo reservado à “defesa do Estado e das Instituições Democráticas” vinculando às forças policiais a primazia de defesa do Estado. Ideais democráticos clamam por uma policia a serviço do povo e não mantenedora da ordem a qualquer custo, que precisa estar à disposição da população, reforçar os laços fraternos que envolvem os integrantes da sociedade. 

Um dos grandes desafios das Polícias como agências prestadoras de serviços de Segurança Pública, tem sido definir estratégias para a concepção da atuação da polícia de modo mais eficaz. A interação da polícia com as comunidades permite que essas tomem consciência de que o crime não é problema só da polícia, mas também de cada cidadão. É fundamental considerar que a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, muitos conceitos foram integrados a questão da segurança. Silva (1989, p. 663) observa com extrema clareza. Esta questão. Diz o referido autor: 

Na teoria jurídica a palavra segurança assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de situação ou pessoa e, vários campos dependente do adjetivo que a qualifica. Segurança jurídica consiste na garantia de estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica, essa se mantém estável, mesmo se modificar a base legal só a qual se estabeleceu. Segurança social significa a previsão de vários meios que garantam aos indivíduos e suas famílias condições sociais dignas; tais meios se revelam basicamente como conjunto de direitos sociais. A Constituição, nesse sentido, preferiu a o espanholismo seguridade social. Segurança Nacional refere-se às condições básicas de defesa do Estado. Segurança Pública é a manutenção da Ordem Pública. 

Desta forma, a Constituição da República Federativa do Brasil, englobou no conceito de Segurança Pública a manutenção da ordem pública, mas aqui, a diferença para os modelos anteriores está exatamente na organização da ordem pública e na formulação das políticas públicas de segurança pública. As organizações policiais, passaram a fazer parte do contexto da segurança pública, mesmo que ainda resguardem muitos aspectos do modelo anterior: estrutura hierárquica e de formação militarizada.  Lopes (2016, p. 166) diz:        

As organizações policiais brasileiras são na sua totalidade sistemas fechados, estritamente hierárquicos. A sua estrutura, assim como o seu sistema de patentes e também o seu arcabouço ideológico adota o sistema militar. Operam normalmente obedecendo a uma cadeia rígida de comando, com separações estritas de poder e autoridade, na qual o processo de tomada de decisões é feito de cima para baixo. A capacidade deste tipo de organização policial em responder a estímulos externos fica limitada a respostas padronizadas, demonstrando pouca, ou nenhuma antecipação proativa dos desenvolvimentos atuais e futuros que não se encaixem no sistema. A organização policial como um sistema fechado tem dificuldades em estabelecer e manter relações eficazes com o público. Também tem dificuldades em determinar os desejos, as necessidades e as expectativas do público em dado momento.

Este é o grande cerne da questão: como fazer polícia dentro da ordem democrática com uma instituição profundamente enraizada em conceitos e atitudes antidemocráticas? Uma Resolução (nº 34/169 da Assembleia Geral das Nações Unidas) aponta os caminhos, principalmente a partir da adoção de um Código de Conduta para Policiais. Também estabelece critérios, diretrizes e pressupostos básicos para um policiamento democrático e, apresenta a alternativa que proporcionará as condições de modelagem do como fazer polícia em conformidade com a nova ordem.

No tocante ao policiamento democrático, a citada resolução dispõe expressamente da seguinte forma: assim como todas as instituições do sistema de justiça criminal, qualquer instituição policial deve ser representativa da comunidade como um todo, correspondente às suas necessidades e expectativas e responsável perante esta comunidade. Nesta disposição encontramos as três características fundamentais do policiamento democrático: representativo, correspondente às necessidades e expectativas públicas e responsável, as quais expressam o padrão internacional dos direitos humanos.

Fernandes e Costa (2018. p. 164) definem com clareza essas características: 

A característica básica do policiamento representativo é a certificação de que os policiais sejam suficientemente representativos da comunidade a que servem. O policiamento correspondente às necessidades e expectativas públicas significa que a polícia deve estar consciente das necessidades e expectativas da população e corresponder a elas. O policiamento responsável é atingido de três maneiras principais: legalmente, politicamente e economicamente. Assim como todos os indivíduos e todas as instituições nos Estados onde a lei prevalece, a polícia tem que prestar contas à lei. Ela deve prestar contas à população à qual serve, através das instituições políticas e democráticas de Governo. Desta forma, suas políticas e práticas de fazer cumprir a lei e manter a ordem, submetem-se ao escrutínio público. A polícia é responsável pelo modo pelo qual utiliza os recursos que lhe são alocados. Isto vai além do exame minucioso de suas principais funções policiais, e é uma forma de controle democrático sobre todo o comando, a gerência e a administração de uma instituição policial.

Da classificação de Fernandes e Costa (2018) podemos inferir que a democratização da segurança pública perpassa: - Estrutura da organização – é o sentimento dos elementos da organização sobre as restrições da sua atuação, regulamentos, regras e formas administrativas, outras limitações enfrentadas no desenvolver do trabalho; - Responsabilidade – é o sentimento de autonomia para tomada de decisões relacionadas ao trabalho e à medida que a supervisão atua. E não ter dependências quando desempenha as suas funções; - Recompensa – é o sentimento de ser recompensado por um trabalho bem feito; ênfase em incentivos positivos e não em punições; sentimento sobre a justiça da política de promoção e remuneração; - Desafio – é o sentimento de risco na tomada de decisões e no desempenho das suas funções; - Relacionamento – é o sentimento de camaradagem no grupo, boas relações sociais entre pares, superiores e subordinados; - Cooperação - é a percepção de espírito de ajuda e mútuo apoio vindo de cima (gestores) e de baixo (subordinados); - Padrões – é o grau em que a organização enfatiza normas e processos; - Conflito – é o sentimento dos membros da organização, em todo os níveis as opiniões discrepantes, e a forma mediadora utilizada para a solução dos problemas; e, - Identidade – é o sentimento de pertencer à organização, como elemento importante e valioso dentro do grupo de trabalho, em geral, a sensação de compartilhar objetivos pessoais com os objetivos organizacionais.

 

4 DIREITOS HUMANOS NAS ORGANIZAÇÕES POLICIAIS 

No dia 17 de dezembro de 1979, a Assembleia Geral das Nações Unidas – ONU, aprovou a Resolução n.º 34/169 que diz respeito ao estabelecimento de um Código de Conduta para todos os agentes da lei que exercem funções policiais, especificamente os poderes de detenção ou prisão. Esse código deve ser seguido por todas as nações signatários das resoluções da ONU e os policiais e seus órgãos de governança e controle tem o dever de  respeitar e proteger a dignidade humana dentro dos ditames dos Direitos Humanos de todas as pessoas, contidos nos ordenamentos jurídicos de todas as nações democráticas do mundo, no sentido de exercer a ordem pública. O primeiro artigo deste Código diz: 

Os agentes da lei deve seguir sempre os ditames legais impostos pelas normas de conduta social, cumprindo o dever que a lei lhes impõe, no sentido de servir e proteger a comunidade aferindo segurança para todas as pessoas contra atos contrários a lei, em conformidade com o elevado grau de responsabilidade que a sua profissão requer (ONU, 1979).  

Esse Código, dessa formam declara que nenhum agente da lei pode ultrapassar os limites que a própria lei impõe, ou ainda tolerar qualquer ato de tortura ou qualquer outro tipo de conduta ou  tratamento ou pena cruel que agrida a humanidade ou degrade o cidadão. Nenhum destes agentes da leu pode justificar seus atos violentos como o cumprimento de uma ordem superior e/ou circunstâncias excepcionais, ou ainda, ameaça à segurança nacional, instabilidade política interna ou qualquer outro tipo de justificativa emergencial pública, pata agir fora dos ditames da lei e assim torturar ou tratar cidadãos com penas cruéis, desumanas ou degradantes

   Uma conduta correta das instituições de governança e de controle de agentes da lei seria que todos os agentes da lei conhecessem este código, e que denunciassem quem não o cumprisse. 

Em 1984, a ONU adotou uma nova Resolução n.º  39/46, de 10 de dezembro de 1984, seguindo os ditames dos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas que se insere no contexto dos fundamentos da liberdade, da justiça e da paz no mundo, reconhecendo, assim que estes direitos derivam da dignidade inerente à pessoa humana. 

Então, se o Brasil é signatário das resoluções da ONU em relação aos Direitos Humanos, por que tanta dificuldade de seguir esses ditames nas organizações policiais brasileiras? Essa é uma indagação de resposta muito difícil. A Polícia foi criada nos tempos do Império, mais com a função de atender aos interesses da Monarquia, evitar aglomeração de escravos, e aos anseios da classe dominante (LAZZARINI, 1991). 

Teve participação na Guerra do Paraguai, nas Revoluções de 1930 e a Constitucionalista de 1932. Deve-se ter presente que, nesses momentos, as Polícias Militares estaduais assumiram, no que diz respeito ao seu espectro político, uma função muito além do  policiamento. Assumiram a função de braço armado dos Presidentes dos Estados (LAZZARINI, 1991). 

As Polícias ou Forças Públicas eram na realidade exércitos armados, e muito mais equipados e preparados que as Forças Armadas. Cita-se como exemplo a Força Pública de São Paulo, que no início do século mandou vir da França Instrutores do Exército, considerado o melhor do mundo, doutrinando e organizando militarmente a citada Força (LAZZARINI, 1991). 

A formação militar e o efetivo cumprimento de missões militares em toda a primeira metade do século XX moldaram o caráter e a natureza da Polícia Militar. O primeiro momento crítico da evolução histórica da Corporação teve lugar no período pós-revolucionário, quando se conferiu às Polícias Militares a exclusividade do policiamento ostensivo (GOMES, 2016). 

Porém, devido ao forte vínculo com as Forças Armadas, e o papel que representou na ditadura militar, não se cogitou perder o seu caráter militar, em favor do pouco vantajoso policiamento ostensivo. Assim, o aparato policial brasileiro foi construído frente uma visão puramente militar, de ação e operação em todos o sentido sempre buscando estabelecer um conjunto de atividades desde a sua formação, sem a preocupação com as questões dos direitos humanos, fundamentalmente. Ou seja, a polícia foi criada para manter o denominado “status quo” do Estado repressor e profundamente comprometido com nos interesses repressivos (GOMES, 2016). 

Borges (2009, p. 23), observa com propriedade:

A estrutura organizacional das polícias, guardadas algumas características próprias na polícia civil e na policiar, obedece ao modelo das Forças Armadas. A semelhança organizacional PM - Exército deu-se, principalmente a partir do golpe militar de 64, quando as polícias estaduais foram enquadradas dentro do princípio básicos da Doutrina da Segurança Nacional e a segurança pública se transformou em uma das vertentes da segurança interna.

À medida que o Estado Brasileiro se militarizava, acentuava-se o caráter mais militar do que policial das corporações estaduais. Com a criação da Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão subordinado ao Estado-Maior do Exército, essas corporações “forças auxiliares e reservas do exército” entraram definitivamente para a estrutura organizacional das Forças armadas, transformando-se em apêndices da Força Terrestre, isto é, um sub aparelho do Exército (BORGES, 2009). 

Dentro desse contexto, a policia (civil e militar) são vistas não como forças policiais a serviço da cidadania, mas como forças repressivas do aparelho Estado, de perfil militar, a serviço da segurança nacional, no campo da segurança interna (BORGES, 2009). 

O fim do regime militar fez com que certos pensadores e alguns líderes da sociedade entrassem em cena para redimir a nação e livrá-la dos males do autoritarismo. Procurou-se aproveitar o clima hostil às Forças Armadas para incluir a Polícia Militar no rol dos males do regime militar. 

A organização policial brasileira abrigava no seu seio dicotomias históricas carregadas de ressentimento: Civil X Militar, Policial X Militar, Cidadão X Inimigo. O sistema estava então sendo abalado por discussões, que refletem os momentos críticos subjacentes à ideologia das instituições (LAZZARINI,1991).

Já com relação à especificidade do trabalho policial e sua relação com o abuso de autoridade ressalta-se que a importância da polícia pode ser resumida na célebre afirmativa de Balzac (1997, p. 67): “os governos passam, as sociedades morrem, a polícia é eterna”. Na verdade, não há sociedade nem Estado dissociados de polícia, pois, pelas suas próprias origens, ela emana da organização social, sendo essencial à sua manutenção. 

Desde que o homem concebeu a ideia de Governo, ou de um poder que suplantasse a dos indivíduos, para promover o bem-estar e a segurança dos grupos sociais, a atividade de polícia surgiu como decorrência natural. A prática policial é tão velha como a prática da justiça; pois, polícia é, em essência e por extensão, justiça. Leal , ao analisar o gênese do poder e do dever de polícia, afirma que a necessidade de regular a coexistência dos homens na sociedade deu origem ao poder de polícia (BALZAC, 1997).

O professor Macarel apud Moraes (2013) define polícia como a prática de todos os meios de ordem de segurança e de tranquilidade pública. A polícia é um meio de conservação para a sociedade.

Moraes (2013) entende que a Polícia pode ser definida como a organização destinada a prevenir e reprimir delitos, garantindo assim a ordem pública, a liberdade e a segurança individual. Afirma ser a Polícia a manifestação mais perfeita do poder público inerente ao Estado, cujo fim é assegurar a própria estabilidade e proteger a ordem social. 

A Polícia, em seu ideal de bem servir, deve ser tranquila na sua atuação, comedida nas suas ações, presente em todo lugar e sempre protetora,  velando pelo progresso da sociedade, dos bons costumes, do bem-estar do povo e pela tranquilidade geral (BALZAC, 1997).

Ela foi instituída para assegurar a execução das leis e das normas de conduta social, não as infringindo, e assim objetivando garantir a liberdade dos cidadãos (não os cerceando), salvaguardando a segurança dos homens de bem (LAZZARINI, 1991).

A Polícia não deve transpor os limites das convenções sociais,  sacrificando o livre exercício dos direitos civis, através de um violento sistema de repressão ou arbitrariedade (diferente de discricionariedade), embora a situação social aparente exigir tal providência. Espera-se um grau de profissionalismo do policial acima da média dos demais funcionários do Estado, já que possui conhecimentos, aptidões e senso de equilíbrio necessários e indispensáveis para o seu campo de atuação, bastante amplo e próximo, diuturnamente, da população (LAZZARINI, 1991).

Assim, o serviço policial se constitui em uma profissão em que os deveres são maiores do que as regalias. Mesmo nas horas de folga, quando em quase todas as profissões cessa-se a obrigatoriedade da função, não existe esse interregno para o serviço policial. As suas funções são de caráter permanente e obrigatório. Isso implica o dever de ação, sempre que necessário (BALZAC, 1997).

Dallari (2010) argumenta em virtude dos problemas sociais, a Polícia ganhou uma relevância muito especial. A sua responsabilidade é grande. Ela é acionada para resolver tudo. 

Espera-se, portanto, uma Polícia eficiente. Essa eficiência decorre exatamente do grau de preparo do profissional. Para atuar corretamente, diante do que a sociedade espera, o policial deve ser e estar preparado. Deve conhecer bem o seu mister, porque não é uma atividade empírica ou amadora, como alguns podem pensar, mas extremamente técnica e científica, em qualquer de seus ramos de atividade (DALLARI, 2010). 

O ato policial deve ser nobre, elevado, moral e revestido de indiscutível conteúdo ético e moral, com o objetivo de sempre buscar o bem social. O policial é o espelho da sociedade onde convive e trabalha. Para isso, deve estar acima dos demais servidores públicos, de forma que, trabalhando mais, erre menos (DALLARI, 2010). 

Deve ser sóbrio e compreensivo para os humildes e necessitados; forte e inflexível frente aos arrogantes e perversos para, de algum modo, em razão das necessidades e choques sociais, ter que assumir a posição de médico, algoz, confessor e amigo quando necessário. Assim o abuso de autoridade por parte de órgãos de segurança é inerente à história da humanidade. Não pode nem ser considerada uma exceção (BALZAC, 1997).  

Hoje, se torna mais evidente em função dos avanços dos meios de comunicação e dos avanços da sociedade civil organizada que busca a todo custo impedir atentados à dignidade humana. Marques (2014, p. 56) observa com muita propriedade a questão do abuso de autoridade consubstanciado na Lei nº. 4.898, de 9 de dezembro de 1965.   

 

4.1 Poder, autoridade e  legitimidade – importantes aspectos para a segurança pública e os Direitos Humanos 

O termo poder é abundantemente empregado e em grande variedade de acepções. De modo geral, esse termo remete a três noções conexas que permitem torná-lo um pouco mais preciso. Não há poder sem alocação de recursos, quaisquer que sejam os recursos. Além disso, é preciso certa capacidade para empregar esses recursos. Se confiarmos um computador a um chipanzé, esse instrumento não aumentará o seu poder nem em relação ao ser humano, que lhe confiou esse recurso, nem em relação a nenhum de seus congêneres. A utilização dos recursos supõe um plano de emprego e uma informação anterior mínima quanto às condições e consequências desse emprego (RAFFESTIN, 2018). 

Enfim, falar de recursos que podem ser empregados em conformidade à capacidade daquele que deles dispõe naturalmente ou que intencionalmente os reuniu em vista dos objetivos que fixou ou que lhe foram propostos ou impostos significa reconhecer o caráter estratégico do poder e que ele exerce eventualmente não só contra a inércia das coisas, mas contra a resistência das vontades adversas (RAFFESTIN, 2018). 

Considerando-se o recurso, a capacidade de empregá-lo ou a capacidade estratégica em relação a outrem de mobilizar e combinar recursos, o poder pode ser visto como uma relação que aparece na análise da interação, ou como um fenômeno mais complexo, que emerge da agregação de uma variedade de tipos de interações elementares (NUNES, 2010). 

A segunda abordagem diz respeito ao ponto de vista da interação, onde o poder é uma relação assimétrica entre pelos menos dois atores, ou seja, é a capacidade de A de obter que B faça aquilo que B não faria por si próprio e que é conforme as ordens e sugestões de A (NUNES, 2010). 

Assim dois comportamentos ficam muito explícitos: o comportamento de B depende de A: B responde às iniciativas, aos desejos ou, pelo menos, de modo geral, à maneira de ser de A. Tal situação comporta pelo menos duas variantes: a total e prolongada dependência de um dos atores em relação ao outro, a guerra de morte entre os protagonistas ((RAFFESTIN, 2018). 

Segundo Nunes (2010, p. 33): 

Tais situações entram certamente no domínio das relações de poder, ou seja, sua influência na sociedade, mas também certamente existem situações que não podem ser analisadas como jogos de soma zero entre duas pessoas. Basta, por exemplo, que entre em jogo um terceiro (árbitro, mediador, enfim, um interveniente desinteressado ou, ao contrário, um explorador cínico que sua posição lhe oferece) para que uma nova distribuição daquilo que está em jogo se torne possível. Do confronto entre dois rivais em que um quer a morte do outro se passa a um regime de coalizão, em que a capacidade de negociação de um terceiro que depende ao mesmo tempo de circunstâncias e de dados relativamente estáveis, pode modificar a relação de força decorrente da alocação inicial dos recursos. Da mesma maneira, o aparecimento de um excedente pode reduzir a oposição entre os antagonistas, ou porque o excedente só pode ser obtido por meio da cooperação entre eles ou porque melhora a situação de um e de outro sem que o seu aparecimento possa ser atribuído a qualquer um deles.

Assim como o poder não pode ser reduzido a um jogo de soma zero, os recursos do poder não se limitam unicamente ao exercício da força, isto é, ao conjunto das coerções físicas e materiais (capacidade de matar, de reduzir à penúria, de infligir direta ou indiretamente penalidades insuportáveis) de que A dispõe contra B para fazê-lo contribuir para a realização de suas aspirações. Esse ponto foi muito bem observado pelos teóricos políticos quando observaram que ninguém é suficientemente forte para estar seguro de ser sempre o mais forte (NUNES, 2010). 

Com isso não se conclui que o poder não tem o que fazer com a força: muitas vezes somos obrigados a ceder à vontade de alguém seja porque ele nos domina seja mesmo porque basta nos ameaçar, como é o caso do uso de algemas, nas questões de segurança pública (RAFFESTIN, 2018).   

Portanto, o poder de A sobre B nem sempre se funda numa sanção efetivamente executada. A ameaça pode ser suficiente. Mas, deve ser como o texto deixa claro, crível. As relações de força e poder são, pois extremamente complexas, e a redução de um ao outro constitui apenas uma situação limite – embora a referência, pelo menos hipotética, á força seja constitutiva de toda a relação de poder (NUNES, 2010). 

O recurso antiético da força é a legitimidade. Não há dominação duradoura sem um mínimo de legitimidade. Um poder legítimo é o que tem a capacidade de fazer que aceitem suas decisões como bem fundamentadas: é, em termos de interação e comportamento um poder cujas diretivas são objetos da adesão, ou pelo menos da aquiescência, daqueles a quem se destinam (RAFFESTIN, 2018). 

Essa aquiescência resignada ou essa adesão entusiasta contribuem para fazer do poder uma obrigação moral ou jurídica que liga o dominado ao dominante, ou ao título do poder. Mas nem a aquiescência nem a adesão são suficientes, uma vez que, na sua falta, a instituição legitima tem capacidade de mobilizar sanções eficazes contra o transgressor (NUNES, 2010) 

O que interessa no que diz respeito à legitimidade são os fundamentos ideológicos e institucionais que ela oferece ao exercício dos diferentes tipos de poder: racional-legal, tradicional e carismático (NUNES, 2010). 

Solano (2014, p. 56) observa: 

O poder racional-legal é aquele estabelecido pela burocracia da nomeação. Embora as lideranças nomeadas e naturais, especificamente num grupo ou organização, possam estar nas mãos de mesmo indivíduo, frequentemente são assumidas por pessoas diferentes, com fontes diferentes de poder. No caso racional-legal é o poder da posição ou da autoridade formal. Esta forma de poder é impessoal, e não se baseia nas características do indivíduo. Líderes nomeados também podem utilizar os sistemas de recompensa formais ou punições para influenciar as pessoas a fazerem certas coisas. Essas bases de poder são respectivamente chamadas de poder de recompensa e coerção. O poder tradicional é baseado no domínio de um indivíduo sobre certos assuntos, se isso for percebido como um recurso valioso. Com essa perícia pode estar nas mãos de pessoas de status inferior, sua influência informal pode criar situações incongruentes de status. O poder carismático também denominado de poder de referência é baseado no magnetismo ou carisma pessoal. Em muitos casos, as pessoas se identificam com outra devido a traços pessoais ou características da personalidade. Esse carisma pode ser muito potente, aponto de influenciar pessoas, mesmo que estas não se encontrem sob o controle direto ou formal daquela. É frequente os líderes naturais terem uma combinação de poder de referência e conhecimento, o que poder criar uma base forte para exercerem influência sobre os outros. 

Cada um destes tipos trata o poder como variável independente, ou seja, o poder como a capacidade de fazer as coisas acontecerem e obter trabalhos realizados. Por outro lado, o poder também tem sido visto como variável dependente ou situacional (em termos de natureza de uma situação específica que dá poder a um grupo ou indivíduo) (SOLANO, 2014). 

Neste contexto, presume-se que os indivíduos, grupos ou subunidades tenham poder com base nos seguintes fatores: 1. Capacidade de lidar com a incerteza;  2. Substitubilidade, ou seja, a dificuldade de uma pessoa ser substituída por qualquer outra. 3. Centralidade; 4. Interdependência do papel e da tarefa. Solano (2014, p. 62): distingue: 

Também pode ser feita outra distinção entre o poder aberto e reservado. O poder aberto se refere às situações em que o poder é utilizado para produzir resultados preferidos em face de conflitos entre partes distintas. Em outras palavras, o poder aberto é usado no intuito de derrotar a oposição, controlando as fontes de poder relevante, tais como o acesso a informações, arenas políticas, recompensas e castigos e conhecimento especializado. O poder reservado, todavia, também pode ser usado para assegurar que não ocorram conflitos. Este aspecto, não pela forma com que o poder é usado por si, porém mais devido às circunstâncias e aos objetivos desejados. Enquanto o poder aberto é usado em situações de conflito evidente, com a intenção de derrotar a oposição, o poder reservado é empregado antes que surja um confronto direto, para evitar o conflito. 

Assim, o poder pode ser conceituado como sendo a causa de certos comportamentos ou como resultado de certos fatores situacionais. Provavelmente é mais correto pensar no poder como uma variável tanto independente como dependente. Os cientistas comportamentais e estudiosos do comportamento organizacional, portanto, precisam determinar como o poder será retratado nas diversas situações. Num sentido real, o estudo do poder é parte de um processo de interpretação e avaliação dos meios e fins. Pode ser visto como um conceito isolado, ou como parte dinâmica da liderança e influência, bem como de outras facetas do comportamento organizacional como a dinâmica de grupo, tomada de decisões e solução de conflitos (NUNES, 2010).

 

CONCLUSÃO

De acordo com os parâmetros emanados da Constituição da República Federativa do Brasil, a segurança se institui a partir de novas premissas, sendo a principal delas, o respeito ao cidadão, principalmente no momento atual, marcado por profundas mudanças principalmente em relação às políticas publicas, fazendo com que os desafios colocados à democratização da segurança pública no atual contexto sejam relevantes.

No Brasil, a democratização da segurança pública, já figura como norma jurídica desde a constituição de 1988, e sua regulamentação tem tido varias interpretações que variam de acordo com o lugar e com os agentes envolvidos. 

Todas essas reformas administrativas tem tido uma movimentação intensa, decorrentes dos princípios acordados, principalmente a partir da resolução nº 34/169 da ONU fazendo com que as três esferas governamentais dirijam suas atenções para esta área. Estas mudanças que ocorrem no Brasil atualmente sempre buscaram o aperfeiçoamento dos processos e a melhoria da atuação dos órgãos de segurança pública, a partir de seus aparelhos como organismos que estabelece o partilhamento das decisões, como responsáveis pela formação e o exercício e a prática da cidadania que precisam acompanhar as tecnológicas, cientificas e sócias que estão acontecendo na sociedade.

Com esse propósito os organismos de segurança precisam investir nas mudanças que só serão consolidadas com a garantia dos padrões mínimos de funcionamento, fortalecendo assim a descentralização e autonomia das mesmas provendo um planejamento e uma gestão participativa que promova a redistribuição das responsabilidades que objetivam intensificar a legitimidade do sistema. 

A ideia da democratização da segurança pública e da consequente gestão participativa é uma organização dos funcionários em seus vários níveis com a participação da comunidade externa nas decisões, envolvendo a gestão sempre com um líder articulador democrático que reconheça a necessidade de unir estas mudanças estruturais e de procedimentos com ênfase no aprimoramento do aparelho policial compromissado com a promoção da participação e da ação coletiva em acordo com as necessidades de uma sociedade moderna e justa. 

Essa participação em seu sentido pleno caracteriza-se por uma força de atuação consciente, pela qual os membros de uma unidade reconhecem e assumem seu poder de exercer influencia na determinação da dinâmica dessa unidade, de sua cultura e de seus resultados, poder esse resultante de sua competência e vontade de compreender decidir e agir em torno de questões que lhe são afetas. 

Como propostas pode-se inferir: a) Que as organizações policiais adentrem no cenário internacional e passem a ser protagonistas de Direitos Humanos; b) criar programas dentro das organizações policiais contra a violência de grupos contra classes mais vulneráveis da população; c) implementar programas de desarmamento da população; d) aumentar a carga horária da disciplina Direitos Humanos nos cursos de formação; e) criar cursos de desenvolvimento de policiais em Direitos Humanos; f) fortalecer os órgãos de controle da atividade policiai com vistas a limitar abusos e erros em operações policiaisg) estabelecer uma ouvidoria compostas de membros da sociedade civil organizada com autonomia de investigação e fiscalização da atividade policial. 

REFERÊNCIAS 

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COUTINHO, L. O setor produtivo estatal: autonomia e limites. 4 ed. São Paulo: Pioneira, 2013. 

DALLARI, D. Representações da violência policial. Petrópolis; Vozes, 2010. 

FERNANDES, J. A. da C.; COSTA, J. C. Polícia Interativa: a democratização e universalização da segurança pública. Monografia apresentada ao Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas da Universidade Federal do Espírito Santo e à Diretoria de Ensino da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo como requisito para conclusão do I Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da PMES, sob a orientação da Professora Vanda de Aguiar Valadão. Disponível em http://www.ufes.com.br Acesso em 12 de abr de 2012. 

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RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder: Crítica da geografia política clássica. Artigo 2018. Disponível em - https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/33660765/Claude_Raffestin_-_POR_UMA_GEOGRAFIA_DO_PODER.pdf?AWSAccessKeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1541346690&Signature=4cwyke9JcKpQy%2F7VBePGXX47Z%2Fw%3D&response-content-disposition=inline%3B%20filename%3DClaude_Raffestin_-_POR_UMA_GEOGRAFIA_DO.pdf Acesso em 14 de abr de 2020. 

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NOTAS:

[1] Essas questões (conflitos, divergências e indefinições), características de um período de transição como o que marca a época no Brasil, têm sido já estudadas de modo mais aprofundado por vários autores brasileiros. Podem ser consulados: Octávio IANNI, Estado e planejamento no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro (2007), 5ª ed.; Octávio IANNI, O colapso do populismo no Brasil, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro (2005), 10ª ed.; Celso FURTADO, Formação econômica do Brasil, Editora Nacional, São Paulo (2007), 17ª ed.; Luiz Carlos BRESSER PEREIRA, Desenvolvimento e crise no Brasil, Brasiliense, Campinas, (2007), 9ª. ed. 

[2] Conceito criado por Karl Marx que dizia: o que o trabalhador produz é sempre mais-valia, pois, o excedente da produção que produz acumulação de capital para a burguesia. Ou seja, o trabalhador produz em um dia trabalho o suficiente para o seu sustento, o resto vai para as mãos dos capitalistas (acumulação/exploração). 

Data da conclusão/última revisão: 28/04/2020

 

Como citar o texto:

ARAÚJO, Suelen Libório de Carvalho..O tabu dos Direitos Humanos nas Organizações Policiais. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 18, nº 986. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/10296/o-tabu-direitos-humanos-nas-organizacoes-policiais. Acesso em 7 jul. 2020.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.