INTRODUÇÃO

O presente artigo visa discutir qual o bem jurídico tutelado por força da norma penal incriminadora insculpida no art. 24 da Lei 11.105/2005. Com a discussão que se pretende empreender, busca-se declinar as relações entre o Direito Penal e a Biotecnologia, procurando-se enfocar a questão relativa à manutenção do caráter garantístico do Direito Penal, em especial no que se refere à garantia do bem jurídico, frente às novas solicitações feitas pela chamada “sociedade de risco”.

O CRIME TIPIFICADO NO ART. 24 DA LEI DE BIOSEGURANÇA

Dispõe o art. 24 da Lei de Biossegurança sobre o crime de utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5o da mesma lei, estabelecendo a pena de detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Por sua vez, o art. 5º da Lei 11105/2005 dispõe que é permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, desde que atendidas as seguintes condições: – sejam embriões inviáveis; ou II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

Vê-se que o dispositivo determina duas condições alternativas. Assim, é permitida a utilização de embrião humano produzido por fertilização in vitro desde que atendidos um ou outro requisito. A lei, porém, em seu § 1o , estabelece que em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores e em seu § 2o determina que as instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

Dessa forma, como condições para a pesquisa lícita com embriões, temos o atendimento alternativo das condições fixadas nos incisos I ou II do artigo 5? da Lei, aliado à concordÂncia dos genitores do embrião e à aprovação dos projetos nos comitês de ética e pesquisa.

Desatendidos os requisitos referidos, tem-se o crime tipificado no art. 24 da Lei de Biossegurança. A questão, então, é qual o bem jurídico tutelado pelo referido ilícito penal. Antes de analisarmos esse tema específico, porém, convém ressaltar as relações entre a Bioética e o Direito, especificamente o Direito Penal.

RELAÇÕES ENTRE BIOÉTICA E DIREITO PENAL

Consoante ressalta Maria Auxiliadora Minahim (2005, p. 42) a preocupação com a regulação dos conflitos decorrentes do uso da biotecnologia tem conduzido a questionamentos que levam ao chamamento do Direito como recurso capaz de dar efetividade às diretrizes traçadas pela Bioética. Surge, então, o biodireito, que deve constituir em espaço de interação interdisciplinar e não em mais um ramo do ordenamento jurídico.

Defende, então, a autora, que é necessária a intervenção do legislador, ordenando condutas e definindo limites que não podem ser deduzidos das vagas formulações da bioética e que não podem ser deixados ao arbítrio de pesquisadores e profissionais de saúde (MINAHIM, 2005, p. 44). Com efeito, os novos fatos criados pela biotecnologia devem ter ingresso no direito como instância capaz de concretizar o “mínimo ético” desejado. Porém, adverte a autora que o direito, e especialmente o direito penal, não devem ser usados para coagir as pessoas em razão de sua posição moral, mas, por outro lado, não se pode refutar a estreita ligação entre direito e moral, “relação que pode ser constatada quando se considera que as máximas morais geram os costumes, os quais, por sua vez, servem como fonte material do legislador” (MINAHIM, 2005, p. 45).

Neste aspecto, demonstra a autora há ainda um vazio legislativo no direito brasileiro e identifica, pelo menos, três causas que contribuem para a defasagem entre o fato e a norma na área de Biotecnologia: as incertezas e a provisoriedade dos achados científicos, assim como a fluidez da ética contemporânea e a pluralidade de expectativas dos diversos segmentos sociais. (MINAHIM, 2005, P. 48)

Por outro lado, o direito penal é convocado para emprestar sua adesão e coercitividade na tutela de bens e interesses que se deseja preservar das lesões e ameaças produzidas pela biotecnologia, em razão da importância destes bens e da gravidade dos ataques. Adverte a autora que o ineditismo das situações e a velocidade com que as inovações ocorrem e se diversificam, tem surpreendido o direito penal, provocando desestabilização no seu arsenal teórico tradicional (MINAHIM, 2005, P.49).

Demonstra a autora que o direito penal é confrontado não apenas com as questões postas pela Bioética, mas, de forma geral, com o problema relativo ao oferecimento ou não tutela a outras situações postas pela sociedade pós-moderna, de forma que o Direito Penal acaba por vê-se no dilema de manter-se fiel ao paradigma do Iluminismo ou expandir-se e reformular-se para fazer face às ameaças da sociedade pós-industrial. (MINAHIM, 2005, P.49).

No que tange ao direito penal e ao papel que pode desempenhar em face dos problemas suscitados pela sociedade pós-industrial, convém citar o apanhado realizado por Auxiliadora Minahim (2005, p. 52) que aponta que os autores se agrupam, basicamente, em três diferentes posições: Alguns defendem a expansão e realinhamento da dogmática, conservando-se certos princípios garantísticos: outros entendem pela preservação das garantias clássicas e, portanto, pelo fechamento do direito penal em um núcleo básico; outros, ainda, pela flexibilização e renúncia dos princípios da idade moderna que não podem subsistir na pós-modernidade, dotando-se, desta forma, o direito penal de instrumentos para proteção das futuras gerações.

BENS JURÍDICOS ATINGIDOS PELA TECNOCIÊNCIA E O BEM JURÍDICO TUTELADO PELO ART. 24 DA LEI 11.105/2005

Os bens jurídicos, para os quais hoje se reclama a proteção do direito penal, têm natureza diferenciada daqueles que, desde o iluminismo, integravam o núcleo de suas preocupações. Assim, na chamada “sociedade de risco”, as ameaças não são mais aquelas causadas pelas catástrofes ou acidentes naturais, mas são as decisões tomadas por outro homem no manejo das novas tecnologias que podem provocar desastres e lesões disseminados em massa.

No que tange aos bens jurídicos que podem ser atingidos pela tecnociência, Maria Auxiliadora Minahim (2005, p. 57) refere há um freqüente apelo para expressões como dignidade da pessoa humana, a qual não deve constituir um bem jurídico, em si mesmo, já que é o fim de todo sistema jurídico e, por sua amplitude, pode justificar qualquer incriminação. Assim, há necessidade de que a idéia do bem jurídico consista numa noção palpável, substancialmente identificável, para que se possa manter o conteúdo garantístico do Direito Penal.

Consoante ressalta Marcelo Rodrigues da Silva (2003, p. 166) não há entre os doutrinadores consenso quanto à definição de bem jurídico, especificamente o bem jurídico penal. Este último, segundo o autor, é “todo significado de valor cuja relevância social reclama a tutela do Direito Penal” (2003, p. 168), de forma que o bem jurídico é a espécie, do qual o bem jurídico penal é o gênero, que somente existe nas hipóteses dos bens essenciais.

Para Luiz Regis Prado (2006, p. 255), bem jurídico penal é um “ente material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual, reputado como essencial à coexistência e desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido”.

Em relação ao art. 24 da Lei 11105/2005, parece que o bem jurídico tutelado é a vida. Nesse sentido, se posiciona Maria Auxiliadora Minahim (2005, p. 163) apontando que ultrapassado o prazo de três anos apontado no inciso II do art. 5º da Lei, os embriões seriam “normativamente” inviáveis. Nesse aspecto, a autora aponta a antinomia entre a permissão levada a efeito no art. 5º da Lei e a manutenção do crime de aborto, inclusive ressaltando que não seria o ventre ou o tubo de ensaio determinantes para a ilicitude da conduta nos casos do aborto ou manipulação de embriões, respectivamente. A autora, porém, indica a possibilidade de o bem jurídico tutelado ser a “dignidade da pessoa humana”, o que, entretanto, não deveria prevalecer, ante a vaguidade do conceito da própria dignidade do ser humano.

CONCLUSÃO

Ante o exposto, conclui-se ser a vida o bem jurídico tutelado pelo crime tipificado no art. 24 da lei 11.105/2005. A questão, contudo, não é pacífica, tendo em vista a dificuldade de ajustamento da dogmática tradicional do Direito Penal frente às novas necessidades da “sociedade de risco”, devendo a teoria penal estar atenta aos avanços para adequar seus princípios garantísticos às novas necessidades da sociedade.

REFERÊNCIAS

MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia. São Paulo, RT, 2005.

PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol.1. São Paulo: RT,2006.

SILVA, Marcelo Rodrigues da. Fundamentos constitucionais da exclusão da tipicidade penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 45, 2003, p.159-185.

(Texto elaborado em novembro de 2006)

 

Como citar o texto:

PESSOA, Flávia Moreira Guimarães..Biotecnologia e Direito Penal: o bem jurídico tutelado pelo art. 24 da Lei de Biossegurança. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº 211. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/1655/biotecnologia-direito-penal-bem-juridico-tutelado-pelo-art-24-lei-biosseguranca. Acesso em 8 jan. 2007.

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