Resumo: este artigo tem por objetivo a análise do paradigma segurança cidadã no contexto do Estado neoliberal brasileiro que diante do aumento da violência e criminalidade, resultante do processo de globalização, vem respondendo com o expansionismo penal, contribuindo para a manutenção e fortalecimento do Estado punitivo e limitador do pleno exercício dos direitos fundamentais insculpidos na Carta Magna.

Palavras-chave: Segurança Cidadã; Estado neoliberal; Criminalidade; Estado punitivo.

Sumário: Introdução; 1.  Políticas  de Segurança  Pública e  neoliberalismo no  Brasil. 2. O paradigma segurança cidadã como projeto político garantista; 3. O sistema penal no Brasil contemporâneo e os limites do paradigma segurança cidadã; 4. Modelo de política criminal alternativa com base na criminologia crítica;  Conclusão; Referências Bibliográficas.

The limits of the citizen security paradigm, in the context of the Brazilian punitive and neoliberal state.

Abstract:  This article aims to analyze the paradigm of citizen security in the context of the Brazilian neoliberal state that, given the increase in violence and crime resulting from the globalization process, has been responding with criminal expansionism, contributing to the maintenance and strengthening of the punitive and limiting state on the full exercise of the fundamental rights inscribed in the Constitution.

Keywords: Citizen Security; Neoliberal State; Criminality; Punitive State

 

Introdução

O fenômeno da globalização das últimas décadas desencadeou transformações em diversas esferas da vida humana - nas relações sociais, institucionais, econômicas, políticas e culturais – com alguns resultados positivos, especialmente no que se refere aos avanços tecnológicos, como também resultados negativos, relacionados à exacerbação do abismo econômico-social entre vários países, criando uma conjuntura favorável à violência e criminalidade e, por conseguinte, ao aumento do controle punitivo.

Nesse panorama de dominação capitalista, as políticas criminais dos países periféricos refletem um modelo econômico avassalador do Estado do bem-estar social e de fortalecimento do Estado neoliberal - a serviço do grande capital representado pelos países centrais - no qual o avanço das forças de mercado não encontram limites sociais, resultando num  quadro cada vez mais grave de pauperização, discriminação e abandono estatal de populações de miseráveis principalmente nos países periféricos, contribuindo para o aumento da micro e macro criminalidades.

A sociedade brasileira, no contexto dessa estrutura de dominação econômica do capital, encontra-se imersa nos malefícios do processo de globalização e de sua política neoliberal. Assim, nas últimas décadas a criminalidade vem atingindo altos índices, sem precedentes na história do país. As estatísticas apontam para o aumento de diversas infrações penais, tais como homicídios, roubos e tráfico de substâncias entorpecentes. 

A globalização como fenômeno econômico não se limita, efetivamente, a produzir ou facilitar a atuação da macrocriminalidade. Também incide sobre a microcriminalidade, enquanto criminalidade de massas. Assim, os movimentos de capital e de mão de obras, que derivam da globalização da economia, determinam a aparição no ocidente de camadas de subproletriado, das quais pode proceder um incremento da delinquência patrimonial de pequena e média gravidade [...] (SILVA SANCHEZ, 2013, p.127)

Diante desse quadro de insegurança social crônica, as políticas de segurança pública no Brasil se revelam, continuamente, ineficazes no combate à violência e a criminalidade notadamente porque refletem uma clara tendência ao expansionismo penal, voltando-se ao escopo de maior punibilidade possível em detrimento de soluções que reconheçam, como ponto de partida das análises, as causas estruturais do fenômeno da criminalidade.

A penalidade neoliberal – referente ao conjunto de práticas, instituições e discursos relacionados à pena e, sobretudo, à pena criminal - apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. (WACQUANT, 2011, p.09)

Hodiernamente no Brasil se propaga a ideia de um novo paradigma de segurança pública, a Segurança Cidadã, que enfatiza ações preventivas e de participação da sociedade civil nos diversos programas a serem desenvolvidos por todos os entes federativos, bem como, retrata a preocupação com a defesa da cidadania e direitos humanos e o combate a toda espécie de preconceito, refletindo a ideia contemporânea de universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos e suas inter-relações com a cidadania.

Considerando que a compreensão do fenômeno da criminalidade no Brasil envolve o estudo das consequências estruturais, oriundas da inserção do país no contexto do capitalismo internacional, é importante que as análises acerca do paradigma segurança cidadã se desenvolvam sem perder de vista as concepções jurídicas e ideológicas neoliberais que sustentam o sistema penal brasileiro.

 

1. Políticas de Segurança Pública e neoliberalismo no Brasil

A globalização e sua política neoliberal, longe de promoverem a distribuição igualitária das riquezas produzidas pelo capitalismo, têm repercutido na reprodução das desigualdades sociais, criando uma conjuntura favorável à proliferação da violência e criminalidade.

Nesse aspecto, Wacquant (2011, p. 10) destaca que:

[...] Por um conjunto de razões ligadas à sua história e sua posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais ( estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de “globalização”), e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosa e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades [...].

O sistema penal brasileiro se identifica como sistema de criminalização das massas. As instituições policiais, judiciárias e penitenciárias, reproduzem com frequência o sistema penal discriminatório. Como asseverou Batista (2015, p.26) “seletividade, repressividade e estigmatização são algumas das características centrais de sistemas penais como o brasileiro.”

No tocante à segurança pública, a Constituição Federal de 1988, no art. 144, incisos de I a V destaca como forças de segurança: as policias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis, militares e corpo de bombeiros. São essas forças que exercem o controle social no âmbito penal.

Com efeito, a segurança pública representa um mecanismo de controle social preventivo e repressivo das manifestações de violência e criminalidade. No Brasil esse controle tem sido essencialmente repressivo. Nesse campo, sob as influências das políticas neoliberais, o  expansionismo penal ganha destaque.

O controle social formal exercido pelas instituições policiais é operado através da aplicabilidade das leis penais materiais e processuais, tais como prisões, buscas e apreensões, instaurações de inquéritos policiais, termos circunstanciados de ocorrências, dentre outros. Ressalte-se que, num estado democrático de direito esses procedimentos devem resguardar os direitos fundamentais assegurados no texto constitucional ou que digam respeito aos direitos humanos. Todavia, no plano concreto percebe-se grandes discrepâncias entre direitos fundamentais e práticas institucionais; incongruências que alimentam um sistema penal desigual e conduz a punibilidade principalmente  rumo às periferias urbanas e ao encarceramento.

O que sugere a acentuada aceleração da punição através do encarceramento é que há novos e amplos setores da população visados por uma razão ou outra como uma ameaça à ordem social e que sua expulsão forçada do intercâmbio social através da prisão é vista com método eficiente de neutralizar a ameaça ou acalmar a ansiedade pública provocada por essa ameaça. (BAUMAN, 1999, p.122-123)

Destarte, quanto mais se expande as leis penais e se agravam as penas mais se legitima o poder de repressão seletivo das instituições policiais, visando acalmar a sociedade através do encarceramento periférico.

Nesse panorama, o Estado passa a exigir dos órgãos policiais eficiência nas punições, que significa no plano concreto em aumento da vigilância sobre os marginalizados, incremento dos procedimentos criminais e dos encarceramentos das massas, como se tais medidas fossem suficientes para reduzir os índices de violência e criminalidade. Concordamos que “[...] nenhuma evidência de espécie alguma foi encontrada até agora para apoiar e muito menos provar as suposições de que as prisões desempenham os papéis a elas atribuídos em teorias e de que alcançam qualquer sucesso se tentam desempenhá-lo [...]” (BAUMAM, 1999, p. 122)

Decerto que o modelo da multiplicidade e rigor de normas penais e do aumento da repressão policial é um fracasso como solução para reduzir os índices de violência e criminalidade.

Como asseverou Wacquant (2011, p. 11) “[...] a insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem [...].

A repressão e a punibilidade excessivas abrem espaços para práticas autoritárias violadoras de direitos fundamentais. Definitivamente, punições e repressões excessivas não são remédios adequados para garantir a segurança social.

Certo é que o expansionismo penal se identifica com a ideologia neoliberal haja vista que a edição de novas leis penais e o endurecimento das existentes, reforça o Estado opressor vinculado aos interesses de grupos economicamente e politicamente fortes em detrimento do Estado do bem-estar social.

No caso das instituições policiais, o resultado dessa ideologia, reflete-se claramente na atuação fundamentalmente repressiva em detrimento de atividades de prevenção, bem como, na intensificação do controle social em face do aumento dos tipos penais.

Os órgãos legislativos, inflacionando as tipificações, não fazem mais do que aumentar o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal e seus pretextos para o exercício de um maior poder controlador. (ZAFFARONI, 2015, p.27)

O Estado neoliberal diante da insegurança social, resultado de sua própria política, responde com o direito penal simbólico.  Nesse aspecto, Wacquant (2011, p.12) destaca: 

[...] desenvolver o Estado penal para responder às desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes de proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário, equivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres [...]

A criminalidade é um problema estrutural, que deve ser analisada sob o viés econômico. O grau de exploração e subordinação econômicas, seus resultados e reflexos internos (como o aumento do desemprego e das desigualdades sociais) são motores potentes para a criminalidade. Como assinalado por Zaffaroni (2015, p.15):

A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais.

  As políticas de segurança pública no Brasil contemporâneo se desenvolvem no núcleo de um Estado instituído como democrático de direito, fundamentado na cidadania e direitos humanos, mas cuja política criminal se aproxima muito mais de um Estado policial.

O Estado neoliberal é mínimo no âmbito econômico e  máximo no âmbito penal daí sua política de fomento à atuação repressiva das instituições que compõem a segurança pública para manutenção da ordem social.

Nesse aspecto, Callegari e Wermuth (2010, p. 29) asseveram que:

Com efeito, na medida em que o Estado busca eximir-se de suas tarefas enquanto agente social de bem-estar, surge a necessidade de novas iniciativas do seu aparato repressivo em relação à condutas transgressoras de “ordem” levadas a cabo pelos grupos que passam a ser considerados “ameaçadores” [...] A tendência moderna dos Estados, inclusive os que não possuem qualquer programa de Política Criminal, é no sentido da segurança do cidadão, tolerância zero, lei e ordem, isto é, maximalista na parte punitiva e minimalista na parte social.  (CALLEGARI; WERMUTH, 2010, p. 133)

Dessa forma, o sistema penal no Brasil reflete um modelo de política criminal seletiva, antidemocrática e patrimonialista que não corresponde aos valores de igualdade, justiça social   e dignidade da pessoa humana.

 

2. O paradigma segurança cidadã

Freire (2009, p. 50) identifica no Brasil três paradigmas principais na  área de Segurança: a) Segurança Nacional, vigente durante o período da Ditadura Militar; b)  Segurança Pública, que se fortaleceu com a promulgação da constituição de 1988 e; c)  Segurança Cidadã, perspectiva que têm se ampliado em toda a América Latina e começa a influenciar o debate em Segurança no Brasil a partir de meados de 2000.

Esse novo modelo de segurança pública começou a dar seus primeiros passos no Brasil no ano 2003 quando a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) deu início ao projeto denominado “Segurança Cidadã” em parceria com as Nações Unidas.    No mesmo ano, com a criação do  Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), a SENASP passou a ser o órgão de execução desse sistema, com a tarefa de planejar, implementar e avaliar todas as políticas públicas do governo federal.

Seguindo a trajetória desse novo paradigma, em 2007 foi criado Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), através da Medida Provisória nº 384 de 20 de agosto de 2007, transformada na Lei nº 11.530 de 24 de outubro de 2007 e posteriormente alterada pela Lei nº 11.707/2008.

“O Pronasci destina-se a articular ações de segurança pública para a prevenção, controle e repressão da criminalidade, estabelecendo políticas sociais e ações de proteção às vítimas.” (art. 2º, da Lei nº 11.797/2008)

Assim, “o novo paradigma de segurança pública consiste no fortalecimento institucional do Estado para atuar preventivamente. É uma nova concepção de atuação policial, com o objetivo de fortalecer os laços comunitários e criar condições para o acesso a políticas públicas sociais  [...]”.[1]

Em seus vários dispositivos,  a lei que institui o Pronasci, Lei nº 11.707/2008, destaca a necessidade da promoção dos direitos humanos, o combate  aos  variados tipos de preconceito - de gênero, étnico, racial, geracional, de orientação sexual e de diversidades culturais – ressocialização dos encarcerados, participação da sociedade civil nas discussões e programas que envolvem segurança pública, dentre outras medidas e projetos destinados a inclusão social e participação da sociedade civil em suas ações.

Freire (2009, p.53) ao abordar o paradigma Segurança Cidadã fez a seguinte observação:

[...] Na perspectiva de Segurança Cidadã, o foco é o cidadão e, nesse sentido, a violência é percebida como os fatores que ameaçam o gozo pleno de sua cidadania. Em outras palavras, permanece a proteção à vida e à propriedade já presente no paradigma de Segurança Pública, mas avança-se rumo à proteção plena da cidadania. Quanto à forma de abordagem dessa violência, é dado novo fôlego à importância da prevenção que, ao lado das iniciativas de controle, compõem uma estratégia múltipla de abordagem.

Um estudo mais aprofundado do paradigma segurança-cidadã indica que  suas ações direcionam-se especialmente à construção da harmonia entre as forças policiais e a sociedade civil, pautada no respeito à cidadania e aos direitos humanos, significando uma postura de  abrandamento do Estado policial, sem, contudo, romper com a concepção punitivista do sistema penal brasileiro.

Assim, o novo referencial de segurança pública do país, consubstanciado nos princípios e diretrizes do Pronasci, é apresentado como um avanço na política criminal, como um novo paradigma comprometido com proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos na medida em que suas diretrizes visam combater - com um trabalho de conscientização e integração instituições/sociedade - as arbitrariedades policiais, promovendo no interior das instituições policiais o respeito à cidadania e aos direitos humanos.

 

3. O sistema penal no Brasil contemporâneo e os limites do paradigma segurança cidadã

O  sistema penal é composto de três instituições incumbidas de realizar o direito penal: a instituição policial, a judiciária e a penitenciária. (BATISTA, pp. 24-25)

Compreende-se que a realização do direito penal por essas instituições significa atuarem em estrita consonância com as normas jurídico-penais e demais institutos jurídicos correlatos. Ocorre que a expectativa do respeito à estrita formalidade legal é frequentemente solapada pela atuação discriminatória e arbitrária das instituições do sistema penal. Nesse aspecto, é visível a relativização das garantias constitucionais, prática que hodiernamente contamina o sistema jurídico-penal.

O sistema penal não atua de acordo com a legalidade. Nem sequer a este nível prévio o exercício de poder do sistema penal é “legal”. (ZAFFARONI, 2015, p. 21). Dessa forma,  mostra-se como sistema operacionalizador de ilegalidades.

A legitimação do sistema penal seria questionável   ainda que as instituições do sistema penal cumprissem satisfatoriamente todas as prescrições legais. Zaffaroni (2015, p.21-22) destaca que “[...] uma leitura atenta das leis penais, permite comprovar que a própria lei renuncia à legalidade e que o discurso jurídico-penal (saber penal) parece não perceber tal fato”.

O saber penal só se ocupa da legalidade das matérias que o órgão legislativo quer deixar dentro de seu âmbito e, enfim, de reduzidíssima parte da realidade que, por estar dentro desse âmbito já delimitado, os órgãos executores decidem submeter-lhe. (ZAFFARONI, 2015, p.22). Nesse aspecto, vislumbra-se as relações do sistema penal com a base material capitalista, ocultada por meio da irracionalidade do discurso jurídico-penal que o apresenta como legítimo.

Nesse sentido, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais. O sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade, quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela. ( BATISTA, 2015, pp.25-26).

Se olharmos o sistema  punitivo brasileiro com as lentes da criminologia crítica, veremos claramente seu liame com a base material da sociedade.

De acordo com Baratta (2014, p. 197)  a atenção  da criminologia crítica, se dirigiu principalmente para o processo de criminalização, identificando-se nele um dos maiores nós teóricos e práticos das relações sociais de desigualdades próprias da sociedade capitalista, e perseguindo, como um de seu objetivos principais, estender ao campo do direito penal, de modo rigoroso, a crítica do direito desigual.

Podemos dizer que a estrutura econômica da sociedade defini de forma determinante o sistema penal de um país e o mantém com esteio na ideologia dominante, de modo que os sistemas penais de países periféricos encontram-se submetidos à economia capitalista da globalização e  impregnados  pela ideologia neoliberal.

Segundo  De Giorgi (2006, p. 36):

A ligação entre economia e penalidade não deve ser, pois, considerada como resultado de um automatismo, como uma relação mecânica mediante a qual a superestrutura ideológica da pena possa ser deduzida, de modo linear, da estrutura material das relações de produção. Ainda que se ocupe uma posição de proeminência em relação a outros fatores sociais, o universo da economia simplesmente contribui para definir a fisionomia histórica dos diversos sistemas punitivos.

Assim o sistema penal no Brasil contemporâneo tem sido guiado para atender a política neoliberal que responde à criminalidade com o direito penal máximo, seguindo o modelo do punitivismo e de encarceramento das massas.

Decorre disso que as políticas de segurança pública no Brasil encontram-se intrinsecamente ligadas a esse sistema penal seletivo e dele extrai elementos e valores que embasam as ações  dos órgãos de segurança pública de modo que,  mudanças de paradigmas nesse âmbito,  não têm o poder de transformar o sistema penal como um todo mas tão somente contribuir para que as garantias constitucionais não sejam  continuamente minimizadas nas práticas institucionais. 

O paradigma segurança cidadã opõe-se timidamente em alguns aspectos ao sistema penal atual, que é seletivo, segregacionista e patrimonialista. Nesse sentido, destacam-se: a tentativa de articulação de ações de segurança pública com políticas sociais, ênfase à prevenção, estímulos à participação da sociedade civil em programas de inclusão social  como medida para prevenir a criminalidade, a promoção  dos direitos humanos e o combate à corrupção policial.

Contudo, o programa é falho pois deposita nas medidas propostas a esperança em reduzir os índices de criminalidade quando na verdade essas medidas deveriam ser combinadas com uma proposta de reforma profunda do atual sistema penal brasileiro cuja função, a ser duramente refutada, tem sido de reprodução das relações de desigualdades sociais.

Da mesma forma, a implantação concreta do programa segurança cidadã – por discrepâncias internas - tem sido incapaz de evitar seu direcionamento para ações muito mais compatíveis com o modelo da lei e da ordem e de “tolerância zero” do que com o compromisso com os valores democráticos. Assim, a exacerbação do controle social, da vigilância e disciplina, típicos do Estado policial, encontram espaço nesse modelo de segurança.

Importa destacar que as políticas de segurança pública concentradas nas instituições policiais  por si sós não são capazes de transformar o sistema penal pois são partes de uma política criminal mais ampla, que envolve ainda a política judiciária e a política penitenciária todas atreladas ao sistema penal  moldado para atender às demandas do poder econômico vigente.

 

4. Modelo de política criminal alternativa com base na criminologia crítica.

  A crescente criminalidade no país indica que é preciso acelerar o passo e mudar a concepção de que a solução  para o problema advém apenas da aplicação estrita da legislação pelos órgãos do sistema penal e operacionalização do discurso jurídico-penal programado, daí bastaria concretizar tudo o que determina a lei e que recomenda o discurso jurídico-penal - processando e prendendo todos os infratores - para resolver a questão.  Ora, como assevera Zaffaroni (2015,p. 26-27) “ o sistema penal é um verdadeiro embuste: pretende dispor de um poder que não possui, ocultando o verdadeiro poder que exerce. Além do mais, se o sistema penal tivesse realmente o poder criminalizante programado, provocaria uma catástrofe social”.

Diante do exposto, a absurda suposição de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. (ZAFFARONI, 2015, p. 27).

Portanto, as políticas criminais que não avançarem nesse aspecto se tornarão meros instrumentos de   reprodução de um discurso jurídico-penal irracional, reprodutor de premissas que sustentam um sistema penal seletivo e estigmatizante, de viés positivista.

A criminologia crítica apresenta um modelo de política criminal alternativa à criminologia tradicional positivista, tendo por escopo a superação do direito penal seletivo  cujos mecanismos de política criminal - da criação da norma a sua aplicação - reproduzem o sistema de desigualdades sociais presentes nas sociedades capitalistas contemporâneas.

Assim, o estudo dos desvios sociais   sai do foco do comportamento do  autor do crime, da  estigmatização  e produção do status social de criminoso – abordagens típicas da criminologia tradicional positivista -  para  direcionar-se às condições estruturais e funcionais do sistema econômico-social e aos  mecanismos de controle social do comportamento considerado desviante, contribuindo   para o  combate à concepção  teórica do direito penal  como igualitário.

Da mesma forma importa destacar que a criminalidade crítica rompe com o paradigma etiológico - da criminalidade como realidade ontológica, preexistente a reação social e institucional – também acolhido pela criminologia tradicional-positivista.

Alessandro Baratta, um dos precursores e maiores expoentes da criminologia crítica, sustenta que para efetivação desse modelo é necessário políticas voltadas para grandes reformas sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade, da democracia, de formas de vida comunitária e civil alternativas e mais humanas, e do contra poder proletário, em vista a transformação radical e da superação das relações sociais de produção capitalistas. (BARATTA,2014, p.201)

 

Conclusão

No atual contexto da globalização e de sua política neoliberal, a insegurança diante da violência e criminalidade, resultante do processo de desenvolvimento capitalista desigual entre os países, tem sido tratada com o expansionismo penal.  Essa política resulta no aumento da população prisional e na exacerbação do controle das instituições formais sobre as classes populares.

O mecanismo punitivo do Estado neoliberal funciona para atender a engrenagem do sistema capitalista isso resulta em políticas criminais estruturalmente limitadas no tocante a real defesa dos direitos fundamentais, ainda que insculpidos na ordem constitucional democrática. A relativização das garantias constitucionais é apenas um exemplo das influências maléficas desse poder estrutural sob o sistema legal.

Nesse contexto, as políticas de segurança pública são incapazes de, isoladamente, transformarem a realidade do sistema penal pois fazem parte de uma engrenagem maior cujo desmonte requer a participação de todos os componentes de seu funcionamento e um dispositivo alternativo que acione políticas criminais verdadeiramente democráticas e de proteção aos direito humanos, somente possível com a construção de uma sociedade igualitária. Por conseguinte, destaca-se a Criminologia Crítica de Alessandro Baratta como alternativa, um caminho para superação do sistema penal desigual partindo da análise econômico-política do fenômeno da criminalidade.

 

Referências Bibliográficas

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 2ª reimpressão, Rio de Janeiro: Editora Revan, 2014.

BATISTA, Nilo.  Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 12ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

BAUMAN,  Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 45 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL, Lei nº 11.530, de 24 de outubro de 2007. Institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania - PRONASCI e dá outras providências.

BRASIL, Lei nº 11.707/2008. Altera a Lei no11.530, de 24 de outubro de 2007, que institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania - Pronasci. 

BRASIL, Ministério da Justiça. Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania: Um novo paradigma para a segurança pública. Brasília/DF. Disponível em Acesso em: 10 jul  2017.

CALLEGARI, André Luiz; WERMUTH, Maiquel Ângelo D.  Sistema Penal e Política Criminal. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010

DE GIORGI, Alessandro. A Miséria Governada através do Sistema Penal. Trad. Sérgio Lamarão. 2ª reimpressão, Rio de Janeiro: Editora  Revan, 2013.

FREIRE, Moema D. Paradigmas da segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias. Revista Aurora, v. 3, n. 5, p. 49-58, dez. 2009.

SILVA SÀNCHEZ, Jesus Maria. Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. 3 ed. rev. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge       Zahar Ed., 2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa, Almir Lopez da Conceição. 4ª reimp., Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[1] BRASIL, Ministério da Justiça. Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania: Um novo paradigma para a segurança pública. Brasília/DF. Disponível em

Data da conclusão/última revisão: 4/3/2018

 

Como citar o texto:

RAMOS, Silma Pacheco..Os limites do paradigma segurança cidadã, no contexto do Estado punitivo e neoliberal brasileiro. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1515. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-penal/3964/os-limites-paradigma-seguranca-cidada-contexto-estado-punitivo-neoliberal-brasileiro. Acesso em 20 mar. 2018.

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