A integridade em Ronald Dworkin como vetor interpretativo no novo Código de Processo Civil.

Resumo: O presente trabalho visa estudar a influência do conceito de integridade de Dworkin no novo Código de Processo Civil e como o conhecimento desta teoria por influenciar a prática judicial brasileira.

Palavras-chave: Pós-positivismo. Integridade. Processo Civil. Dwokin.

Abstract: This paper aims to study the influence of Dworkin’s integrity in the new Brazilian Process Code and how the knowledge of his theory can help evolution of Brazilian judicial practice.

Key Word: Postpositivism. Integrity. Civil Process. Dwokin.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. DA INTEGRIDADE COMO IDEAL POLÍTICO. 1.2- DA INTEGRIDADE DE DWORKING E DA CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS  2. DO DEVER DE INTEGRIDADE COMO GARANTIA DE SEGURANÇA JURÍDICA NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CONCLUSÃO.  BIBLIOGRAFIA.

 

INTRODUÇÃO

A doutrina de Ronald Dworkin sofreu grande mutação no decorrer de sua produção acadêmica havendo poucos pontos em comum entre sua última obra “Justiça para Ouriços” e a primeira coletânea de seus textos “Levando os Direitos a Sério”.

Em um momento intermediário Ronald Dworkin traz ao mundo jurídico o livro “O Império do Direito” onde o conceito de Direito como integridade foi ampliado a ponto de se tornar fundamental na compreensão de sua obra. Ante a peculiaridade deste trabalho e da nítida modificação do pensamento de Dworkin através do tempo analisaremos apenas esse recorte específico da obra do autor.

O presente trabalho analisará o conceito de integridade em Ronald Dworkin presente, em especial, em o ‘Império do Direito’ que será o trabalho base para a análise do filósofo, sendo quaisquer referências à obras anteriores ou posteriores somente nos aspectos imutáveis da obra do autor.

Objetiva-se demonstrar como o dever de integridade imposto pelo Código de Processo Civil é um mecanismo de concretização da moralidade institucional e como a análise da doutrina de Ronald Dworkin pode auxiliar na concepção de um modelo processual mais consentâneo com os princípios constitucionais.

Assim, inicia-se o texto trabalhando e conceituando a integridade no pensamento do autor como obediência a um coeso sistema juspolítico definido por decisões antecedentes e por XX sociais e o modo como Dworkin compreende a relação entre Direito, integridade e decisões judiciais, bem como as principais críticas ao jusfilósofo.

A segunda parte analisará a pertinência do conceito de integridade de Dworkin no ordenamento jurídico brasileiro, em específico, o art. 926 do CPC e a relação desse preceito com o novo sistema de precedentes estabelecido pelo Código

Por fim, concluir-se-á pela possibilidade da aplicação das ideias do filósofo estadunidense no Direito brasileiro e a compatibilidade das ideias do mesmo com os princípios constitucionais vigentes e como a ideia de integridade impõe a todos os juízos o dever de referência aos precedentes, ainda que os mesmo não possuam caráter vinculante.

 

1. DA INTEGRIDADE COMO IDEAL POLÍTICO

Em sua obra o “Império do Direito” Dworkin identifica a integridade como ideal político ao lado da justiça e da equidade (DWORKIN 2007, p. 222) sendo, portanto, uma característica guia dos valores jurídicos políticos a serem adotados pelas sociedades.

A integridade é mais do que uma técnica ou um meio de ação sendo verdadeira força motriz do Direito e da Política de determinada sociedade que garante uma atuação sistêmica coesa e direcionada à garantia de justiça e equidade, em específico para as decisões judiciais, o autor aduz que:

O princípio judiciário de integridade instrui os juízes identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada-, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade. (DWORKIN 2007, p. 271)

Nesse sentido pode o termo pode ser definido como a manutenção de um padrão de ação das instituições sociais com objetivo de criar uma evolução social coesa. A integridade se mantém desse modo sempre que as ações institucionais mantêm uma linha de coerência, devendo ser analisado o contexto de evolução histórico-argumentativo para sua aferição, nas palavras do autor:

“A integridade é escarnecida (...) sempre que uma comunidade estabelece e aplica direitos deferentes, cada um dos quais coerente em si mesmo, mas que não podem ser defendidos em conjunto como expressão de uma série coerente de diferentes princípios de justiça, equidade ou devido processo legal.” (DWORKIN 2007, p. 221)

Percebe-se que para Ronald Dworkin ações de instituições jurídicas ou políticas devem ser analisadas sob uma ótica histórica de modo de que decisões passadas justifiquem decisões futuras a fim de evitar contradições na atuação dos agentes públicos.

A mantença da racionalidade intrínseca às decisões judiciais é o que Dworkin, em seu livro ‘O Império do Direito’, define como integridade, ou seja, é a garantia de observância de fundamentos de decisão anteriores de forma que as concepções como justiça e equidade se mantenham estáveis no seio da sociedade.

Essa concepção é, deste modo, dual, pois ao mesmo tempo que possui uma dimensão histórica que visa analisar o momento anterior de determinado ordenamento jurídico, possui uma dimensão argumentativa ou principiológica que visa definir o melhor modelo de conduta para ações futuras. Em Império do Direito Dworkin expõe essa relação:

“Aceitamos a integridade como ideal político específico, e aceitamos o princípio da integridade como princípio soberano sobre o Direito, porque queremos nos ver como uma associação de princípios, como uma comunidade regida por uma única e coerente concepção de justiça, equidade e processo legal justo na relação exata (...) nossa ambição fundamentar de nos tratarmos como uma comunidade de princípios.” (DWORKIN, 2012, p. 314)

Assim o autor não propugna por um sistema estanque de decisões imutáveis, mas propõe um equilíbrio entre a evolução social e o respeito ao passado institucional, defendendo o Direito como processo em constante evolução:

O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programa instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. (DWORKIN 2007, p. 271)

Mesmo porque que a interpretação da moralidade institucional vigente na sociedade no momento de aplicação da lei é tão importante quanto a análise histórica para fins de busca da integridade, é dizer, faz-se tão necessário o respeito para com decisões passadas quanto a coerência para com o sistema jurídico-social presente em que se encontra o julgado:

A integridade não exige coerência do princípio em todas as etapas históricas do direito de uma comunidade; não exige que os juízes tentem entender as leis que aplicam como uma continuidade de princípio com o direito de um século antes, já em desuso, ou mesmo de uma geração anterior. Exige uma coerência de princípio mais horizontal do que vertical ao longo de toda a gama de normas jurídicas que a comunidade agora faz vigorar. (DWORKIN 2007, p. 273)

A interpretação judicial na obra de Dworkin é, desse modo, fundada no passado, mas voltada para o futuro, com isso em mente o autor cria a metáfora do romance em cadeia para explicar o modo como juízes devem tomar decisões de modo coerente e integro.

O romance em cadeia pressupõe que o Direito não é um produto pronto e acabado, independente dos juízos morais e interesses políticos, para Dworkin o julgador não é apenas um aplicador de normas, o romance em cadeia é uma ferramenta importante, que contribui para a construção do Direito, mas que é, ao mesmo tempo, um limite. Por esta cadeia de precedentes que precisa considerar o passado, presente e futuro, o juiz não pode decidir de acordo com o “seu” livre convencimento. (CAVALCANTI, 2016, p. 303)

Para Dworkin o juiz ao decidir sobre um caso que lhe é apresentada age como se fosse um autor literário que continuaria a obra que fora iniciada por outros autores devendo, por isso, manter a coerência com os capítulos antecedentes, mas desenvolver a história para o futuro.

O juiz-autor tem a responsabilidade de não se desvincular do que foi proposto anteriormente pelos seus pares e de propor a melhor continuação possível para a história de modo que ao leitor final haja uma coerência e uma coesão tal no texto que não se perceba a modificação de autores:

Deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso, como produto de muitas mãos diferentes. Isso exige uma avaliação geral de sua parte, ou uma série de avaliações gerais à medida que ele escreve e reescreve. Deve adotar um ponto de vista sobre um romance que vai ser formando aos poucos, alguma teoria que lhe permita trabalhar elementos como personagens, trama gênero, tema e objetivo, para decidir o que considerar como continuidade e não como um novo começo. (DWORKIN 2007, p. 276)

O Direito assim é visto por Dworkin como uma manifestação de integridade social, ou seja, os juízes não devem decidir de modo randômico ou com base em convicções pessoais e desconexas da realidade sócio-política, mas com fundamento em um complexo sistema de análise pretérita dos posicionamentos sociais e de análise dos objetivos sociais a serem alcançados, o autor distancia-se, assim, de fundamentos morais ou naturais para a validade das normas jurídicas dando aos atores sociais a responsabilidade pela construção paulatina do Direito e pela evolução constante dos princípios sociais. Nas palavras Morrison:

Talvez Dworkin esteja compartilhando a concepção pós-moderna de que não existe nenhum grande fluxo fundamental subjacente que estruture o empenho humano, nenhum ‘direito natural’ a ser encontrado. Ao contrário, a tarefa de Hércules é diferente: ele deve impor ordem à doutrina – deve dar sentido ao passado de modo que o projeto possa ser reinterpretado e revitalizado para o futuro. (MORRISON, 2012, p. 518)

Assim, o Direito como integridade não consiste em um aspecto fechado definido das melhores regras jurídicas aplicáveis, mas em um projeto coletivo, social que exige a participação ativa dos atores sociais, o Direito é construído pouco a pouco de maneira discursiva:

O que surpreende é a ligação entre o projeto de Dworkin e a noção implícita de modernidade enquanto projeto. Dworkin reinterpreta o processo como trabalho de individuação, direitos e criação uma ‘comunidades de princípios’ liberal. Os modernos cidadãos do Estado não são meros sujeitos, mas sim cidadãos portadores de direitos; o sistema jurídicos os envolve, atua como intermediário e firma sua posição no corpo social. (MORRISON, 2012, p. 518)

‘O império do Direito’ traduz uma noção de Direito como responsabilidade social e introduz o dever de respeito ao passado ao lado da busca por um futuro movido por um objetivo social de aperfeiçoamento comum, assim Dwokin deixa para trás um conceito meramente científico e estanque de Direito e dá ao mesmo uma amplitude que o sistema positivista não possuía, o Direito é mais do que um complexo sistema de regras, é uma manifestação do desenvolvimento de uma sociedade:

O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que disseram) em uma história feral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada  e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. (DWORKIN 2007, p. 274)

Isso porque a visão do autor sobre a natureza do Direito as regras e princípios jurídicos não possuem caráter estático e não podem ser extraídas de uma mera operação de subsunção ou aplicabilidade neutra sendo sempre influenciadas pela atuação do intérprete o que tornar incindível as fases de interpretação e aplicação da lei:

Também não podemos estabelecer uma distinção muito nítida entre a etapa em que o romancista em cadeia interpreta o texto que lhe foi entregue e a etapa em que ele acrescenta seu próprio capítulo, guiado pela interpretação pela qual optou. (DWORKIN 2007, p. 279)

A doutrina de Ronald Dworkin evolui do modelo positivista, deste modo, não pela mera inclusão de princípios como regras de observância obrigatórias não aplicadas no sistema de subsunção no momento do julgamento, mas por propor um complexo sistema de estruturação de validade das normas jurídicas no ideal de evolução social.

Assim, pode se dizer para o autor que cada sociedade deve estruturar seu sistema jurídica em regras de condutas de observância compulsória que se fundam em seu contexto jurídico social pretérito e visam dirigir o seu desenvolvimento social futuro, sistema plenamente aplicável às decisões judiciais.

 

1.2- DA INTEGRIDADE DE DWORKING E DA CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A análise da obra de Ronald Dworkin permite-nos reflexões interessantes acerca dos princípios constitucionais e o papel do Direito e de sua criação como processo jurídico-social.

Isso porque a doutrina do autor traz relevantes considerações acerca de diversos conceitos que permeiam o sistema jurídico brasileiro como democracia e moralidade, interligando-os à sua noção de Direito como integridade.

Iniciando-se pela democracia, princípio basilar do Estado Brasileiro, Dworkin dá-nos uma interessante ligação entre interpretação jurídica e democracia, vez que para o autor o desenvolvimento do Direito é um projeto social inconcluso. Para o autor o direito é dado por um processo de evolução que se funda na argumentação:

“A imagem do direito oferecida por Dworkin é a de uma ampla conversação ou debate em que as pessoas com conhecimentos jurídicos argumentam sobre a existência ou não dos direito. Todos podem tentar dizer quais são as respostas jurídicas certas em determinada situação” (MORRISON, 2012, p. 521)

A criação jurídica é, assim, um exercício da democracia à medida que é dado aos agentes sociais influenciar paulatinamente através dos debates na construção do conceito de Direito e do modo como através dele a sociedade se organiza.

Em específico no processo de decisão judicial cabe ao magistrado argumentar e dialogar com as decisões anteriores, sem descurar do momento social subjacente à decisão que será proferida. O magistrado, ao proferir a decisão, não pode se desvincular de todo o complexo jurisprudencial anterior, mas deve dialogar com ele e estabelecer uma relação de continuidade de modo a garantir a fluência e lógica das decisões judiciais consideradas em conjunto.

Dworkin trata a decisão judicial como uma peça na qual o juiz age interpretando todos os princípios morais e legais de uma comunidade, trazendo-os para o caso concreto e fazendo a devida interpretação construtiva, dando a melhor interpretação possível dentro do caso concreto, sob o prisma político da situação, amparada também em uma detida análise dos precedentes. (CAVALCANTI, 2016, p. 294)

Além disso, suas decisões e interpretações deve ser tal que haja uma não só uma continuidade das decisões anteriores, mas também seja possível que a mesma decisão seja tomada por outros juízes, ou seja, não pode o julgado decidir casuisticamente, mas deve ter a pretensão de que sua decisão seja universalizável, ou seja, que a mesma seja capaz de ser adotada por outros julgadores:

Podemos dar uma estrutura a qualquer interpretação que ele venha a adotar, distinguindo doas dimensões a partir das quais será necessário submetê-la à prova. A primeira é a que até aqui chamamos de dimensão de adequação. Ele não pode adotar nenhuma interpretação, por mais complexa que seja, se acredita que nenhum autor (...) poderia ter escrito, de maneira substancial, o texto que lhe foi entregue. Isso não significa que sua interpretação deva se ajustar a cada segmento do texto. (...) Ainda assim, a interpretação que adotar deve fluir ao longo de todo o texto. Deve possuir um poder explicativo geral, e será mal sucedida se deixar sem explicação algum importante aspecto estrutural do texto... (DWORKIN 2007, p. 277)

A integridade, desse modo, é limitador do arbítrio estatal, impondo aos legisladores e aos julgadores uma limitação de seus poderes de criação de normas jurídicas, conforme Streck:

Já a inte­gri­da­de é dupla­men­te com­pos­ta, con­for­me Dworkin: um prin­cí­pio legis­la­ti­vo, que pede aos legis­la­do­res que ten­tem tor­nar o con­jun­to de leis moral­men­te coe­ren­te, e um prin­cí­pio juris­di­cio­nal, que deman­da que a lei, tanto quan­to pos­sí­vel, seja vista como coe­ren­te nesse sen­ti­do. A integridade exige que os juí­zes construam seus argu­men­tos de forma inte­gra­da ao con­jun­to do Direi­to, constituindo uma garan­tia con­tra arbi­tra­rie­da­des inter­pre­ta­ti­vas; colo­ca efe­ti­vos ­freios, por meio des­sas comu­ni­da­des de princípios, às ati­tu­des solip­sis­tas-volun­ta­ris­tas. A integridade é antitética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade. Ou seja: por mais que o julgador desgoste de determinada solução legislativa e da interpretação possível que dela se faça, não pode ele quebrar a integridade do Direito, estabelecendo um “grau zero de sentido”, como que, fosse o Direito uma novela, matar o personagem principal, como se isso — a morte do personagem — não fosse condição para a construção do capítulo seguinte. (STRECK, 2014)

O contínuo debate e discussão acerca de quais os direitos dos cidadãos cria o Direito como manifestação de integridade social. O que gera uma derivação interessante, à medida que o Direito é construído pelos atores sociais de modo coeso e coerente através de debates jurídicos:

É impossível encontrar textos pseudocientíficos sobre a natureza do direito. Se o direito é sempre uma questão de interpretação, segue-se que os que determinam o que é o direito são todos aqueles que se encontram dentro da ordem jurídica. Basicamente isso inclui não só juízes, mas também envolvem pessoas comuns (MORRISON, 2012, p. 521)

A discordância, a manifestação de opiniões contrárias e a argumentação através do exercício da liberdade de expressão dos cidadãos e da liberdade de decisão dos juízes é condição para existência de um direito integro, ou seja, um direito que não se baseia somente em seguir um caminho pré-determinado, mas que se propõe a construir o caminho a partir de reflexões sobre si mesmo e seu lugar na sociedade com vistas a buscar os princípios guias da sociedade:

O princípio judiciário de integridade instrui os juízes identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada-, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade. (DWORKIN 2007, p. 271)

Da compreensão da relação Direito como integridade e debate social Dworkin nos diz que devemos ser constantemente guiados pelos princípios, manifestações jurídico-normativas de valores relevantes no seio social e que, portanto, se mostram tendentes à evolução:

Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva e prática jurídica da comunidade. (DWORKIN 2007, p. 272)

É nessa relação entre princípios jurídicos como normas, debate social e integridade como direito que Dworkin traz a moralidade para o seio do Direito, nas palavras de Morrison:

Em última análise, a moralidade de aspiração dworkiniana é o desejo de tornar-se uma comunidade de princípios, a integridade é a moralidade intrínseca ao direito, e a imagem que ele cria é uma imagem de constante comunicação – de argumentação. Alessandra Damian Cavalcanti369

Integridade e busca por coerência é, nesta fase do pensamento de Dworkin, não só manifestação da moralidade institucional como manifestação de um ambiente democrático no seio do Direito e a ferramenta que permite aos atores sociais o debate no seio institucional.

 

2. A INTEGRIDADE COMO INTERPRETAÇÃO DO DIREITO NO NOVO CPC

O sistema de precedentes criado no CPC 2015 é a principal metodologia do Direito moderno para garantia da integridade no processo decisório. Isso porque com a ascensão do novo Código assiste aos juízes o dever de observar os precedentes.

Barroso ensina que:

A obrigatoriedade de observar as orientações já firmadas pelas cortes aumenta a previsibilidade do direito, torna mais determinadas as normas jurídicas e antecipa a solução que os tribunais darão a determinados conflitos. O respeito aos precedentes constitui um critério objetivo e pré-determinado de decisão que incrementa a segurança jurídica. A aplicação das mesmas soluções a casos idênticos reduz a produção de decisões conflitantes pelo Judiciário e assegura àqueles que se encontram em situação semelhante o mesmo tratamento, promovendo a isonomia (p.13).

O novo Código de Processo Civil prevê expressamente o dever de integridade e coerência dos Tribunais (art. 926, CPC). Não é difícil perceber que a observância de decisões anteriores é para Dworkin um aspecto primordial na teoria da integridade, pois ao se fundamentar nelas o intérprete mantêm sua relação com o passado institucional.

Para ilustrar tal raciocínio do autor retomamos sua metáfora do “romance em cadeia” onde cada grupo de autores decide escrever uma história e cada autor escreve um capítulo novo devendo, todavia, manter a coerência com os capítulos anteriores de modo a formar uma história coesa, mas que mantenha a autonomia dos autores:

Deve tentar criar o melhor romance possível como se fosse obra de um único autor, e não, como na verdade é o caso, como produto de muitas mãos diferentes. Isso exige uma avaliação geral de sua parte, ou uma série de avaliações gerais à medida que ele escreve e reescreve. Deve adotar um ponto de vista sobre um romance que vai ser formando aos poucos, alguma teoria que lhe permita trabalhar elementos como personagens, trama gênero, tema e objetivo, para decidir o que considerar como continuidade e não como um novo começo.

Podemos dar uma estrutura a qualquer interpretação que ele venha a adotar, distinguindo doas dimensões a partir das quais será necessário submetê-la à prova. A primeira é a que até aqui chamamos de dimensão de adequação. Ele não pode adotar nenhuma interpretação, por mais complexa que seja, se acredita que nenhum autor (...) poderia ter escrito, de maneira substancial, o texto que lhe foi entregue. Isso não significa que sua interpretação deva se ajustar a cada segmento do texto. (...) Ainda assim, a interpretação que adotar deve fluir ao longo de todo o texto. Deve possuir um poder explicativo geral, e será mal sucedida se deixar sem explicação algum importante aspecto estrutural do texto... (DWORKIN, 2005, p.276/277)

Deste modo, ao analisarmos o novo Código sob a ótica da teoria da integridade de Dworkin podemos retirar conclusões interessantes quanto à ideia de precedente judicial e seu modo de aplicação.

Assim, para o autor estadunidense os precedentes judiciais são, por sua própria natureza, de observância compulsória. A inserção dos precedentes no CPC vão, deste modo, ao encontro da teoria de Dworkin à medida que impõe constantemente aos julgadores o dever de referência a seus predecessores.

Ou seja, toda decisão judicial tem o dever de se referenciar e extrair conclusões de decisões anteriores. O procedimento decisório na obra de Dworkin é decorrente de uma análise tanto das normas jurídicas e da situação social, quanto das decisões anteriormente proferidas por outros juízes. Nesse sentido:

Ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então. (DWORKIN, 2005, p. 238)

Os precedentes, na leitura da integridade, são sempre de observância obrigatória, ainda que não possua caráter vinculante, isso porque sua observância não decorre da criação de uma nova norma jurídica, mas de uma atitude construtiva do Direito:

O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programa instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. (DWORKIN, 2005, p.271)

Ou seja, os Tribunais ao proferirem suas decisões não atuam de modo a criar novos direitos, mas apenas a aclarar direitos existentes com base na realidade social e institucional no período do julgamento, gerando sempre ao julgador o dever de observância do precedente, seja para aplicá-lo ou para refutá-lo.

Em obter dictum deve-se traçar uma crítica a certos setores da doutrina brasileira que defendem que os Tribunais no novo CPC criam novos direitos. Nesse sentido Donizetti (2015)

No Brasil, podemos dizer que vige o stare decisis, pois além de o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal terem o poder de criar a norma (teoria constitutiva, criadora do Direito), os juízos inferiores também têm o dever de aplicar o precedente criado por essas Cortes (teoria declaratória)de aplicar o precedente criado por essas Cortes (teoria declaratória). (p.9)

Isso porque a virtude política da integridade não permite que os Tribunais extrapolem seus poderes constitucionais de julgar sempre conforme a lei e os princípios de Direito. Ou seja, as manifestações judiciais não são verdadeiras manifestações primárias do Direito não tendo caráter criador, apenas trabalhando no processo de sua interpretação e do desvelamento de seu sentido.

O dever do juiz é interpretar as normas, não criar novos sentidos não previstos nos textos legais, nesse sentido Passari:

Para Dworkin, mesmo nos casos difíceis, já existe um direito previamente estabelecido e o juiz, fazendo uso de um conjunto coerente de princípios sobre os direitos e deveres das pessoas, encontrará a melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica da sua comunidade e chegará à melhor solução fornecida pelo direito ao caso difícil. Mesmo nos casos difíceis, o dever do juiz é o de descobrir qual é o direito previamente estabelecido e não o de inventar novos direitos. (p.98)

Assim, seja seguindo precedentes ou decidindo pela primeira vez uma questão, aos Tribunais é sempre obrigatória a observância dos termos legais e constitucionais, não sendo o sistema de precedente mecanismo que permita a criação de normas jurídicas pelos Tribunais.

Dito isso, é importante ressaltar os precedentes têm a função de integrar o parâmetro interpretativo, ou seja, a partir do momento que são proferidos compete ao julgado analisá-los para retirar o melhor modo de ação em seu julgamento. Pode-se dizer que as decisões anteriores fazem parte do “estado da arte” e, portanto, não podem ser ignoradas pelos juízes, do mesmo modo que devem ser sempre analisadas em confronto com as leis e os princípios constitucionais.

Assim, ao julgador é dado o dever de aplicar os precedentes, ainda que não vinculantes, sempre que se mostrarem a decisão mais consentânea com o Direito, e afastá-lo sempre que se mostrar violador do ideal político jurídico da comunidade.

Nesse sentido que podemos afirmar que sob a égide da leitura da integridade o órgão julgador no novo CPC deve sempre valer-se de julgamentos e interpretações pretéritas dos Tribunais, ou seja, é dever do julgador analisá-los sempre.

É nesse sentido que trazemos uma crítica à lição de Barroso (2016) que separa os precedentes em “precedentes de eficácia meramente persuasiva, eficácia normativa em sentido forte e eficácia normativa em sentido fraco”:

Diante das considerações acima, pode-se afirmar que os precedentes judiciais, no direito brasileiro, produzem três espécies de eficácia. Há, primeiramente, os precedentes com eficácia meramente persuasiva. Esta é a eficácia que tradicionalmente se atribuía às decisões judiciais em nosso ordenamento, em razão de sua própria raiz romano-germânica. Os julgados com esta eficácia produzem efeitos restritos às partes e aos feitos em que são afirmados, são relevantes para a interpretação do direito, para a argumentação e para o convencimento dos magistrados; podem inspirar o legislador; e sua reiteração dá ensejo à produção da jurisprudência consolidada dos tribunais. (...)

Por outro lado, são dotados de eficácia normativa em sentido forte: as súmulas vinculantes, os julgados produzidos em controle concentrado da constitucionalidade, os acórdãos proferidos em julgamento com repercussão geral ou em recurso extraordinário ou especial repetitivo, as orientações oriundas do julgamento de incidente de resolução de demanda repetitiva e de incidente de assunção de competência. O desrespeito a estes precedentes enseja a sua cassação, por meio de reclamação, junto à corte que o proferiu, nos termos do art. 988 do CPC32 .

Produzem eficácia intermediária ou eficácia normativa em sentido fraco os enunciados da súmula simples da jurisprudência do STF e do STJ sobre matéria constitucional e infraconstitucional, respectivamente, e as orientações firmadas pelo plenário ou pelos órgãos especiais das cortes. Esses entendimentos são obrigatórios e devem ser seguidos. Entretanto, sua inobservância não possibilita o ajuizamento de reclamação.

Isso porque analisar o Direito sobre o prisma da integridade exige que todos os precedente sejam analisados pelo julgador com igual consideração que deverá se esforçar para compatibilizá-los dentro de um noção de história institucional:

Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que disseram) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada  e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. (DWORKIN, 2005, p.274)

O julgamento deve, assim, sempre considerar o dever institucional de analisar as decisões pretéritas, ainda que não possuam “eficácia vinculante”. Ou seja, a decisão do juiz deve sempre observar os precedentes, ainda que seja para afastá-los, não podendo os ignorar, sob pena de descumprimento pelo julgador da observância do dever de integridade.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a eficácia vinculante dos precedentes judiciais está mais ligada ao modo como a sua não observância pode ser controlado do que o fato de ser de observância compulsória, isso porque há diversos instrumentos próprios, como a reclamação, que permitem o controle dos “precedentes vinculantes” (art. 988 do CPC).

Todavia não é correto afirmar que os “precedentes não vinculantes” não são passíveis de controle, mesmo porque a decisão contrária aos precedentes proferida pelos juízos inferiores poderão ser atacadas pelos recursos ordinários como apelação (art. 1.009 CPC), recurso especial ou extraordinário (art. 1.029 CPC).

É nesse sentido que a partir da noção de integridade de Dworkin se afirma que os precedentes são sempre de análise obrigatória pelos julgadores, ainda que seja para afastá-los, sendo a diferença entre os precedentes vinculantes e não vinculantes meramente quando o modo de controle da decisão que os descumpre.

 

CONCLUSÃO

O presente trabalho visou apresentar de modo coeso e conciso as ideias que Ronald Dworkin apresente acerca do Direito como manifestação da virtude política da integridade em sua obra “O Império do Direito” e quais os pressupostos e objetivos da observância desse conceito na prática judiciária brasileira, em especial após a menção expressa ao dever de integridade no novo Código de Processo Civil.

Nesse sentido, se apresentou inicialmente o que Dworkin entende por integridade e sua relação com os ideais de justiça e equidade, demonstrando que para o autor seriam essas as três principais virtudes políticas de uma sociedade.

Ato contínuo se trabalhou o conceito de integridade sobre a ótica geral e de aplicabilidade aos Poderes públicos indistintamente para, em seguida, se concentrar na integridade no seio da decisão judicial. Com isso se apresentou a noção de Dworkin de integridade como manutenção de coerência e de vinculação a precedentes judiciais, bem como necessidade de observância de valores sócio-jurídicos vigentes e como dessa relação surge o conceito de moralidade institucional para o autor.

Por fim, valeu-se da doutrina nacional para pontuar quais os principais objetivos e desafios do novo Código de Processo Civil durante a aplicação deste ideal de integridade. Em específico se abordou como a observância da integridade busca garantir uma previsibilidade nas decisões judiciais e com isso garantir a segurança jurídica dos cidadãos face ao Poder Judiciário e como isso é uma manifestação do princípio da igualdade.

A partir daí defendeu-se que a observância dos precedentes pelos juízes deve se dar de maneira ampla e irrestrita sem separar-se os precedentes em vinculantes ou não vinculantes estando o julgado adstrito à observância de ambos, vez que os mesmo compõe o complexo sistema jurídico social. Assim, concluiu-se que a divisão entre precedentes vinculantes e não vinculantes somente tem relevância quanto ao modo como é controlado o desrespeito aos precedentes.

Em que pese o objetivo desse trabalho, não se desconhece que essa forma de aplicação da integridade em Ronald Dworkin é apenas um dos modelos de aplicação do novo Código de Processo Civil, havendo diversas concepções e oportunidades de aprimoramento da arte jurídica como decorrência do novo Código de Processo Civil.

Como se aduziu durante o presente trabalho, o ideal de integridade como virtude política em Dworkin pressupõe o debate e a discordância e postular modos diferenciados de aplicação e compreensão do Direito somente fortalece a ciência jurídica.

Conclui-se, nesse sentido que longe de encerrar qualquer pretensão de exclusividade da aplicação dos ideais de Dworkin o conceito de integridade tem como um de suas principais implicações a noção de que a sociedade é formada de modo coeso e interligado e que, portanto, as decisões judiciais devem ser tomadas com responsabilidade e visando o bem-estar social, sempre se atentando para o objetivo maior que, nas palavras de Dworkin, é a busca por uma ‘sociedade de princípios’.

A introdução da integridade no corpo do Código de Processo Civil gera, desse modo, uma gama de deveres ao juiz que podem, se bem aplicados, aumentar a participação democrática na criação jurídica, aumentar a segurança jurídica e previsibilidade nas decisões judiciais e garante, nas palavras de Dworkin, que “a prática atual pode ser organizada  e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado”.

 

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Data da conclusão/última revisão: 29/6/2018

 

Como citar o texto:

NASCIMENTO, Yuri Alexander Nogueira Gomes..A integridade em Ronald Dworkin como vetor interpretativo no novo Código de Processo Civil.. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 29, nº 1543. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-civil/4122/a-integridade-ronald-dworkin-como-vetor-interpretativo-novo-codigo-processo-civil. Acesso em 9 jul. 2018.

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