RESUMO

O presente artigo irá abordar uma análise acerca do instituto do Tribunal do Júri, sua origem histórica em alguns outros países - bem como aqui no Brasil, até os dias atuais. Ainda discorrer sobre a soberania dos veredictos, em que consiste, o porquê é soberano, o júri como instituição da justiça, o quesito genérico, bem assim como o sistema da íntima convicção. Irá abordar também a incapacidade dos jurados e ainda propostas à reformulação do júri.

PALAVRAS-CHAVE: Tribunal do Júri. Ausência de Conhecimento Técnico. Soberania dos Veredictos. Falta de Segurança Jurídica.

ABSTRACT

This article will address an analysis of the Jury Court Institute, its historical origin in some other countries - as well as here in Brazil, to the present day. Also discuss the sovereignty of the verdicts, which consists, why it is sovereign, the jury as an institution of justice, the generic question, as well as the system of intimacy. It will also address the inability of jurors and even proposals for reformulation of the jury.

KEYWORDS: Court of the Jury. Absence of Technical Knowledge. Sovereignty of the Verdicts. Lack of Legal Security.

Kelvin Nean Maciel Peres

Igor de Andrade Barbosa

Sumário: Introdução; Síntese Histórica do Tribunal do Júri; O Tribunal do Júri como Instituição e Garantia Constitucional; A Soberania dos Veredictos. Críticas, Limites e Propostas de um Novo Modelo de Julgamento; Conclusão.

INTRODUÇÃO

Apesar de ser alvo de críticas, o Tribunal do Júri é um conceituado instituto da Carta Magna de 1988, sendo assim de grande valia para o sistema processual penal brasileiro. Obteve reforma com o advento da Lei n° 11.689/08, que visou trazer mais celeridade e eficiência a tal procedimento.

Esse instituto visa julgar, da forma mais eficaz possível, os crimes contra a vida; mas será se vem alcançando isso com o atual modelo de júri? No sistema em que se funda o Tribunal do Júri atualmente no Brasil, é difícil acreditar que sim, tendo em vista a ausência de conhecimento técnico por parte dos jurados que compõem o conselho de sentença, composto, em sua maioria, por pessoas leigas, que têm pouco tempo para tomarem conhecimento do caso a ser por eles julgados, através das respostas dos quesitos elaborados pelo juiz togado.

Quesitos esses que são respondidos de forma objetiva, com sim ou não, e que não necessitam de fundamentação. Assim, como podemos falar em um julgamento justo? Toda e qualquer decisão terminativa deve ser proferida de forma bem fundamentada, porque esta deveria ser diferente, principalmente sendo ela soberana e relacionada a crimes contra o maior bem constitucional, que é a vida.

Os crimes contra a vida, muitas vezes, possuem grande clamor social e influência midiática, levando a crer que não seria possível um julgamento justo por juízes leigos - que não dotam de técnica jurídica suficiente para buscar o julgamento do réu da forma mais justa possível.

Pontuando os principais fatores que levam à ineficácia do atual modelo de júri no Brasil, traçando comparativos entre tribunais do júri de outros países. Além de abordar a sua história também, por fim sugerindo sugestões a reforma do júri.

1.      SÍNTESE HISTÓRICA DO TRIBUNAL DO JÚRI

Há uma grande divergência acerca da criação do Tribunal do Júri. No entanto, é possível confirmar que, nos primórdios, sua instituição possuía conotação religiosa, guardando relação com crenças populares e superstições, onde Deus era representado através de testemunhas, que na época eram 12 jurados - para fazer menção aos 12 apóstolos.

Assim, fica claro que é uma das instituições mais antigas do mundo, precedendo até o tempo da criação do Estado organizado. Muito embora, desde sua criação, tal instituto passou por várias transformações em todos os países que o adotam, em razão de cada Estado diferenciar seu procedimento e competência.

Como leciona Rangel:

O tribunal popular, diferente do que muitos pensam, não nasce, propriamente na Inglaterra, pois já existiam, no mundo, outros tribunais com as suas características. Alguns buscam sua origem no heliastas gregos, nas quaestiones perpetuae romanas, no tribunal de assies de Luís, o Gordo, na França (ano de 1137). Porém, não há nenhuma hereditariedade histórica do júri a essas organizações. (RANGEL, Paulo. Tribunal do júri, visão linguística, histórica, social e jurídica. Rio de Janeiro: 2011, 3ª.ed, p.41 apud TORNAGHI, 1977, p. 72).

Rogério Laurita Tucci, instruindo a respeito do júri, diz que:

Há quem afirme, com respeitáveis argumentos, que os mais remotos antecedentes do Tribunal do Júri se encontram na lei mosaica, nos dikastas, na Hiliéia (Tribunal dito popular) ou no Areópago gregos; nos centeni comitês, dos primitivos germanos; ou ainda, em solo britânico, de onde passou para os Estados Unidos e, depois, de ambos para os continentes europeus e americanos. (TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do júri: origem, evolução, características e perspectivas. In: Tribunal do júri: estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: RT, 1999, p.12).

Já John Gilissen (2001, p. 214) afirma, de forma acertada, que a origem do júri remete a mesma época do Common Law, na segunda metade do século XII, mas que não impedem de procurar a sua origem no traquejo do inquérito carolíngio e na base jurídica dos primordiais reis anglo-normandos, aparecendo o júri em caráter judiciário com Henrique II, em 1166.

O júri, tratando sobre matéria criminal, só surgiu e se consolidou depois do júri civil. No começo, os jurados julgavam matérias cíveis; somente depois veio a surgir a necessidade de sujeitá-los a matérias criminais, que envolve agora não só a liberdade do indivíduo, mas também sua vida, pois, como é de notório conhecimento, a pena de morte foi e ainda é recepcionada por alguns países.

Paulo Rangel (2011, p.42) elucida que, quando foi elaborado o código de processo criminal do Império, o júri era dividido em dois conselhos de jurados, onde um que detinha um maior número de jurados, decidia quanto à procedência da pretensão acusatória; enquanto o outro, composto de um número menor de jurados, decidia sobre o mérito da acusação. No primeiro, continham até vinte e três jurados; e no segundo, que era o pequeno júri, 12 jurados.

Na França houve uma substituição do júri em 1808 por uma Câmara de Conselho de Magistrado, ou seja, saiu do popular para uma turma de juízes da corte imperial. Pouco tempo de duração do júri se deu pelo fato de Napoleão, como ditador, não gostar de júri. (RANGEL, op. cit. p. 233).

A origem histórica do Tribunal do Júri no Brasil se deu na Lei de 18 de julho de 1822, antes da Independência - que ocorrera em 7 de setembro do mesmo ano - e da primeira constituição brasileira - que datou de 25 de março de 1824 -, sendo o júri na época apenas para os crimes de imprensa, tendo os jurados eleitos.

A primeira Constituição da história do Brasil representava uma minoria branca e mestiça, uma vez que, naquela época, os escravos eram tratados como mera mercadoria, visto como objetos, sendo assim tratados como “coisa”.

A Constituição de 1824 posicionava o jurado como membro integrante do Poder Judiciário, ou seja, deu status constitucional ao júri, sendo a sua competência ampla e territorial - tanto cível como criminal -, além da competência para decidir sobre o fato e os juízes aplicarem a lei (CF. arts. 151 e 152 da Constituição de 1824).

No período chamado de Regência, que perdurou de 1831 a 1840, ocorreram várias reformas de grande valia que suprimiram a função de órgãos da Monarquia e estipularam uma nova estrutura legal para o país. E foi nessa circunstância que introduziu-se e passou a vigorar o Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832, concedendo um poder maior aos juízes de paz.

Como Boris Fausto nos conta:

Em 1832, entrou em vigor o Código de Processo Criminal, que fixou normas para aplicação do Código Criminal de 1830. O Código de Processo deu maiores poderes aos juízes da paz, eleitos nas localidades do reinado de Dom Pedro I, mas que agora podiam, por exemplo, prender e julgar pessoas acusadas de cometer pequenas infrações. Ao mesmo tempo, seguindo o modelo americano e inglês, o Código de Processo instituiu o júri, para julgar a grande maioria dos crimes, e o habeas corpus, a ser concedido a pessoas presas ilegalmente, ou cuja liberdade fosse ameaçada. (FAUSTO, Boris. História do Brasil. 6.ed. São Paulo: EDUSP, 1999, p.613).

Em seus escritos, Boris continua a ensinar a história por trás dos bastidores do processo penal brasileiro, com intuito de compreender o júri:

Os traficantes de escravos ainda não eram mal vistos nas camadas dominantes e se beneficiaram também das reformas descentralizadoras, realizadas pela Regência. Os júris locais, controlados pelos grandes proprietários, absorviam os poucos acusados que iam a julgamento. A lei (de 7 de novembro) de 1831 (que proibia o tráfico de escravos para o Brasil)      foi considerada uma lei para “inglês ver”. Daí em diante, essa expressão se tornou comum para indicar alguma atitude que só se tem aparência e não é pra valer. (FAUSTO, História ..., op. cit. p.194).

Habermas, entretanto, ensina como compreender legítima uma lei:

Uma ordem jurídica não pode limitar-se apenas a garantir que toda pessoa seja reconhecida em seus direitos por todas as demais pessoas; o reconhecimento recíproco dos direitos de cada um por todos os outros deve apoiar-se, além disso, em leis legítimas que garantam a cada um liberdades iguais, de modo que “ a liberdade do arbítrio” de cada um possa manter-se junto com a liberdade de todos. (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a factividade e validade. Tradução de Flavio Beno Siebeneichler. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1. p. 52).

Em novembro de 1832, entra em vigor o Código de Processo Criminal do Império de primeira instância, que foi promulgado pela Regência Permanente Trinta, cujo texto permitia exercer a função de jurado apenas aqueles que fossem eleitores, findando, assim, por manter no júri, apenas pessoas de boa situação econômica, já que esses eram os aptos a votar.

Nasce aí a distância latente entre o jurado e o réu, uma vez que só podia ser jurado quem era eleitor, visto que este detinha uma boa situação econômica. Ao contrário, os réus, em sua quase totalidade, não eram pessoas dessa classe alta da sociedade, mas sim pessoas de classe inferior.

Somente em 1842 a competência do Tribunal do Júri ficou restrita à esfera criminal. Ele voltou a fazer parte da Constituição Republicana de 1837, depois da Constituição de 1934.

A única vez que a instituição democrática do júri ficou fora de um texto constitucional foi na Constituição de 1937, conhecida também como constituição Polaca. Outorgada por Getúlio Vargas, a legislação infraconstitucional suprimiu sua soberania. O júri foi previsto, mas não em nível constitucional, e sim, frise-se, em nível infraconstitucional.

Em 1946, voltou a integrar a norma constitucional em seu art. 141,§ 28, e após isso na Constituição de 1988, inserida no rol de garantia constitucional, em seu art. 5°, inc. XXXVIII. 

2.      O TRIBUNAL DO JÚRI COMO INSTITUIÇÃO E GARANTIA CONSTITUCIONAL

Como afirma Bonfim (2006, p.451), a instituição Júri, mesmo que sob a vestimenta de distintos modelos, está presente em grande parte dos sistemas jurídicos modernos. Tal fato se justifica, principalmente, na medida em que, através dela e em decorrência de sua elementar participação popular, obtém-se uma verdadeira legitimação do sistema jurídico, de modo a serem introduzidos no sistema processual valores de cunho fortemente democrático.

Essa legitimação do sistema do júri se firma ao afastar a competência para julgar do juiz togado e transferi-la ao cidadão comum, buscando, com isso, uma maior anuência dos populares no que tange ao resultado do processo levado ao júri, buscando, assim, a justiça aos olhos da sociedade. Julgamentos esses de crimes dolosos contra a vida.

Diferentemente dos demais órgãos do Poder Judiciário que vem elencado do art. 92 ao 126 da Constituição Federal de 1988, o júri encontra-se inserido no rol de direitos e garantias fundamentais, presente no art. 5°, inc. XXXVIII da CF/88, sendo reconhecida a instituição do júri com a organização que lhe der a lei, assegurando:

a)    a plenitude de defesa;

b)   o sigilo das votações;

c)    a soberania dos veredictos;

d)   a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Como presente no texto da lei, o Tribunal do Júri é reconhecido como instituição, com a organização que lhe der a lei, tendo sua disciplina legal delineada nos arts. 406 a 497 do Código de Processo Penal, sofrendo depois algumas alterações através da Lei nº 11.689/2008, tendo sua competência definhada por completo no art. 74 do CPP dispondo que:

Art. 74.  A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.

§1° Compete ao Tribunal do júri o julgamento dos crimes previstos nos art. 121§§ 1° e 2°, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados. (Redação dada pela Lei n° 263, de 23.2.1948)

§2° Se, iniciado o processo perante um juiz, houver desclassificação para infração da competência de outro, a este será remetido o processo, salvo se mais graduada for a jurisdição do primeiro, que, em tal caso, terá sua competência prorrogada.

§3° Se o juiz da pronúncia desclassificar a infração para outra atribuída a competência de juiz singular, observar-se-á o disposto no art. 410; mas, se a desclassificação for feita pelo próprio Tribunal do Júri, a seu presidente caberá proferir a sentença (art. 492, § 2°). (Brasil, Artigo 74 do Decreto Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941).

Ante tal artigo, fica claro que a competência do júri se encontra bem definida, não abrindo margem a interpretações alargadas. São julgados no Tribunal do Júri o homicídio simples, privilegiado, bem como o qualificado; induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; infanticídio, aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, aborto provocado por terceiro sem consentimento da gestante, aborto com consentimento da gestante, aborto qualificado, ambos previstos no código penal, seja em sua forma tentada ou consumada, não sendo, assim, julgado no júri os crimes que têm por resultado morte, mas não o dolo de matar. Isso não significa dizer que demais crimes não possam ser julgados pelo júri; até podem, desde que conexo com um crime doloso contra a vida.

Sua competência, portanto, compraz somente os delitos dolosos praticados contra a vida, é dizer, quando cometidos com ânimo de matar. Exige-se do agente a vontade consciente de matar alguém, causar aborto ou assumir o risco de fazê-lo e etc. Desse modo, se, por exemplo, o resultado da morte for provocado por imprudência, negligência ou imperícia, estaremos diante de um homicídio culposo de competência do juiz monocrático. Da mesma forma, se o resultado morte surgir de forma acessória, quando da prática de crimes que atinjam primacialmente bem jurídico diverso da vida, como latrocínio, dentre outros. (BONFIM E PARRA NETO. O novo procedimento do júri. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2009, p. 3).

Nucci (2009) conceitua muito bem que “o texto constitucional apenas faz menção a ser assegurada a competência para delitos dolosos contra a vida e não somente estes”.

A cláusula pétrea no direito brasileiro, impossível de ser mudada pelo Poder Constituinte Reformador, não sofre nenhum abalo caso a competência do júri seja ampliada, pois sua missão é impedir justamente o seu esvaziamento. Sobre o tema, a ver ainda a nota feita no art 74, §1°. Houve época em que se debateu, vigorosamente no Brasil, o alcance da competência do Tribunal do Júri, visando-se incluir na sua pauta todos os crimes que envolvessem a vida humana. (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. São Paulo: Editora Revista dos tribunais. 2009, p. 741 e 742).

Alcance esse que não foi atingido, uma vez que não houve alteração no art. 74 do CPP.

A soberania dos veredictos, conforme previsto no art. 5°, inc. XXXVIII, alínea c, não é amplo quando se trata do Tribunal do Júri, estando a soberania ligada apenas ao fato de que as decisões proferidas pelos jurados não estão sujeitas a reforma por juízes togados.

Jamais sem ofensa ao disposto na Constituição Federal, poderá, quanto ao mérito, um tribunal qualquer substituir o veredicto popular por decisão sua, sob o prisma que for. Sentenças condenatórias absolutórias, calcadas na vontade popular, precisam ser fielmente respeitadas. (NUCCI. Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2009, p. 740 e 741).

Fica clara a soberania dos veredictos, mas tal soberania não é tão fácil de ser conceituada. Em muitos dicionários, é apontada como qualidade da pessoa que exerce seu poder de forma extrema, expressão de excelência em relação aos demais, poder superior em relação aos demais, qualidade que não pode ser contestado, enfim, infinitas definições.

O que se pode afirmar é que não tem como falar em soberania sem pensar em algo superior; e esse caráter de superior não é de um poder supremo, uma vez que existem limites impostos à instituição do Júri pelo processo penal. Assim, fica a definição de Soberania dos Veredictos limitada ao já abordado, que é a limitação da decisão dos jurados ser substituída pela decisão de um tribunal togado.

A Soberania dos Veredictos está inserida como uma das garantias decorrentes do Tribunal do Júri, conforme previsto no texto constitucional. Como qualquer garantia, visa assegurar que o veredicto final venha a ser prolatado pelos jurados e não alterada por qualquer motivo pelo tribunal togado ou juiz monocrático, garantindo, assim, a eficácia desta subgarantia, conforme Marques (1997).

Podemos, por conseguinte, chegar à conclusão de que a Soberania dos Veredictos é basilar à garantia do instituto do Júri, uma vez que esse é formado por um tribunal popular, consequentemente formado por pessoas que não detêm um conhecimento técnico, assim os veredictos não se baseiam em nenhuma prática jurídica norteadora, sendo muito difícil, caso não houvesse esse princípio garantidor, que todas as decisões pelo júri prolatadas não fossem reformuladas pelo tribunal superior.

Há que ressaltar que os impedimentos de reforma dos veredictos ocorrem apenas com relação ao mérito da causa, onde é impossível a reforma do veredicto popular por um tribunal togado. Mas isso não impede que o caso seja remetido a um novo júri, desde que acolhido todas as regras para isso, ou seja, a soberania dos veredictos serve apenas para que a decisão proferida pelo Tribunal do Júri, quanto ao mérito, não seja alterada por outro órgão do judiciário.

Dessa forma, conforme um entendimento pessoal, essa subgarantia não visa apenas garantir a soberania dos veredictos, mas também garantir outra garantia constitucional, que é o Tribunal do Júri, pois, se assim não fosse, infinitas seriam as reformas pelos magistrados togados.

3.      A SOBERANIA DOS VEREDICTOS: CRÍTICAS, LIMITES E PROPOSTAS DE UM NOVO MODELO DE JULGAMENTO

Como abordado, a decisão do júri é soberana (seu veredicto é soberano), ou seja, sua decisão não pode ser alterada pelo magistrado togado. Mas como falar em veredicto soberano quando não se tem a necessidade de comprovar conhecimento técnico para ser jurado? Como podemos ter certeza de que essa decisão soberana tomada pelos jurados vai ser realmente a mais justa?

O Tribunal do Júri foi de grande valia na superação do sistema de inquisitório, defendendo, desse modo, o modelo do júri cidadão em face do modelo de inquisição. No entanto, o tempo passa e as referências tendem a mudar, restando assim, nos dias de hoje, ultrapassado esse modelo que surgiu no século passado.

Como mencionado por Aury Lopes Jr.:

Um dos graves problemas para a evolução de um determinado campo do saber é o repouso dogmático. Quando não se estuda mais e não se questiona as “verdades absolutas”. O Tribunal do Júri é um dos temas em que a doutrina nacional desfruta de um longo repouso dogmático, pois há anos ninguém (ousa) questiona(r) mais sua necessidade e legitimidade. (LOPES, Aury Jr. Direito processual penal. 11. Ed. São Paulo: Saraiva 2014, p. 1075).

          

E continua seu ensinamento:

É verdade que o Tribunal do Júri é cláusula pétrea da Constituição, art. 5°, XXXVIII, mas isso não desautoriza a crítica, até porque podemos, sim, questionar a legitimidade de tal instituição para estar na Constituição. Ademais, recordemos que o art. 5°, XXXVIII, consagra o júri, mas com a “organização que lhe der a lei”. Ou seja, remete a disciplina de sua estrutura a lei ordinária, permitindo uma ampla e substancial reforma (para além das realizadas em 2008, destaca-se), desde que assegurados o sigilo das votações, a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e a competência para os crimes dolosos contra a vida. Abre-se, assim, um amplo espaço para reestruturá-lo (já que a extinção, pura e simples, como desejamos, dependeria de alteração na Constituição). (AURY, op. cit. Pag. 1075).

Nessa linha, Aury (2011, p. 1076) lembra que os jurados não possuem conhecimento técnico ou dogmático “para a realização de diversos juízos axiológicos que envolvem a análise da norma da pena e processual aplicável”. Como estabelece FAIREN GUILLEN (1997. p. 57) “um juz lego, ignorante de la Ley, no puede aplicar un texto de la Ley porque no la conece”.

O ato de decidir exige um conhecimento da complexidade jurídica, não sendo admitido, portanto, a simples decisão através dos sentidos ou da introspecção, uma vez que, no ordenamento jurídico brasileiro, a prova apresentada aos jurados é colhida na primeira fase do processo do júri, diante do juiz presidente e longe do jurado, podendo até ser produzida alguma prova em plenário, mas sendo raro esse acontecimento.

O juiz leigo (jurado) julga, em regra, pela mera leitura que é feita da peça quando a entregue no dia do julgamento, depois do juramento feito, sem ter em sua maioria, nenhum conhecimento técnico jurídico, nem de Direito nem de processo, julgando com base apenas em folhas mortas e debates que mais parecem peças teatrais.

A decisão de absolver ou não o réu se dá com a resposta de quesitos, de acordo com o art. 482 do CPP:

Art. 482. O Conselho de Sentença será questionado sobre a matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido.

Parágrafo Único. Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou decisões posteriores que julgarem admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes. (BRASIL, art. 482 do Decreto Lei 11.689 de 09 de Junho de 2008).

Então, como disposto, a resposta aos quesitos “serão redigidos em proposições afirmativas”, ou seja, respondidas com sim ou não, não havendo necessidade de fundamentar. Assim, a essa forma de resposta dos quesitos, pode-se concluir que tal norma entra em contrariedade com a própria Constituição, vez que o art. 93, inc. IX, traz em seu texto sem ressalvas, determinando que todas as decisões judiciais devem ser públicas e fundamentadas, sob pena de nulidade.

Erro esse grosseiro cometido pelo legislador com relação a não alterar essa parte da lei, através do Decreto Lei nº 11.689, de 09 de janeiro de 2008, uma vez que o texto da lei do art. 93, inc. IX, da Constituição Federal, foi dado pela Emenda Constitucional n° 45, de 2004, ou seja, quatro anos antes da reforma imposta pelo Decreto Lei nº 11.689/08, podendo este ter sido alterado por se tratar de lei ordinária, sendo assegurado ainda a instituição do júri, uma vez que no texto constitucional do art.5°, inc. XXXVIII, permite isso afirmando que é “reconhecida a instituição do júri com a organização que lhe der a lei”.

Segundo Aury Lopes Junior:

A situação é ainda mais grave se considerarmos que a liberdade de convencimento (imotivado) é tão ampla que permite o julgamento a partir de elementos que não estão no processo. A “íntima convicção”, despida de qualquer fundamentação, permite a imensa monstruosidade jurídica de ser julgado a partir de qualquer elemento. Isso significa um retrocesso ao Direito Penal do autor, ao julgamento pela “cara”, cor, opção sexual, religião, posição socioeconômica, aparência física, postura do réu durante o julgamento ou mesmo antes do julgamento, enfim, é imensurável o campo sobre o qual pode recair o juízo de (des)valor que o jurado faz em relação ao réu. E tudo isso sem qualquer fundamentação. (Aury, Lopes Jr. op. cit. p. 1079).

Isso causa uma enorme insegurança jurídica, uma vez que o tribunal do júri é composto por um juiz togado, que é o presidente, e por 25 jurados, que serão sorteados dentre os alistados, sendo que destes, sete constituirão o Conselho de sentença em cada sessão de julgamento, bastando assim um 4 x 3 para condenar o réu. Algo que pode ser visto como absurdo, vez que a sentença condenatória exige prova rígida, ficando comprovado, nesse caso, que há dúvida perante os jurados. E, se há dúvida, deve-se absolver o réu, conforme um princípio que todo e qualquer operador do direito já estudou, o in dubio pro reo, que no jargão dentre os operadores do direito, os jurados que compõem o Conselho de Sentença passam a ser chamado de in dubio “pau” no reo.

Por isso, deve-se buscar a reforma do instituto do júri, seja alterando o número de jurados para 9, com a exigência de votação mínima, para condenar com 6 votos, como defendem alguns doutrinadores, logo valendo para absolver um 5 x 4, devido à dúvida, e aplicar efetivamente o in dubio pro reo, e não o in dubio pro societate, sendo o segundo princípio nem abraçado pela Constituição Federal de 1988.

Outra solução seria o número par de jurados. Exemplo: em vez de sete jurados, passaria a ser 8, sendo necessário assim, para a condenação do réu, uma diferença de, no mínimo, dois votos.

Um erro que também deve ser sanado é com relação à decisão de impronúncia, uma vez que nem condena e nem absolve o réu, ficando assim o in dubio pro reo prejudicado, pois não o juiz singular não se convence da materialidade do fato, ou se o réu praticou ou não o ato, sendo assim, a absolvição sumária o caminho correto a ser adotado, e não deixar o réu conforme determina o parágrafo único do artigo 414 do CPP pendente enquanto não ocorrer a extinção da possibilidade. É o mesmo que falar “eu não tenho provas, não posso te condenar, mas, não vou te absolver também porque alguma prova pode surgir”. Assim, aplica-se o in dubio pro societate, que não guarda constitucionalidade alguma, e aplicando cada vez mais o jargão in dubio “pau” no réu.

Outra solução seria dar maior enfoque à pessoa do jurado em si, buscando outro processo de recrutamento, para que os jurados sejam melhores escolhidos e possam exercer com aptidão a função de julgar. Uma vez que a seleção do jurado ocorre de forma bem subjetiva, tendo como elemento essencial sua idoneidade, para que a pessoa possa ser jurada.

Poderia ser feito, além do citado, cursos antes de começar cada semestre de julgamentos pelo Tribunal do Júri, com os jurados selecionados, buscando capacitá-los para que possam decidir de forma cada vez mais justa, e não se baseando apenas na íntima convicção como vem acontecendo, sem ter que se apegar à regra nenhuma, apenas ao que acredita.

O Juiz titular também poderia fazer o recrutamento de forma pessoal, procurando avaliar pontos como equilíbrio emocional, idoneidade, imparcialidade, dentre outras qualidades imprescindíveis para se julgar, abrindo a oportunidade para estudantes a partir do 8° período do curso de Direito, tendo assim uma seleção de jurados mais técnico, comprometido com o Direito e seus princípios basilares e norteadores, e consequentemente, um conselho de sentença que que irá trazer em seus veredictos uma maior segurança jurídica.

4.      CONCLUSÃO

Como demonstrado no presente artigo, chega-se à conclusão de que o júri deve ser reformado, visando garantir uma maior segurança jurídica, devendo selecionar melhor os jurados, na busca por jurados que detenham algum conhecimento técnico de Direito e de processo, para assim se alcançar uma decisão mais justa e cercada de segurança, não decidindo apenas através da íntima convicção.

Muitos não concordariam com isso alegando que o júri deve ser compreendido como um tribunal leigo (composto por pessoas sem conhecimento jurídico); no entanto, há que se discordar. Como expressado no presente artigo, a legislação processual do júri pode ser alterada sem que o júri perca seu caráter constitucional como parte do rol de garantias do art.5° da Constituição Federal, uma vez que tal instituição é reconhecida com a organização que lhe der a lei, sendo essa lei ordinária, passível de ser alterada.

Para se atuar no mundo do crime é imprescindível estar bem preparado, o que de fato não ocorre hoje com os jurados que compõem o júri, onde temos juízes leigos que julgam crimes de grande relevância e decidem pela liberdade ou não do réu com base apenas na resposta de quesitos, com sim ou não, sendo prolatados através da resposta desses quesitos veredictos soberanos, não podendo, assim, ser reformado pelo magistrado togado.

Deve-se buscar constantemente o aperfeiçoamento jurídico das instituições, visando sempre alcançar o bem maior do direito que é a justiça em sua mais íntima convicção, fundamentando toda e qualquer decisão, principalmente decisões que vão decidir pela liberdade ou não do réu.

Ademais, conclui-se que a instituição do Tribunal do Júri no Brasil resta ultrapassada, devendo ser mudada o quanto antes, capacitando-se os seus jurados, fundamentando as decisões e fazendo com que o réu seja julgado da forma mais justa possível, resguardando todos os seus direitos e garantias, como o in dubio pro reo, e parar de se aplicar o in dubio pro societate, presente na decisão de impronúncia.

Complementarmente, deve-se aumentar o número de jurados para compor decisões mais convictas de certeza, e não condenar o réu com um placar de 4 x 3, sem ao menos a diferença de dois votos, restando assim a dúvida entre os jurados, o que pode gerar insegurança jurídica ao Tribunal do Júri.

Dessa maneira, buscam-se melhorias ao Tribunal do Júri, uma vez que, como dito, diariamente se deparam com injustiças e incertezas. E o tribunal, que é incumbido de julgar os crimes dolosos contra a vida - bem maior da constituição -, não pode perdurar nessa insegurança, sem contar que, além do bem maior, que é a vida, os jurados não analisam só os crimes dolosos contra ela, mas também outro bem primordial ao cidadão (réu), que é a sua liberdade ou não, ficando assim evidente que não pode restar dúvidas quanto a qualquer decisão prolatada pelo Conselho de Sentença do Júri.

REFERÊNCIAS

BONFIM E PARRA NETO. O novo procedimento do júri. São Paulo: Editora RT. 2009, p. 3.

FAIREN GUILLEN, Victor. El jurado. Madrid, Marcial Pans. 1997. p. 57.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 6. ed. São Paulo: EDUSP, 1999. p. 613.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 214.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a factividade e a validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 4 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1. p. 52.

MARQUES, José Frederico. A instituição do júri. São Paulo: Saraiva, 1963.

NUCCI, Guilherme Souza. Código de processo penal comentado. São Paulo: RT, 2009. p. 741 e 742.

RANGEL, Paulo. Tribunal do júri: visão linguística, histórica, social e jurídica. 3 ed.  Rio de Janeiro: Lumen juris. 2011.

TORNAGHI, Hélio Bastos. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva. 1997. v. 2, p. 72

TUCCI, Rogério Lauria. Tribunal do júri: origem, evolução, características e perspectivas. In: Tribunal do Júri: estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira. São Paulo: RT. 1999, p. 12.

Data da conclusão/última revisão: 1/11/2018

 

Como citar o texto:

PERES, Kelvin Nean Maciel..A ausência de conhecimento técnico dos jurados do Conselho de sentença, a soberania dos veredictos relacionados à falta de segurança jurídica. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1574. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/4234/a-ausencia-conhecimento-tecnico-jurados-conselho-sentenca-soberania-veredictos-relacionados-falta-seguranca-juridica. Acesso em 8 nov. 2018.

Importante:

As opiniões retratadas neste artigo são expressões pessoais dos seus respectivos autores e não refletem a posição dos órgãos públicos ou demais instituições aos quais estejam ligados, tampouco do próprio BOLETIM JURÍDICO. As expressões baseiam-se no exercício do direito à manifestação do pensamento e de expressão, tendo por primordial função o fomento de atividades didáticas e acadêmicas, com vistas à produção e à disseminação do conhecimento jurídico.