Em um país que possui o título de 4ª maior população carcerária do mundo há muito que se debater quando a matéria é sistema prisional.

Com o intuito de reduzir as prisões desnecessárias, facilmente substituíveis por medidas cautelares menos gravosas ou até mesmo o relaxamento da prisão, em fevereiro de 2015 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu início a implantação do Projeto Audiência de Custódia, garantido o cumprimento ao disposto no art. 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos e no art. 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, que versam sobre a apresentação   imediata de qualquer pessoa presa perante a autoridade judicial competente para avaliar sua prisão.

Porém, a implantação da audiência de custódia foi duramente criticada, principalmente por delegados de polícia e por promotores de justiça, mas, vale lembrar que como órgãos dotados de divisão estadual há divergências entre as entidades, havendo entre eles quem se posiciona a favor da audiência de custódia.

A Associação Paulista do Ministério Público entrou com Mandado de Segurança no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo pedindo o fim do Provimento Conjunto n° 03/2015, que instituiu e regulamentou a audiência de custódia no Estado.

A classe dos delegados de polícia, por meio da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), ingressou com uma Ação Declaratória de Inconstitucionalidade também contra o Provimento Conjunto 03/2015 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (ADI 5240).

O resultado é conhecido, nenhuma prosperou, notadamente por falta de interesse de agir.

Já em fevereiro de 2016 foi publicado o acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 347, de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) que em sede de Medida Cautelar assentou que todos os juízes estariam obrigados a realizar audiência de custódia no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas contados a partir da prisão.

Aproveitando o ensejo do julgamento da ADPF 347, o CNJ editou a Resolução 213 de 15 de novembro de 2015, reiterando a obrigatoriedade da realização de audiência de custódia como direito fundamental do preso, observando ainda que o encaminhamento do auto de prisão em flagrante não supre a apresentação pessoal, e traçando diretrizes básicas para a uniformização procedimental do instituto.

Para não perder a habitualidade, a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (AMAGIS) ingressou com a Ação Direita de Inconstitucionalidade n° 5448 contra a Resolução n° 213/2015 do CNJ, e teve seu segmento negado pelo STF por ilegitimidade ativa, bem como em respeito à jurisprudência da Corte sobre a legalidade da audiência de custódia.

Ultrapassados os 90 (noventa) dias de adaptação para que se torne obrigatória à obediência do entendimento vinculante que o Supremo Tribunal Federal teve na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 347, a audiência de custódia já foi implantada em todas as capitais do país, porém esquecida ainda em muitos interiores.

Desde o tímido inicio do projeto entre o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e o Conselho Nacional de Justiça até o presente momento, a única conclusão que podemos ter é que a audiência de custódia possui mais inimigos do que simpatizantes.

Fora o STF e pequena parte da doutrina processual penal que realmente defende o devido processo penal constitucional, respeitar esse direito, que deveria ser regulado desde a entrada do Pacto Interamericano de Direito Humanos no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto n° 678/1992, ainda é segundo plano para muitos, inclusive o Poder Legislativo Federal (que ainda não aprovou nenhum diploma normativo que regule a matéria de forma definitiva) e o próprio Poder Judiciário, pois muitos ainda veem a audiência de custódia como mera formalidade a ser implantada nas demais comarcas quando der.

Até mesmo o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já possui entendimento consolidado que a audiência de custódia não é obrigatória, contrariando claramente o posicionamento do STF e do CNJ, aduzindo que a não realização da audiência de custódia, por si só, não é apta a ensejar a ilegalidade da prisão cautelar imposta ao paciente[1].

A justificativa sempre é a mesma, ou falta gente, ou falta dinheiro. Ocorre que garantir um direito subjetivo como o da audiência de custódia é ônus exclusivo do Estado, e não pode se negar a fazê-lo por escusas tão ordinárias como as que têm sido expostas.

Assim, preconiza Caio Paiva, em obra especializada sobre o tema, que “A não realização da audiência de custódia torna a prisão ilegal, ensejando, consequentemente, o seu relaxamento, (...). Trata-se de etapa procedimental de observância obrigatória para a legalidade da prisão”[2].

A criação da audiência de custódia se deu com o intuito de trazer mais humanidade e respeito no processo penal, garantindo ao preso o direito à condução perante uma autoridade, o direito a preservação física e mental, o combate à tortura e o respeito à duração razoável do processo.

Sobre a obediência ao efeito vinculante das decisões do Tribunal Constitucional, aduz Roger Stiefelmann Leal que “A inobservância do efeito vinculante caracteriza grave violação de dever funcional das autoridades públicas infratoras, sejam elas integrantes do Poder Judiciário ou do Poder Executivo”[3].

Não pode então um Órgão do Judiciário invocar julgados diversos, oriundos de Tribunais sem poder vinculante contra mandamento expresso o Supremo Tribunal Federal.

Caso alguém se encontre vítima do constrangimento ilegal que é não ter sido realizada a audiência de custódia, a única saída eficaz é promover Reclamação ao STF para ver seu direito respeitado, como no caso da Reclamação n° 24.536/AM, onde o Relator Min. Edson Fachin determinou que “A interpretação da jurisprudência da Corte permite a conclusão de que a audiência de apresentação constitui direito subjetivo do preso e, nessa medida, sua realização não se submete ao livre convencimento do Juiz, sob pena de cerceamento inconvencional”[4], complementando ainda ser cabível audiência de custódia inclusive no âmbito da Justiça Militar.

Do mesmo modo, a Reclamação n° 24.634/RJ em sede de Medida Cautelar, estabeleceu o Ministro Ricardo Levandowski que “A audiência de custódia, a ser realizada no prazo de 24 horas contadas do momento da prisão, é direito subjetivo do preso, garantido pelo Supremo Tribunal Federal, e, penso, não pode ser afastado, por questões, populacionais, orçamentárias, ou pela não criação de uma central específica direcionada às audiências de custódia”[5].

Cumpre ressaltar que quando o Supremo Tribunal Federal optou pelo prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a realização da audiência de custódia, não limitou a dia útil ou não, devendo o instituto ser respeitado inclusive durante o expediente de plantão judicial, pois foi determinado por decisão do Ministro Marco Aurélio na Reclamação n° 25.891/GO[6] que a audiência deve ser realizada inclusive em fim de semana, feriado e recesso forense.

A Corte Maior, cujo entendimento deve servir de norte para todos os outros magistrados, assenta teses sobre o respeito e garantias nas prisões, principalmente quando cautelares, em consonância com os princípios garantistas da Constituição Federal de 1988 e buscando a adequação do Estado Brasileiro com os tratados e convenções internacionais na qual é signatário, muito embora o que se vê por parte de alguns Tribunais e o total desrespeito ao seu entendimento.

A relutância em implementar o instituto tão novel e ao mesmo tempo tão velho, tendo em vista ordenamentos menos desenvolvidos que já adotavam o procedimento de apresentação do preso, é mais uma experiência de que questão prisional ainda enfrenta sérios problemas, e a humanização do direito penal cada vez mais difícil de ser compreendida.

Resta ao Supremo Tribunal Federal, pretório excelso, resguardar o seu entendimento e buscar punir os órgãos inferiores que não respeitarem suas decisões vinculantes, ante a consequência do próprio enfraquecimento do Tribunal sobre as instâncias inferiores, gerando cada vez mais recursos para que se cumpra o determinado na ADPF n° 347.

[1] Nesse sentido: STJ – HC 346.300. 5ª Turma. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca. Julgado em 07/06/2016.

[2] Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro. 2ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. Pág. 122.

[3] O Efeito Vinculante na Jurisdição Constitucional. 1ªed. São Paulo: Saraiva, 2006. Pág. 168.

[4] STF – Medida Cautelar na Reclamação n° 24.536/AM. Relator: Min. Edson Fachin. Julgado em 30/06/2016.

[5] STF – Medida Cautelar na Reclamação n° 24.639/RJ. Relator: Min. Marco Aurélio. Decisão proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski em 29/07/2016.

[6] STF – Medida Cautelar na Reclamação n° 25.891/GO. Relator: Min. Marco Aurélio. Decisão proferida 10/05/2017.

Data da conclusão/última revisão: 6/2/2019

 

Como citar o texto:

BENTO, Wanderson Maia..O Descumprimento da Condução do Preso para Audiência de Custódia e suas Consequências. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 30, nº 1596. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/direito-processual-penal/4308/o-descumprimento-conducao-preso-audiencia-custodia-consequencias. Acesso em 7 fev. 2019.

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